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Política

Novo foro dos militares já tirou mil ações da Justiça comum, de ameaça a tortura

Lei sancionada por Michel Temer ampliou as possibilidades de mudança de tribunal julgador, em caso de crimes contra civis

Policiais da Corregedoria da PM
Foto: Gabriel de Paiva
Policiais da Corregedoria da PM Foto: Gabriel de Paiva

BRASÍLIA - A Asa Sul, em Brasília , é um dos espaços mais nobres e caros da capital. Ali, mais especificamente na região da quadra 310, a presença de um homem causava incômodo aos moradores. Usuário de drogas e suspeito de tráfico, Ronniely de Souza não era bem-vindo. Três policiais militares decidiram, então, castigá-lo. E com crueldade, como concluiu o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).

Primeiro, Ronniely foi detido de forma ilegal, algemado, colocado no “cubículo” de um carro da polícia e levado para um matagal. Depois, levou chutes no rosto, nas costas e um pisão no pescoço. Choques elétricos com uma pistola foram aplicados no pescoço e no braço. Por fim, ele teve o pé perfurado por uma barra pontiaguda de ferro. A tortura está descrita na denúncia. Cinco anos após o crime, o caso chegou a uma reta final. No dia 20 de março, os promotores entregaram as alegações finais, em que reiteram o pedido de condenação de dois dos três PMs, Sidney Gomes Pereira e Hamilton Castro da Silva. Segundo a defesa de Hamilton, o que tinha de ser informado está nos autos. A de Sidney não deu retorno à reportagem. O caso já poderia ir à sentença, não fosse um detalhe: o MPDFT pediu a transferência do processo da Justiça comum para a Justiça Militar.

O pedido dos promotores não foi aleatório. Em 13 de outubro de 2017, o presidente Michel Temer sancionou a lei 13.491, que amplia as possibilidades de militares suspeitos de crimes cometidos no exercício da função deixarem a Justiça comum e serem julgados na Justiça Militar, em caso de crimes contra civis. Os promotores do DF se basearam na nova lei para pedir o declínio de competência. A lei vem resultando em diversos casos de conflito de competência e numa indefinição sobre a quem cabe julgar esses PMs, o que pode atrasar o andamento das ações. Em dezembro, O GLOBO mostrou que as divergências já haviam começado com a aprovação da lei. Uma solução definitiva ficará a cargo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que já analisa os primeiros conflitos de competência, ou mesmo do Supremo Tribunal Federal (STF), provocado com ações diretas de inconstitucionalidade.

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DF
O mapa dos
processos
envolvendo PMS*
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Ações deslocadas da Justiça comum para a Justiça Militar em razão da vigência da lei 13.491, de 13 de outubro de 2017
50
SP
120
RJ
PR
SC
48
RS
737
Novos inquéritos policiais
militares, depois da lei
638
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Corregedorias passaram a apurar crimes
que eram de competência da Polícia Civil
158
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SC
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DF
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Procedimentos que investigam PMs por homicídio
33
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206
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14
*Em relação aos outros estados, as instituições responderam dizendo não ter os dados ou afirmaram não ter havido deslocamento de processos e casos novos
Fontes: Tribunais de Justiça (TJs), Ministérios Públicos (MPs) e Polícias Militares (PMs) nos estados
O mapa dos processos
envolvendo PMS*
Ações deslocadas da Justiça comum para a Justiça Militar
em razão da vigência da lei 13.491, de 13 de outubro de 2017
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Novos inquéritos policiais
militares, depois da lei
Corregedorias passaram a apurar crimes
que eram de competência da Polícia Civil
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Procedimentos que investigam PMs por homicídio
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*Em relação aos outros estados, as instituições responderam dizendo não ter os dados ou afirmaram não ter havido deslocamento de processos e casos novos
Fontes: Tribunais de Justiça (TJs), Ministérios Públicos (MPs) e Polícias Militares (PMs) nos estados

A 4ª Vara Criminal de Brasília, por exemplo, ainda não se decidiu sobre o que fazer com o processo da suposta tortura a Ronniely. Outras varas, em todo o país, já tomaram essa decisão. Seis meses depois de começar a valer, a lei 13.491 levou a um deslocamento de mais de mil processos que antes investigavam PMs na Justiça comum, em 14 estados, e que agora estão abrigados na Justiça Militar, como mostra um levantamento inédito feito pelo GLOBO. Uma decisão do STJ ou do STF, no entanto, pode voltar a embaralhar esses processos.

