Por Dani Fechine, G1 PB


Júnior Paz se formou em medicina pela UFPB no início de 2019 e já trabalha como médicos em Mamanguape — Foto: Júnior Paz/Arquivo Pessoal

Júnior Paz só tinha dez anos quando precisou trabalhar pela primeira vez. Recorda com alegria, porque tem orgulho da luta dos pais pela sobrevivência. Na cabeça, estava sempre claro o objetivo que queria: ser médico. Se demoraria longos 30 anos, não teria problema. Mas caminhou. Paulo Jacinto, ainda criança, vendia mungunzá na feira com a avó. Criado para ter um trabalho, decidiu se dedicar aos estudos para mudar de vida. Regina Melo, com toda dificuldade para se manter em uma universidade particular, se tornou psicóloga. O que há em comum entre eles é que superaram as dificuldades e falta de oportunidades com a ajuda de políticas públicas sociais, como cotas, ProUni e Fies.

Aos trancos e barrancos, subindo um degrau de cada vez, e sempre atrás de pessoas vestidas de privilégios, em 2019, Júnior, conhecido como Paz, seu sobrenome, colocou o diploma da Universidade Federal da Paraíba na mão. Era o filho de um pasteleiro e de uma doméstica, fruto de escola pública e das políticas públicas e sociais, chegando no topo mais alto de um sonho.

Hoje, com 31 anos, Paz conta com orgulho a história da mãe, que também envolveu o passado e o presente da sua própria história. A mãe, dona Josineide Barbosa, só tinha estudado até a 6ª série do ensino fundamental (atualmente, 7º ano). O pai, até a 7ª (8º ano) . Se casaram ainda jovens, ela tinha apenas entre 16 e 17 anos. Tiveram filhos no mesmo ano e começaram a trabalhar ainda com a juventude pesando nas costas. São duas meninas e dois meninos, um deles adotado, porque se tem algo que sempre foi grande na família de Paz foi o coração.

A mãe trabalhou como empregada doméstica durante toda infância de Paz, que compartilhava a rotina ainda com outros três irmãos. Seu Regivaldo, conhecido como Lucas, trabalhava com aquilo que aparecesse. Não tinha renda fixa, mas recebiam ajuda do Governo Federal por meio do programa Bolsa Família, que poderia variar entre R$ 50 e R$ 95 mensais. Júnior não lembra com detalhes quando começou e quando parou de receber o Bolsa Família, mas sabe que foi ele que tomou a iniciativa de conversar com os pais e dizer: "não precisamos mais".

Júnior Paz durante fotos para a formatura, em João Pessoa — Foto: Júnior Paz/Arquivo Pessoal

Na década de 1990 ainda era forte a ideia de que nordestino precisava ir para o Sudeste caso quisesse melhorar de vida. Então a família ia, passava um ano lutando pela sobrevivência e voltava para o Nordeste. Mas estavam sempre tentando. O trabalho era de segunda a sábado e Paz, com apenas seis anos, ficava sozinho em casa com os irmãos.

“A gente sempre morou em comunidades. Duas das nossas casas eram dentro da favela. Teve uma casa que era um cômodo. Você sabe o que é morar em uma casa de um cômodo com chão de barro? Cinco pessoas? Tinha um banheiro sem porta, só com uma cortina, de tijolo. A energia era 'gato'. Lá faz muito frio. Meu pai pegava um fio elétrico e colocava dentro da água para esquentar. Era com essa água que a gente tomava banho”, conta Paz.

Inclusive, foi nessas idas e vindas que Paz veio ao mundo. Ele costuma dizer que "apenas foi feito em São Paulo". A sua vida e história estão mesmo na Paraíba, onde também foram nascidas e construídas as histórias dos pais.

Quando viajar para o Sudeste deixou de fazer sentido, em meados dos anos 2000, a família decidiu voltar e fincar os pés na Paraíba. “Com todas as dificuldades, a gente decidiu ficar aqui na Paraíba”, revela Júnior. É como se estivessem voltando para casa. E, de fato, estavam.

