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Economia

Governo usa receita da CVM para ajudar a diminuir déficit público

Superavitária, autarquia só ficou com 47% do que arrecadou em 2017
Fachada do plenário da CVM Foto: Antônio Scorza / .
Fachada do plenário da CVM Foto: Antônio Scorza / .

RIO - A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vem sendo usada para reforçar o caixa do governo e diminuir o déficit público. Segundo levantamento do GLOBO a partir de dados do Portal da Transparência, a autarquia gerou R$ 1,36 bilhão em excedentes de receitas desde 2009, valor transferido ao governo federal. O repasse aumentou nos últimos anos, diante do aperto fiscal do Executivo. Se, em 2014, a CVM ficou com 72,1% das receitas, em 2017 a fatia foi de apenas 47,2%. Embora a autarquia seja um dos órgãos atingidos pelo contingenciamento, especialistas avaliam que, no caso da CVM, restrições podem representar risco para a economia.

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A Comissão regula uma indústria de fundos de investimento de R$ 4,3 trilhões e uma Bolsa com 343 empresas, avaliadas em R$ 3,5 trilhões. Ela tem que fiscalizar o mercado, coibindo e punindo irregularidades. Mais de 85% das receitas vêm da taxa de fiscalização paga por companhias abertas, bancos, corretoras e fundos. Também são cobradas taxas de auditorias e operações de registro de ofertas no mercado.

— É um absurdo que um agente regulador se transforme em fonte de receita para o governo. O que o governo entrega para ela é menos do que deveria — criticou Viviane Muller Prado,, integrante do Núcleo de Estudos em Mercados e Investimentos da FGV-SP.

Para advogados que acompanham a CVM e para a Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), a autarquia deveria poder usar toda a verba da taxa de fiscalização, já que ela tem objetivo predeterminado.

— É um tributo vinculado. Não é um imposto. A taxa tem objetivo específico, e o Estado arrecada dizendo como vai gastá-la. O mercado gosta de pagar a taxa. O que ele não gosta é de ser tungado — criticou Carlos Augusto Junqueira, do escritório Cescon Barrieu Advogados.

Junqueira citou a Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo artigo 8º determina que “os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação.”

“A CVM é subdimensionada para o mercado. Mesmo que ela gastasse 100% do que arrecada, não seria suficiente”

Florisvaldo Machado
Presidente do sindicato dos servidores da CVM

As despesas da CVM crescem em descompasso com suas obrigações. Enquanto a capitalização da Bolsa brasileira aumentou 104% desde 2009, os gastos da autarquia cresceram 84% tendo que lidar com investimento em alta frequência e criptomoedas.

Enquanto isso, as receitas da autarquia cresceram 167%, com o aumento das taxas cobradas dos participantes do mercado. No ano passado, segundo o Portal da Transparência, a CVM teve R$ 496,9 milhões em receitas, dos quais R$ 423,3 milhões com taxas, mas gastou R$ 234,6 milhões.

Em seu mais recente relatório anual, referente a 2016, a CVM reclamou que, “é importante garantir a alocação de recursos orçamentários em valores compatíveis com a necessidade de sistemas informatizados, o volume de dados e a complexidade das atividades reguladas pela Autarquia, de modo a evitar perda de efetividade regulatória.”

A autarquia também admitiu que o déficit no número de servidores “pode afetar suas atividades de regulação e supervisão e ter impacto nas avaliações independentes internacionais”

