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Quem escreve

Educação superior e zebras gordas

Roberto Imbuzeiro Oliveira  - Pesquisador titular do IMPA

Em evento recente, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse que quer ir atrás das “zebras gordas” da educação superior. Desde então, ando por aí assustado. Dou aulas de pós-graduação e há quem diga que estou acima do peso. Se eu vestir minha camisa do Botafogo, pode ser que o MEC venha atrás de mim!

Brincadeiras à parte, convém atentarmos para o contexto da fala do ministro. Eis um trecho do que ele disse na ocasião, segundo O GLOBO [1] (as partes entre colchetes foram acrescentadas por mim):

“Cobrar mensalidade de quem pode pagar [dentre os estudantes das universidades federais] não vai resolver nada. Eu tenho que ir atrás de onde está a zebra mais gorda, que é o professor de uma federal, com dedicação exclusiva, que dá oito horas de aulas por semana e ganha de R$ 15 mil a R$ 20 mil por mês. [...] [O] MEC tem uma folha de pagamento com professores federais que cresce 8% ao ano sem eu fazer nada. Metade dos 600 mil servidores da República está no MEC, 300 mil. Eu tenho que enfrentar este exército. Dentre outras coisas, doutrinação, metodologia de alfabetização totalmente errada[, ] gastam-se fortunas em universidades enquanto o filho do pobre não vai para a pré-escola.”

Vê-se que não está no horizonte do ministro cobrar mensalidades nas universidades federais. Fico aliviado com isso. Não sou totalmente contrário à cobrança, mas ela teria de ser muito bem pensada para evitar problemas como o enorme endividamento dos estudantes dos EUA [2]. Na dúvida, prefiro que continuemos como estamos.

Ao mesmo tempo em que rechaça as mensalidades, o ministro Weintraub deixa no ar alguns pontos nebulosos ou ambíguos. Por exemplo, ele parece estabelecer um nexo entre o custo da educação superior e a falta de pré-escola pública. Não custa lembrar que, ao contrário de um certo lugar comum, o Estado brasileiro gasta muito menos com educação superior do que com educação básica [3].

O foco deste artigo é a declaração bombástica sobre “zebras gordas” e o que ela pressupõe. Pagar altos salários e receber pouco trabalho de volta é o sonho de exatamente 0% dos brasileiros. Ao mesmo tempo, a declaração do ministro dá uma impressão errada de como deve ser o trabalho dos seus professores universitários, ou de como deve ser a universidade ideal.

A ideia de universidade

Ao fundar a Universidade de Berlim, o alemão Wilhelm von Humboldt (1767 – 1835) ajudou a definir a universidade contemporânea. Na concepção “humboldtiana”, a universidade é um centro de produção e difusão do conhecimento puro que combina ensino e pesquisa em um ambiente de liberdade e autonomia acadêmica.

Neste ideal, o professor tem vários papéis. Ele ensina para difundir o conhecimento entre os alunos, preocupando-se, antes de tudo, em formar cidadãos pensantes (e não profissionais capacitados). Ele pesquisa para produzir conhecimento novo, com plena liberdade, e se torna um docente melhor no processo. Ao mesmo tempo, ele deve estar disposto a participar da administração da universidade porque uma comunidade autônoma deve gerir a si mesma. Vemos, portanto, que o professor dessa universidade é diferente do de um colégio. Ele tem dedicação exclusiva; tem estabilidade no emprego (que garante sua liberdade); mas não dá tantas aulas porque tem outras tarefas a desempenhar.

As universidades de ponta do Brasil e do mundo têm cada vez mais preocupações práticas, como formação profissional e intercâmbio com o setor produtivo. Isso, é claro, leva a tensões e debates acalorados sobre o que deve ser prioridade das universidades. Mesmo assim, persiste nas universidades a ideia de que a universidade é muito diferente de uma escola, deve produzir conhecimento e cultura com liberdade e, por isso, seus professores têm muitas tarefas para além da sala de aula.

Longe de ser um luxo, foi a ideia humboldtiana que fez de algumas universidades verdadeiras usinas de produção de conhecimento, cultura e inovação. Da música às empresas, da Medicina à Política, todos os ramos da vida humana foram influenciados pelas instituições inspiradas em Humboldt. Toda vez que você ouvir que pesquisadores de Harvard ou da UFRJ fizeram uma descoberta, lembre-se: os “pesquisadores” são, na sua enorme maioria, professores de dedicação exclusiva e alunos orientado por eles.

O ideal de universidade no Brasil

A Constituição Federal brasileira estabelece, em seu artigo 207, que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

A palavra “extensão”, que não vem do ideal humboldtiano, quer dizer levar o conhecimento para fora da universidade, através de atendimentos à população em escritórios ou clínicas-modelo; de eventos culturais; ou de cursos para a sociedade em geral. É razoável que a interação com o setor produtivo, tão falada em anos recentes, também entre nesta categoria.