Nordestino é, antes de tudo, um forte

Na Paraíba, a escola pública foi o rebento de Paz. Estudava em Bayeux, perto de casa. Não tinha condições de estudar em um colégio particular e colocou na cabeça que “queria estudar na melhor escola pública que eu pudesse”. Por isso, sempre foi um dos alunos mais esforçados da turma. Competia com ele mesmo. Criava metas. Em alguns anos, no 3º trimestre letivo, Paz já tinha média para passar em todas as disciplinas.

Colégio Lyceu Paraibano — Foto: Krystine Carneiro/G1

Querendo sempre melhorar, o desejo era estudar em João Pessoa e o objetivo final era o tão sonhado Lyceu Paraibano, escola pública de referência na capital. Primeiro, conseguiu a vaga no colégio estadual Olivina Olívia Carneiro da Cunha, escola bem próxima ao Lyceu. Dessa forma, acreditava que conseguiria chegar onde queria. Mas foi lá que tudo mudou. “O Olivina abriu muito a minha mente”, revela Paz. Foi lá onde ouviu falar na tão sonhada “escola técnica”. Na época, Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet). Hoje, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB).

Mesmo assim, Júnior ainda passou duas semanas estudando no Lyceu. Chegou onde queria e chegou, principalmente, onde sonhava. E quem dera apenas estudasse, como a maioria dos adolescentes da sua idade. Nessa fase da vida, ele trabalhava com os pais. Estudava de tarde e durante a noite ajudava no trabalho. Os pais vendiam pastéis e era na produção deles que Paz auxiliava.

“O Cefet, assim como o Olivina, ampliou muito meus contatos e visão de mundo. O fato de morar em um lugar humilde, você acaba criando um nicho, uma rede muito limitada. No Cefet, eu encontrei pessoas que gostavam de estudar e foi lá que eu decidi fazer medicina. Aliás, medicina eu sempre sonhei desde criança, mas foi um sonho que começou a parecer distante quando a realidade começou a bater na minha cara”, declara Paz.

Quando precisou prestar vestibular, em 2007, na Paraíba ainda acontecia o Processo Seletivo Seriado (PSS) como forma de ingresso na UFPB. Paz começou a se dar conta que não tinha “condições, capacidade, experiência”, nas palavras dele, para atingir uma média para passar em medicina.

“Era a minha realidade, realidade de quem estudou em escola pública, que não teve educação de base de qualidade, que teve que trabalhar para se sustentar em casa, não teve instrução, não teve estímulo, porque meus pais tinham instrução baixa”.

Diante dessa realidade, Paz abriu mão de um sonho maior, para começar a construí-lo. Decidiu, então, fazer vestibular para o curso de farmácia. Das cem vagas, ficou entre os dez primeiros. No entanto, com a nota que fez, não chegava sequer perto das últimas vagas para medicina.

Júnior atua como médico em dois PSFs em Mamanguape, na Região Metropolitana de João Pessoa — Foto: Júnior Paz/Arquivo Pessoal

'Quando eu entrei na polícia, o meu primeiro objetivo era sair da polícia'

Nesse mesmo momento, surgiu a oportunidade de fazer o concurso de soldado da Polícia Militar da Paraíba. “Meu pai insistiu, e eu nunca pensei em fazer, mas era um salário bom e eu fiz sem compromisso. Meu pai acreditou em mim mais do que eu”, confessa.

Fez a prova da polícia em duas horas e quinze minutos, mas só foi saber do resultado três dias depois de divulgado. Sem computador, usava uma lan house quando precisava. Eram 300 vagas e Paz estava dentro delas. O resto só dependia dele. “Teste físico e de saúde, que inclusive foi muito caro para meu pai pagar, mas no final deu tudo certo”, disse.

Terminou o ensino médio em 2007 e, na semana seguinte ao último dia de aula, começou o curso da PM. Por conta disso, trancou a graduação de farmácia. “Quando eu entrei na polícia, o meu primeiro objetivo era sair da polícia. Mas era uma fonte de renda, eu comecei a poder pagar um cursinho de boa qualidade e, na época, não tinha cotas ainda”, declara.

Dentro da Polícia Militar, conheceu o curso do CFO Bombeiro, no mesmo Centro de Ensino, localizado no bairro de Mangabeira. “Vi que era legal, que era gratificante e que atendia pré-hospitalar. E imaginei que eu podia ter uma ascensão financeira profissional e trabalharia com algo que me deixaria mais à vontade, que é salvar vidas ao invés de combater a criminalidade”, frisou.

