RIO - A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vem sendo usada para reforçar o caixa do governo e diminuir o déficit público. Segundo levantamento do GLOBO a partir de dados do Portal da Transparência, a autarquia gerou R$ 1,36 bilhão em excedentes de receitas desde 2009, valor transferido ao governo federal. O repasse aumentou nos últimos anos, diante do aperto fiscal do Executivo. Se, em 2014, a CVM ficou com 72,1% das receitas, em 2017 a fatia foi de apenas 47,2%. Embora a autarquia seja um dos órgãos atingidos pelo contingenciamento, especialistas avaliam que, no caso da CVM, restrições podem representar risco para a economia.
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A Comissão regula uma indústria de fundos de investimento de R$ 4,3 trilhões e uma Bolsa com 343 empresas, avaliadas em R$ 3,5 trilhões. Ela tem que fiscalizar o mercado, coibindo e punindo irregularidades. Mais de 85% das receitas vêm da taxa de fiscalização paga por companhias abertas, bancos, corretoras e fundos. Também são cobradas taxas de auditorias e operações de registro de ofertas no mercado.
— É um absurdo que um agente regulador se transforme em fonte de receita para o governo. O que o governo entrega para ela é menos do que deveria — criticou Viviane Muller Prado,, integrante do Núcleo de Estudos em Mercados e Investimentos da FGV-SP.
Para advogados que acompanham a CVM e para a Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), a autarquia deveria poder usar toda a verba da taxa de fiscalização, já que ela tem objetivo predeterminado.
— É um tributo vinculado. Não é um imposto. A taxa tem objetivo específico, e o Estado arrecada dizendo como vai gastá-la. O mercado gosta de pagar a taxa. O que ele não gosta é de ser tungado — criticou Carlos Augusto Junqueira, do escritório Cescon Barrieu Advogados.
Junqueira citou a Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo artigo 8º determina que “os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação.”
“A CVM é subdimensionada para o mercado. Mesmo que ela gastasse 100% do que arrecada, não seria suficiente”
As despesas da CVM crescem em descompasso com suas obrigações. Enquanto a capitalização da Bolsa brasileira aumentou 104% desde 2009, os gastos da autarquia cresceram 84% tendo que lidar com investimento em alta frequência e criptomoedas.
Enquanto isso, as receitas da autarquia cresceram 167%, com o aumento das taxas cobradas dos participantes do mercado. No ano passado, segundo o Portal da Transparência, a CVM teve R$ 496,9 milhões em receitas, dos quais R$ 423,3 milhões com taxas, mas gastou R$ 234,6 milhões.
Em seu mais recente relatório anual, referente a 2016, a CVM reclamou que, “é importante garantir a alocação de recursos orçamentários em valores compatíveis com a necessidade de sistemas informatizados, o volume de dados e a complexidade das atividades reguladas pela Autarquia, de modo a evitar perda de efetividade regulatória.”
A autarquia também admitiu que o déficit no número de servidores “pode afetar suas atividades de regulação e supervisão e ter impacto nas avaliações independentes internacionais”
Até junho do ano passado (dado mais recente), a CVM tinha 476 vagas ocupadas, embora possa empregar até 610 pessoas. Só que desde 2010 não há concursos. Para este ano, a autarquia estima que 57 funcionários vão se aposentar e 15 pedirão exoneração, resultando em um déficit de 191 vagas. A CVM admitiu que, assim, o quadro retrocederia aos níveis de “criticidade” de 2009.
— A CVM é subdimensionada para o mercado. Mesmo que ela gastasse 100% do que arrecada, não seria suficiente. A sanção exerce um efeito pedagógico, e nossa percepção é que ele não acontece como deveria. Uma presença sancionadora mais forte poderia alterar a percepção dos agentes — criticou Florisvaldo Machado, presidente do sindicato dos servidores da CVM.
De acordo com Machado, o próprio déficit de pessoal acaba sendo um empecilho.
— A área de licitação e contrato demanda muito pessoal. Se há carência de equipe, há dificuldade para se executar o orçamento — disse, acrescentando que não há previsão de concurso.
Apesar do déficit de pessoal, mais de 85% do orçamento são gastos com funcionários e aposentados. Dos R$ 234,6 milhões gastos pela CVM em 2017, quase tudo — R$ 202,3 milhões — foram consumidos pela rubrica “pessoal e encargos sociais”. Um quarto disso foi destinado a aposentados. Só R$ 2 milhões aparecem como “investimentos”, segundo o Portal da Transparência.
FAZENDA CITA TETO DE GASTOS
Para efeito de comparação, em 2018, a Securities and Exchange Comission (SEC), CVM americana, estima gastar US$ 1,6 bilhão (cerca de R$ 5,3 bilhões) e manter 4.528 funcionários, num mercado de US$ 32 trilhões. Desde 2009, seu orçamentou saltou 68%. Na britânica Financial Conduct Authority (FCA), as despesas em 2017 foram de 518,8 milhões de libras (R$ 2,4 bilhões), empregando 3.635. Já na França, a Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF) também tem sido submetida a contingenciamentos. Segundo seu relatório anual mais recente, de 2016, os gastos não podem superar 94 milhões de euros (R$ 380 milhões).
Procurada, a CVM disse que ela, "como a administração pública federal como um todo, observa regras constitucionais, legais e regulamentares" e "atua, permanentemente, para ver contemplado no seu orçamento recursos necessários para o desempenho de seu mandato legal”.
Em nota, o Ministério da Fazenda disse que a CVM não é a única que arrecada mais do que gasta. Segundo o ministério, as receitas integram o Orçamento da União "e, como tal, constituem fonte de recursos utilizada pelo Estado em programas e ações cuja finalidade precípua é atender às necessidades públicas e às demandas da sociedade."