A evolução das contas da CVM
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018*
Receitas
251,5
294,8
275,2
325,5
467,6
496,9
166,9
Total
Com taxas
de fiscalização
210,7
229,0
234,7
283,6
432,2
423,3
148,3
Despesas
175,6
193,1
198,4
211,0
218,8
234,6
39,7
Totais
Pessoal e
encargos
sociais
143,3
152,8
165,6
180,1
184,1
202,3
34,2
1,1
2,4
0,02
0,07
2,1
2,0
0,6
Investimentos
Superávit
75,9
101,6
76,7
114,5
248,9
262,3
127,3
Receita
não gasta
30,2%
34,5%
27,9%
35,2%
53,2%
52,8%
76,2%
*Até 20/4
Fonte: Portal da Transparência
A evolução das contas
da CVM
Com taxas
de fiscalização
Receitas
Total
2012
251,5
210,7
2013
294,8
229,0
2014
275,2
234,7
325,5
283,6
2015
467,6
432,2
2016
496,9
423,3
2017
166,9
148,3
2018*
Pessoal
e encargos
sociais
Investi
mentos
Despesas
Totais
2012
251,5
210,7
210,7
2013
294,8
229,0
229,0
2014
275,2
234,7
234,7
325,5
283,6
283,6
2015
467,6
432,2
432,2
2016
496,9
423,3
423,3
2017
166,9
148,3
148,3
2018*
Receita
não gasta
Superávit
30,2%
2012
251,5
34,5%
2013
294,8
27,9%
2014
275,2
35,2%
325,5
2015
53,2%
467,6
2016
52,8%
496,9
2017
76,2%
166,9
2018*
*Até 20/4
Fonte: Portal da Transparência

Até junho do ano passado (dado mais recente), a CVM tinha 476 vagas ocupadas, embora possa empregar até 610 pessoas. Só que desde 2010 não há concursos. Para este ano, a autarquia estima que 57 funcionários vão se aposentar e 15 pedirão exoneração, resultando em um déficit de 191 vagas. A CVM admitiu que, assim, o quadro retrocederia aos níveis de “criticidade” de 2009.

— A CVM é subdimensionada para o mercado. Mesmo que ela gastasse 100% do que arrecada, não seria suficiente. A sanção exerce um efeito pedagógico, e nossa percepção é que ele não acontece como deveria. Uma presença sancionadora mais forte poderia alterar a percepção dos agentes — criticou Florisvaldo Machado, presidente do sindicato dos servidores da CVM.

De acordo com Machado, o próprio déficit de pessoal acaba sendo um empecilho.

— A área de licitação e contrato demanda muito pessoal. Se há carência de equipe, há dificuldade para se executar o orçamento — disse, acrescentando que não há previsão de concurso.

Apesar do déficit de pessoal, mais de 85% do orçamento são gastos com funcionários e aposentados. Dos R$ 234,6 milhões gastos pela CVM em 2017, quase tudo — R$ 202,3 milhões — foram consumidos pela rubrica “pessoal e encargos sociais”. Um quarto disso foi destinado a aposentados. Só R$ 2 milhões aparecem como “investimentos”, segundo o Portal da Transparência.

FAZENDA CITA TETO DE GASTOS

Para efeito de comparação, em 2018, a Securities and Exchange Comission (SEC), CVM americana, estima gastar US$ 1,6 bilhão (cerca de R$ 5,3 bilhões) e manter 4.528 funcionários, num mercado de US$ 32 trilhões. Desde 2009, seu orçamentou saltou 68%. Na britânica Financial Conduct Authority (FCA), as despesas em 2017 foram de 518,8 milhões de libras (R$ 2,4 bilhões), empregando 3.635. Já na França, a Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF) também tem sido submetida a contingenciamentos. Segundo seu relatório anual mais recente, de 2016, os gastos não podem superar 94 milhões de euros (R$ 380 milhões).

Procurada, a CVM disse que ela, "como a administração pública federal como um todo, observa regras constitucionais, legais e regulamentares" e "atua, permanentemente, para ver contemplado no seu orçamento recursos necessários para o desempenho de seu mandato legal”.

Em nota, o Ministério da Fazenda disse que a CVM não é a única que arrecada mais do que gasta. Segundo o ministério, as receitas integram o Orçamento da União "e, como tal, constituem fonte de recursos utilizada pelo Estado em programas e ações cuja finalidade precípua é atender às necessidades públicas e às demandas da sociedade."