Naquele momento, esse passo seria mais seguro do que continuar tentando ser aprovado em um vestibular de medicina. O curso de soldado terminou em dez meses. Paz estudou durante o ano inteiro de 2008 e fez o vestibular para o CFO. O primeiro lugar, em 2009, tinha o nome de Júnior Paz. Foram três anos de curso e, ao final, também obteve médias que o colocaram na primeira colocação geral do curso.

Formatura de Júnior Paz em medicina, pela UFPB; na foto, Paz, o pai Lucas e a mãe Josineide — Foto: Júnior Paz/Arquivo Pessoal

Fim da escada

O ano de 2012, então, já com certa estabilidade financeira, foi inteiro dedicado aos estudos e ao vestibular de 2013. Passados quase cinco anos, finalmente Paz tinha dinheiro para pagar um bom cursinho e poder competir por uma vaga de medicina. Neste mesmo ano, foi sancionada a lei que garantia a reserva de 50% das matrículas por curso e turno em universidades federais a alunos de escola pública.

O sistema, no entanto, começou a ser implantado gradativamente, até chegar na porcentagem prevista de 50%. “Até dentro das cotas é difícil, aparentemente parece fácil, mais simples. Mas o nível está ficando muito alto. As exigências diminuíram. Mas é um meio para se chegar lá para quem não teve muitas oportunidades na vida”, declarou.

Paz entrou para o curso de medicina na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 2013. Foram seis anos dentro da instituição. E, em janeiro de 2019, enfim levantou o diploma. Estava formado. Filho das políticas públicas do Governo Federal, Paz finalmente chegou onde sempre quis. Aos 31 anos de idade, não deixou para trás nenhum degrau que precisou subir. E guardou bem na memória todos os obstáculos que derrubou. Era um filho de doméstica e pasteleiro se formando em medicina, em uma universidade federal.

Conhecido como Paz, Júnior encerrou um ciclo longo até chegar na formatura de medicina — Foto: Júnior Paz/Arquivo Pessoal

'Cotas são instrumento de justiça social'

O sonho de Paz de fazer medicina percorreu toda a sua infância. Se pudesse escolher, teria tido condições e capacidade de ser bem preparado para realizar o desejo em 2007, seu primeiro vestibular - no qual foi aprovado em farmácia. Mas teve que peregrinar. Primeiro a estabilidade financeira, que consequentemente lhe renderia a possibilidade de um ensino eficaz. “Um cursinho que me elevasse a concorrer no mesmo nível que outras pessoas”, explicou.

“Essa é a realidade das pessoas que sempre estudaram em escola pública e pessoas que vêm de origem humilde. É como se você tivesse que percorrer um caminho muito maior, com muitas dificuldades, para atingir o mesmo objetivo de pessoas que têm recursos e privilégios, pessoas que atingem aquele ponto com 17 anos”, disse Paz.

Júnior tinha 25 anos quando entrou no curso de medicina. Seus colegas de turma eram, principalmente, jovens de 17 e 18 anos. “Essa é a diferença visual gritante da realidade. Eu era um dos mais velhos da minha turma em 2013”, observa.

Quando passou para o CFO, não tinha cotas. Foi o primeiro lugar no curso mais concorrido daquele ano. Mas se tivesse utilizado a média para tentar passar em medicina, sem cotas, na melhor das hipóteses, alcançaria a posição 98 de um total de 100 vagas. Estaria dentro do curso, é verdade, mas não teria conquistado tudo que conseguiu até aqui. “O CFO era mais concorrido, mas a média era menor. Eu poderia ter tentado medicina naquele ano, mas se eu pudesse voltar, faria do mesmo jeito. Porque eu passaria seis anos do curso [de medicina] sendo policial e não era isso que eu queria”, destaca.

Quando o sistema de cotas foi instaurado em 2012, a polêmica em torno dele foi grande, principalmente entre os alunos de escolas particulares. Eram metade das vagas sendo destinadas a um grupo de pessoas. Muitos eram contra.

“As pessoas falam que tem que investir na educação de base e não em cotas. Eu concordo. Mas e as pessoas que estão aí hoje? Como reparar o dano que foi feito na vida delas pelo fato de o Brasil não ter educação de base de qualidade?”, se questiona.