ENTIDADES CRITICAM 'IMPUNIDADE E BLINDAGEM'

Somente em Goiás, por exemplo, o Tribunal de Justiça (TJ) espera um deslocamento de 3 mil processos envolvendo PMs. Os processos já transferidos nos estados investigam PMs por tortura, abuso de autoridade, ameaça, lesão corporal, organização criminosa, corrupção, concussão, peculato e até mesmo crimes como estupro, posse ilegal de arma e de trânsito. A predominância é de casos de abuso de autoridade. Além dos deslocamentos, a lei fez aumentar a quantidade de procedimentos abertos pela PM — e não pela Polícia Civil — em casos de crimes de militares contra civis: são 2,5 mil procedimentos novos desde outubro, em 11 estados.

ENTENDA: Senado transfere para Justiça Militar julgamento de crimes cometidos por militares em missões de GLO

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Se o caso de Ronniely mudar de mãos, por exemplo, o juiz da Auditoria Militar do DF pode optar por refazer a instrução do processo, levando-se em conta o princípio da identidade física do juiz: o magistrado que faz a instrução é o que julga. Ele pode, no entanto, manter o processo como está, ler e proferir uma sentença. O caso estará, porém, eivado de insegurança jurídica: o STJ pode decidir posteriormente que situações como essa deveriam ser mantidas na Justiça comum.

Além das incertezas, integrantes do MP e da Justiça que criticam a lei elencam basicamente três efeitos críticos: 1) a transferência de investigações de crimes cometidos por PMs, especialmente tortura, o mais emblemático, da esfera da Polícia Civil para as Corregedorias da própria PM, onde inquéritos historicamente sofrem com atrasos, corporativismo e ausência de instrumentos de apuração; 2) uma sobrecarga inédita de processos em varas e promotorias militares (o mais comum é o estado ter uma única vara e uma só promotoria); e 3) a saída de militares federais dos tribunais de júri em caso de crimes dolosos contra a vida, outra inovação da lei 13.491.

Já promotores e juízes militares sustentam que há espaço para o recebimento desses novos processos e que não haverá alívio aos PMs. Casos com penas menores, como abuso de autoridade, podem inclusive levar esses militares a perderem possibilidades de transformação da pena em medidas alternativas, como serviços comunitários, prevista em juizados especiais e inexistente na Justiça Militar, segundo promotores e juízes ouvidos pela reportagem.

Um entendimento prevalecente é que já há um desequilíbrio de forças entre polícias. Uma vítima de tortura de um PM, por exemplo, se verá obrigada a procurar a Corregedoria da própria PM. Na interpretação que se vem fazendo da lei nos estados, a investigação desses casos é exclusiva agora das corregedorias, e não mais da Polícia Civil.

— A lei faz com que os casos não sejam da Polícia Civil, para que tudo vire inquéritos policiais militares (IPMs). Aí não adianta dizer que o MP vai investigar — afirma a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, coordenadora da 2ª Câmara de Revisão da Procuradoria Geral da República (PGR).

Entidades que atuam na defesa dos direitos humanos, como a Anistia Internacional, criticam a nova legislação, por enxergarem “impunidade” e “blindagem” aos militares. A lei é alvo de ações diretas de inconstitucionalidade no STF, uma de autoria da Associação dos Delegados de Polícia (Adepol) e outra do PSOL. Desde 27 de outubro de 2017, um pedido semelhante está no gabinete da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Esse pedido foi formulado por colegiados da própria PGR. Dodge vem encontrando dificuldades jurídicas para propor a ação.

MINAS, GOIÁS E PARANÁ TÊM MAIOR QUANTIDADE DE PROCESSOS DESLOCADOS

A maior quantidade de processos deslocados ocorreu em Minas Gerais (238), Goiás (214) e Paraná (120). O efeito foi significativo também em quantidade de novos inquéritos. No Distrito Federal, o total dobrou. Na Bahia, a média mensal de abertura de inquéritos policiais militares (IPMs) aumentou 75% desde a vigência da lei. Foram 310 IPMs abertos de outubro de 2017 até agora. Santa Catarina somou 737 novos IPMs no mesmo período.

No Rio, o crime de organização criminosa, se cometido por PM, passou a ser tipificado como militar. Já ocupa a quarta posição em quantidade de processos na Auditoria da Justiça Militar. O TJ-RJ teria decidido não fazer deslocamentos de casos de abuso de autoridade, por entender que haveria prejuízo aos réus, uma vez que eles podem contar com benefícios penais em juizados especiais.