Mesmo com essas ressalvas, os princípios da universidade brasileira também são derivados do que Humboldt propôs no século 19. Para mim, faz todo sentido que continue assim. As universidades que funcionam no “esquema colégio”, com professores horistas e propósitos mais práticos, têm custos mais baixos, mas não dão tanto retorno à sociedade. Elas têm impacto pequeno na inovação, na cultura e nos grandes problemas do país. A universidade de pesquisa não precisa ser literalmente “para todos” – outras opções de formação devem existir –, mas é necessária para que o Brasil continue a transformar seu potencial em realidade.

(Um parêntese: entre as grandes universidades do país e do mundo, há instituições públicas e privadas, mas literalmente nenhuma delas tem fins lucrativos. Aqui no Brasil, as universidades com fins lucrativos são justamente as que apostam no “esquema colégio”.)

Acredito no modelo de universidade com professores em dedicação exclusiva, estáveis, com liberdade acadêmica e se desdobrando em atividades de pesquisa, ensino, extensão e administração. Ao dizer isso, no entanto, deixo várias questões em aberto. De quantas universidades dessas precisamos? Como decidir quem faz jus à estabilidade? Todo professor deve se dedicar igualmente a pesquisa, ensino, extensão e administração ou vale escolher três destas? Essas perguntas ficarão para outro dia. Por ora, quero voltar ao que disse o ministro.

De volta ao ministro: o que dizer das zebras gordas?

A fala do ministro pode dar a entender que é ruim ter professores com emprego estável e dedicação exclusiva que não dão muitas horas de aula por semana. Como expliquei acima, penso o exato contrário disso. Aliás, os docentes que conheço aqui no Brasil dão bem mais do que oito horas de aula semanais. Em muitos casos, suas disciplinas são complexas e exigem atualização constante. Aqueles que, além de fazer isso, se dedicam à pesquisa, extensão e administração são pessoas extremamente ocupadas, além de muito importantes para o país.

Por outro lado, há docentes que não cumprem suas tarefas a contento. Também é verdade que nem todas as promoções que levam à estabilidade e a altos salários são merecidas. Ocorre que estes são problemas que as universidades federais compartilham com todo o setor público brasileiro, e que também incluem obras inacabadas ou malfeitas e falta de planejamento de longo prazo. Em muitos casos, os bons professores das federais não conseguem fazer nada a respeito ou têm de tirar horas valiosas de suas atividades principais para encarar estas questões. O MEC, por sua vez, tentou fazer frente a estes problemas com o “Future-se”, mas o projeto, a meu ver, apresenta fragilidades sérias [5].

Assim, minha opinião é que a fala do ministro apontou para questões que são, ao mesmo tempo, muito menores e muito maiores do que ele deu a entender. Os problemas são menores porque temos, sim, muitos professores de alto nível nas universidades federais. Também são maiores, porque os problemas das federais são problemas do Estado brasileiro como um todo. Estes são pontos de difícil solução. Até agora, não vi proposta adequada para enfrentá-los, nem deste governo, nem dos anteriores.

De todas as dificuldades que citei acima, a falta de planejamento estratégico é a mais nociva para a educação superior e a produção de conhecimento no Brasil. Em poucos anos, passamos de uma expansão enorme das federais e de custeio indiscriminado de estudantes brasileiros no exterior [6] para o possível colapso de financiamento à pesquisa e profundos contingenciamentos orçamentários das universidades [7]. Essa falta de previsibilidade é um problema muito sério e deveria estar ao alcance do MEC tratar dela. Exorto o ministro Weintraub a propor soluções para este desafio com precisão, competência técnica e sem dar margem a que se pense mal dos professores que se desdobram entre ensino, pesquisa, extensão e administração.

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[1] Transcrevi a fala a partir do seguinte artigo: https://oglobo.globo.com/sociedade/weintraub-afirma-que-vai-atras-da-zebra-gorda-professores-que-ganham-de-15-mil-r-20-mil-23976141

[2] O artigo a seguir traz alguns dados interessantes sobre este debate: https://aosfatos.org/noticias/verificamos-cinco-fatos-sobre-cobranca-de-mensalidade-em-universidades-publicas/ .

[3] Baseei-me nos dados de 2011, 2013 e 2015 no seguinte artigo: https://revistapesquisa.fapesp.br/2019/03/12/engrenagem-complexa/ .

[4] Ver https://epoca.globo.com/guilherme-amado/curriculo-do-novo-ministro-da-educacao-nao-inclui-doutorado-como-disse-bolsonaro-23582296 .

[5] Veja meu artigo a respeito neste blog: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/future-se-diretrizes-vagas-para-educacao-superior-brasileira.html .

[6] Falo, é claro, do Ciência sem Fronteiras, que, no geral, tem benefícios duvidosos. Veja https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2016/06/1781005-ciencia-sem-fronteiras-poe-so-37-dos-alunos-em-instituicoes-top.shtml e https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/academicos-apoiam-corte-de-bolsas-do-ciencia-sem-fronteiras-une-critica-19783756 .

[7] Veja por exemplo https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/11/presidente-do-cnpq-diz-que-remanejamento-de-verbas-para-bolsas-nao-e-magia-caridade-ou-solucao-mirabolante.ghtml (para a situação do financiamento à pesquisa) e https://aosfatos.org/noticias/desenhamos-fatos-sobre-o-orcamento-das-universidades-federais/ (sobre o orçamento e o contingenciamento nas federais).

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