O melhoramento da educação básica é, de longe, uma estratégia de rápida resolução. Pelo contrário, a sua eficácia é a longo prazo. “Se faz uma educação de base boa agora, a pessoa só vai fazer vestibular e sentir isso na pele daqui a dez anos. E as pessoas que estão passando por isso agora? Aí estão os programas sociais: beneficiar as pessoas agora”, enfatizou Paz.

Para o médico e bombeiro, as cotas são um instrumento de justiça social. É a forma que o Brasil encontrou de ser justo dentro da realidade em que se vive: "um país predominantemente negro, pardo e pobre".

De acordo com o último censo demográfico do IBGE, em 2010, dos 190.755.799 brasileiros, 50% eram negros ou pardos e 29,8% da população sobrevivia sem nenhuma renda ou com até um salário mínimo. “Quando você entrava na sala de medicina, a turma era de maioria branca e rica. Então alguma coisa estava muito errada”, destacou.

Júnior Paz e os irmãos, durante a colação de grau, em João Pessoa — Foto: Júnior Paz/Arquivo Pessoal

'Meu irmão não vai precisar de cotas'

Quando a família já não precisava mais do Bolsa Família, Paz fez questão de conversar com todos e dizer: “podemos nos sustentar sozinhos”. Isso só aconteceu depois de viverem na pele a raiz da violência, nas favelas de São Paulo. Lá, o pai de Paz foi assaltado. A polícia era vista por ele como uma ameaça. O morro era um refúgio e ao mesmo tempo um caos. Voltaram à Paraíba para viverem longe da violência que diariamente presenciavam.

Hoje médico e capitão do Corpo de Bombeiro Militar da Paraíba, Júnior Paz "chegou lá", onde nem ele sabia exatamente, mas tinha certeza que era bem distante da vida que levou na infância. Precisou de incentivos e empurrões, porque não é fácil levantar quando a realidade pesa muito nas costas. Trabalha em dois locais de Programa Saúde da Família (PSF) em Mamanguape, além dos plantões no Corpo de Bombeiros. Tem casa própria e já consegue ajuda a família.

Dona Josineide Barbosa voltou a estudar em 2004. Hoje é psicopedagoga formada pela UFPB, onde também ingressou pelas cotas. Depois, se formou em letras em uma universidade particular por ensino à distância e agora já está na sua segunda pós-graduação, financiada por Paz, e trabalha como psicopedagoga. Seu Lucas foi até a oitava série. Hoje ele ainda faz encomendas de salgados, com funcionários que auxiliam na produção e com um lugar especializado para isso.

A família não precisa mais do Bolsa Família. O irmão de Paz, que está perto de também tentar vestibular, não será cotista. “Ele estuda em uma escola particular paga por mim. A educação e os programas sociais transformaram a vida da minha família”, confessa.

Universidade Federal da Paraíba (UFPB), campus João Pessoa — Foto: Krystine Carneiro/G1

Lei de cotas

A lei das cotas foi sancionada em agosto de 2012 e garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos.

De acordo com o Ministério da Educação (MEC), as vagas reservadas às cotas (50% do total de vagas da instituição) são subdivididas — metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Nos dois casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Apesar da proposta dos 50%, as cotas foram implementadas gradualmente. Em 2013 foram reservadas, pelo menos, 12,5% do número de vagas ofertadas atualmente. A implantação das cotas aconteceu de forma progressiva ao longo dos próximos quatro anos, até chegar à metade da oferta total do ensino público superior federal.

Paulo Jacinto, atualmente, trabalha na Câmara Municipal de João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1

Do ProUni para a aprovação em 13 concursos

Quando Paulo Jacinto, de 27 anos, ingressou na universidade, no curso de direito, ele já era “doutor” para a família pobre, de pais com pouco estudo, em um cantinho no bairro de Mandacaru, em João Pessoa. Em 2005, a mãe de Paulo cometeu suicídio. Foi quando ele e o irmão passaram a ser criados apenas pelo pai e com a ajuda de uma tia, que um ano depois também morreu. A partir desse momento, os estudos não eram mais prioridade. O pai dizia que ele precisava trabalhar. Mas desobedecendo a ordem paterna, Paulo entendeu que estudar era sua única opção.