Amarildo. Caso investigado pela Polícia Civil Foto: Álbum de família/17-7-2013
Amarildo. Caso investigado pela Polícia Civil Foto: Álbum de família/17-7-2013

Num processo por associação criminosa, um grupo formado por policiais civis e por um PM caminhava para um veredicto da Justiça do Rio, mas o processo acabou deslocado para a Auditoria Militar em razão deste único PM. É o que pode ocorrer com investigações sobre a atuação de milícias: uma divisão na investigação, com policiais civis sendo investigados por civis e militares investigados por militares.

— O caso Amarildo, por exemplo, foi investigado pela Polícia Civil. Se fosse hoje, seria pela própria PM — diz o promotor Paulo Roberto Cunha, do MP militar.

Em novembro de 2017, pouco mais de um mês depois de vigência da nova lei, a 1ª Vara Criminal de Samambaia, região pobre do DF, acolheu pedido do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e declinou da competência para julgar outro caso de tortura, em Brasília. A ação foi remetida à Auditoria Militar.

Os PMs Clauberdam de Morais, Frederico Alves Bragança e Maurício Sousa Nascimento foram denunciados por tortura praticada contra um homem acusado de estupro. Houve “violência e grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental, com o fim de obter confissão pela prática de suposto crime de estupro”, conforme a denúncia do MPDFT. A vítima nem chegou a ser acusada do estupro. A defesa deles alega que a tortura não existiu, nem física nem psicológica, e que os PMs serão absolvidos. A mudança da ação para a Auditoria Militar foi pertinente, diz a defesa.

— Se uma investigação em curso na Polícia Civil já está madura, serão desnecessárias medidas complementares. Claro que pode haver uma ingerência política na PM, mas também pode haver na Civil. O STF vai ter de pacificar isso, sobre como os estados devem aplicar essa lei — disse o promotor Flávio Milhomem, que atua no âmbito da Auditoria Militar do DF.

EM DOIS CASOS, STJ DECIDIRÁ ATRIBUIÇÕES DOS TRIBUNAIS

Conflitos de competência passaram a ser comuns desde a vigência da lei que ampliou o escopo de crimes militares. A maioria dos casos é resolvida nos tribunais de Justiça (TJs), já que grande parte dos estados não tem uma estrutura de Justiça Militar separada da Justiça comum (Vara Militar vinculada ao TJ, com um juiz de direito, a exemplo das demais varas). Mas pelo menos dois conflitos foram remetidos ao Superior Tribunal de Justilça (STJ). Os casos, obtidos pelo GLOBO, são de Minas Gerais e São Paulo, que têm um Tribunal de Justiça Militar à parte.

Em Minas, tanto a 2ª Vara de Tóxicos da capital quanto a 3ª Auditoria da Justiça Militar se acharam aptas para analisar um processo que trata de suposto tráfico de drogas por uma sargento da PM. Ela estava numa casa alvo de ação da polícia, que foi informada sobre drogas no local. A sargento fugiu da casa, onde estavam 90 munições de calibre .380. Policiais também apreenderam maconha, crack e uma balança de precisão. A ação foi em janeiro.

O conflito de competência foi formalizado no STJ em razão da nova lei. Os crimes são tráfico de drogas e de desobediência. No primeiro parecer que se tem notícia sobre esse tipo de conflito, a PGR foi a favor de que o tráfico permanecesse na Justiça comum. “Essa Corte tem entendimento de que o policial militar não pode ser enquadrado na definição de militar prevista no Código Penal Militar, pois o próprio Código de Processo Penal traz definição que não contempla os militares estaduais”, escreveu a suprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, que atua no STJ. Para ela, a Lei 13.491 só alterou a situação dos militares federais. “O tráfico de drogas cometido fora do horário de serviço em local não submetido à administração militar não se enquadra em nenhum desses incisos.” Já o crime de desobediência deve ir à Justiça Militar.

O parecer, assinado no último dia 25, pediu ao STJ a “declaração incidental de inconstitucionalidade” da lei sancionada pelo presidente Michel Temer. “O veto que excluiu somente a cláusula de temporariedade da lei adulterou, por completo, a vontade do Congresso Nacional. O procedimento correto seria o veto total, sob pena de o presidente da República usurpar a função do Congresso Nacional”, afirmou.

A suprocuradora-geral ainda opinou sobre outro caso no STJ, no dia 26. Um militar do Exército foi acusado de ameaça e lesão corporal leve. A ocorrência foi registrada na Polícia Civil de São Paulo. Ele teria dado uma cabeçada e apontado a arma para um segurança, tentar entrar num hospital onde a filha estava. O MP-SP enviou o caso à Justiça Militar, que discordou. O caso foi remetido ao STJ. A suprocuradora-geral defendeu a competência da Justiça comum.

(Colaborou Pedro Henrique Gomes, estagiário sob a supervisão de Vinicius Sassine)