Cultura

Renovador da literatura fantástica, China Miéville tem sua obra lançada no Brasil

Romance ‘A cidade e a cidade’, do escritor inglês, é traduzido no país: autor é professor de escrita criativa e fundou um partido de esquerda

Aos 42 anos, com dez romances, uma compilação de contos, uma série em quadrinhos e um livro de RPG no currículo, China Miéville é apontado como um dos maiores de sua geração
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Andrew Testa/The New York Times/18-7-2010
Aos 42 anos, com dez romances, uma compilação de contos, uma série em quadrinhos e um livro de RPG no currículo, China Miéville é apontado como um dos maiores de sua geração Foto: / Andrew Testa/The New York Times/18-7-2010

RIO — Fantasia e ficção científica são os gêneros que descrevem com mais precisão a obra de China Miéville. Mas uma breve observação sobre crenças, gostos e posicionamentos do escritor inglês, de 42 anos, mostra que sua própria vida tem um quê de ficção. Miéville se assume marxista e geek, joga RPG, diz querer lançar um romance em cada gênero literário, adora monstros, ganhou dúzias de prêmios importantes por seus livros e ajudou a fundar um partido de esquerda.

Dito assim, ele parece personagem de um livro de fantasia, o que não impede que seja considerado um dos grandes autores de sua geração. Com dez romances, uma compilação de contos, uma série em quadrinhos e ainda um livro de RPG no currículo, ele acaba de ter um de seus livros mais importantes, “A cidade e a cidade”, uma espécie de ficção científica noir lançada originalmente em 2009, lançado no país pela editora Boitempo (antes, sua única obra lançada aqui foi "Rei rato", pela extinta editora Tarja, com tradução de Alexandre Mandarino).

Em “A cidade e a cidade”, mais do que o enredo que acompanha um detetive numa investigação de assassinato, o que se destaca é a ambientação proposta por Miéville. O livro se passa em Beszel e Ul Qoma, duas cidades que ocupam o mesmo espaço geográfico, mas que se diferem em costumes, roupas, arquitetura e em leis que obrigam os cidadãos de uma delas a ignorar completamente o que acontece na outra — mesmo uma morte a dois metros de distância.

Para facilitar a compreensão, seria possível dizer que as duas cidades servem como uma alegoria para as divisões sociais ou étnicas comuns em metrópoles mundo afora. O problema é que Miéville não concordaria com a afirmação. Ele simplesmente rejeita a ideia de a literatura ser vista através de alegorias com a realidade.

— Tudo na ficção tem ressonância metafórica, mas reduzir isso à ideia de “representação” não ajuda a pensar sobre a leitura. É uma violência com a sutileza da relação entre leitor, escritor e texto, bem como reduz para perto de zero qualquer traço da satisfação oferecida pela ficção — diz Miéville, em entrevista ao GLOBO. — É claro que Beszel e Ul Qoma têm a intenção de ecoar aspectos de uma vida urbana moderna, incluindo as questões de classe e etnia. Mas, para a ficção ser interessante, é imperativo que haja espaço, ao lado das ressonâncias, para que ela desenvolva seus próprios significados.

Com “A cidade e a cidade”, Miéville ganhou praticamente todos os prêmios literários de fantasia e ficção científica de 2010, entre eles o Hugo, o Arthur C. Clarke, o BSFA e o World Fantasy Award. Além da descrição das duas cidades justapostas, o livro se destaca pelo vocabulário do narrador, que mistura inglês com dialetos da Europa Oriental. Seu tradutor para português, Fábio Fernandes, define bem, numa nota incluída no romance, a sensação de adaptar “A cidade e a cidade”: “Mais difícil do que traduzir um bom texto é traduzir um bom texto ruim”.

— Eu vinha lendo muito da literatura do Leste Europeu, em tradução para o inglês. Apesar de obviamente todos esses idiomas terem suas próprias cadências e especificidades, encontrei nas traduções um tipo específico de poesia, estranha e precisa, que ligeiramente afeta a leitura em inglês. É uma forma de estranhamento criada pela tradução, e eu quis passar esse estranhamento no meu livro. A intenção era que ele fosse lido em inglês como uma obra muito bem traduzida a partir de um idioma sem nome — diz Miéville. — Quanto às descrições das cidades, eu quis fazer com que elas parecessem concretas, reais, familiares apesar de estranhas. Uma cidade não é essencial para um romance policial, mas é certamente um elemento importante para a tradição das histórias sobre crimes.

O planejamento da editora Boitempo é lançar pelo menos um livro de Miéville por ano: para 2015, está programado “Perdido Street Station”; para 2016, “The scar”; e para 2017, “Iron Council”. O trabalho do autor inglês, pouco usual para quem acredita que a literatura fantástica se resume a hobbits carregando anéis ou nobres mimados brigando para ficar com um trono de ferro, tem ajudado a renovar o gênero e elevado Miéville a um status de herói para seus leitores. Mas ele, professor de escrita criativa na Universidade de Warwick, na Inglaterra, pondera:

— É frustrante quando a variedade da ficção fantástica é esquecida. Há uma tradição incrivelmente rica de histórias fantásticas. Mas, ao mesmo tempo, os geeks reclamam tanto da falta de diversidade que, apesar de concordar com o tom, eu fico um pouco cansado de ouvi-los. A atitude defensiva do leitor de fantasia, embora compreensível, às vezes pode mascarar um paroquialismo invertido ainda mais persuasivo — diz.

Outro campo de atuação de Miéville é a política. Ao lado do diretor Ken Loach e de outros intelectuais e artistas britânicos, ele foi um dos signatários da fundação do partido de esquerda Left Unity, lançado em novembro de 2013. Por isso, é comum jornais e revistas chamarem Miéville de “escritor marxista”, termo que ele não rejeita.

— Eu fico um pouco surpreso que minha posição política seja um assunto tão grande para as pessoas — diz. — Posso separar minha atividade política da minha ficção: ir para a porta da embaixada dos EUA em protesto pela morte de Mike Brown em Ferguson é uma coisa, enquanto escrever um livro de fantasia é outra bem diferente. Mas eu não posso separar minhas ideias políticas dos meus livros, porque a maneira como vejo o mundo, o que me inspira, o que me traz prazer e raiva, leva a sentimentos inextricáveis da minha ficção. A ficção não é uma mera expressão, um simples reflexo do pensamento político, até por isso podemos admirar autores com os quais não concordamos. Mas não há como separar as duas coisas.