A infância de Paulo já poderia registrar fácil como seria o seu futuro, se ele não tivesse sido teimoso em mudar o destino. Com muita dificuldade, vendia mungunzá e tapioca com a avó, no bairro Treze de Maio. Todos os dias pela manhã, ia junto com os primos. A avó colocava o caldeirão na cabeça e cada uma das crianças ajudava com o que podia. Voltavam para casa com 50 centavos, R$ 1, que na época, faziam uma boa diferença no fim do dia.

A mãe foi uma grande incentivadora dos estudos. Não queria que os filhos faltassem aulas, dava conselhos e os criou sempre colocando os dois no caminho que levava à educação. No entanto, depois da sua morte, as coisas mudaram um pouco. “Eu fiquei impactado, não tinha reação. Isso foi formando minha personalidade, hoje sou uma pessoa mais reservada”, revela Paulo.

Paulo Jacinto já foi aprovado em 13 concurso públicos, depois de formado em direito, em João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1

Estudou o ensino fundamental e médio em escola pública, normalmente perto de casa. No fim do ensino médio, entrou no Lyceu Paraibano e se apegou ainda mais aos estudos. Para o Enem, não fez cursinho. Aproveitou tudo que acontecia nas aulas para tentar absorver o máximo. Com isso, conseguiu uma nota de 960 pontos na redação. Com uma boa média geral, a bolsa integral do ProUni esperava por ele.

Na família, Paulo Henrique foi o primeiro universitário. Por isso, já era considerado o “doutor” da família e incentivou outras pessoas a também seguirem o caminho dos estudos. “Eu queria muito mudar de vida, queria muito viajar, sempre fui muito sonhador. E ficava me perguntando como iria fazer isso”, disse.

Quando, enfim, entrou na universidade, mudou completamente a mentalidade. “Já sentia dificuldade de leitura, porque tinha que ler muito e comprar muitos livros. Lá tinha filhos de empresários, de juízes. Eu sabia que eu tinha que me destacar, me interessava, tirava notas boas, mas para comprar os livros e para ir pra faculdade, comecei a sentir dificuldade”, conta Paulo.

Direito sempre foi um sonho, mas nem sempre uma realidade. No começo, queria ser diplomata, mas quando começou a universidade e conheceu o curso de direito, não teve mais dúvidas do que gostaria para o futuro. Na família, nunca teve referência na área. “A motivação veio de mim mesmo. Eu sou o responsável por onde eu estou hoje. O meu sucesso depende da minha motivação. A maré estava contra mim. Então eu mesmo me motivei”, revela Paulo.

Jovem que fez ensino superior pelo ProUni é aprovado em 13 concursos

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ProUni era oportunidade de realizar sonho

Quando Paulo fez vestibular, já estava pensando em todas as possibilidades de entrar na faculdade. Fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com o objetivo certo de aplicar para o Sisu ou para o ProUni. A mudança de mentalidade foi a grande diferença que o ProUni trouxe na vida de Paulo.

“Se não fosse o Prouni, nada seria possível. Não teria como entrar na faculdade, ainda teria uma mentalidade muito pequena. Eu gosto de me comparar com pessoas que sonham. O Prouni é abrir as portas para pessoas pobres, pessoas que não têm condições de entrar na faculdade, é igualar o rico e o pobre por cima”, declara Paulo.

Mas dizer que foi fácil não seria justo. Na universidade, já sentia a dificuldade, não apenas com a leitura, mas até para ir até a aula. O único meio de transporte que lhe cabia era o ônibus e muitas vezes não conseguia chegar na hora certa. Por isso, no terceiro semestre do curso começou a estudar para concursos. Estudava como dava, inclusive da forma errada. Quando percebeu o erro, se dedicou ao máximo. Começou a ler livros de como estudar para concurso e hoje já foi aprovado em 13.

Atualmente, Paulo trabalha na Câmara Municipal de João Pessoa, no setor de Recursos Humanos, e continua estudando para concursos da procuradoria. Quando foi aprovado no primeiro concurso, ainda estava no quarto semestre do curso e a situação mudou. Começou a comprar livros, porque antes tirava xerox de quase tudo, inclusive do Vade Mecum. Em menos de um ano estudando para concurso, ele já era funcionário público.

“Foi muito orgulho de mim mesmo e minha família também muito orgulhosa por mim”.

A formatura foi um momento para deixar marcado. “Chorei demais. E eu sou daqueles que reconheço, olho para trás e vejo tudo que eu já passei. Ver todo minha família lá… Só faltou minha mãe”, Paulo fala emocionado.

Paulo Jacinto foi aprovado em um mestrado e em setembro passa a morar em Lisboa — Foto: Dani Fechine/G1

Depois disso, já fez duas pós-graduações e foi aprovado no mestrado profissional em direito constitucional, em Portugal. Em setembro, Paulo deixa o apartamento onde mora com o pai, aposentado, no bairro do Bessa, e vai, pela primeira vez, ter a experiência de morar sozinho. Lisboa começa a ser o novo lar a partir de setembro. Enquanto isso, Paulo quer deixar tudo organizado para o pai, que passa também a morar sozinho.

“Os maiores sonhos da minha vida eu já realizei. Mas ainda quero melhorar a condição da minha avó, reconstruir a casa dela e que ela não precisasse fazer mais o que ela faz. A meta é ser advogado da União, mas por enquanto estou tentando concursos para procuradoria”, esclarece.

Paulo é enfático em dizer que o ProUni foi essencial na sua trajetória. “Eu não teria chegado onde cheguei sem ele, porque não tinha condições financeiras para isso. O ProUni abriu as portas pra mim. Sempre tive muito orgulho de dizer que eu não pagava a faculdade. Pra mim o ensino superior foi essencial”, diz.

E para quem lê e ouve a história de Paulo, se espelhar não é o único conselho que ele dá.

"Eu tenho três conselhos: elas precisam querer, sonhar, ter vontade, o sucesso delas só depende delas. Precisa ter disciplina, porque envolve renúncia. E, terceiro, precisa ter fé de que esse é o caminho certo e que sua hora vai chegar. A motivação é o início, mas é o hábito que vai fazer você chegar no objetivo final”, declara.

ProUni: Universidade para Todos

Desde a sua criação, em 2005, o Programa Universidade para Todos (Prouni) já atendeu a mais de 2,4 milhões de estudantes em todo o país, sendo 69% com bolsas integrais.

Tanto o Prouni quanto o Sisu integram as políticas de acesso ao ensino superior do Ministério da Educação, e selecionam os candidatos com base no desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Quanto maior a nota, maior a chance de conseguir ser aprovado.

Veja histórico de bolsas do ProUni distribuídas na Paraíba
De 2005 a 2018 a oscilação é positiva
Fonte: MEC

A bolsas são distribuídas de acordo com o desempenho do candidato no Enem. A média é calculada somando-se as notas das cinco provas do exame (Redação, Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Ciências da Natureza). Quanto maior a média, maior a chance de o aluno conquistar a bolsa. O candidato pode se inscrever em até duas opções de bolsas.

De 2005 a 2019, a quantidade de bolsas ofertadas na Paraíba oscilou de forma positiva. Quando não aumentou, manteve a mesma média do ano anterior. No entanto, houve uma redução de 44%. No primeiro semestre de 2018, o Governo Federal ofertou 4.624 bolsas para a Paraíba. Já no primeiro semestre de 2019, o número de bolsas caiu para 2.571.

Relação de distribuição de bolsas no 1º semestre de 2018 e 2019
Número de bolsas distribuídas caiu mais de 40%
Fonte: MEC

Corte de verbas

O Ministério da Educação fez, em abril deste ano, um bloqueio de cerca de 30% na verba das instituições de ensino federais do país, valendo para todas as universidades e todos os institutos.

Na Paraíba, o bloqueio de 30% deve resultar em uma redução total de cerca de R$ 91 milhões nos orçamentos inicialmente previstos pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB - R$ 44 milhões), pelo Instituto Federal da Paraíba (IFPB - R$ 20 milhões) e pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG - R$ 27 milhões), conforme os valores informados pelas administrações ao G1, nesta sexta-feira (3). Veja o que dizem as instituições e quais os impactos previstos.

Regina Melo é psicóloga e usou o Fies para concluir graduação, em João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1

'Sem o Fies eu não teria terminado o curso'

Regina Melo tem 36 anos, é psicóloga e orgulhosa da profissão. Vaidosa, o batom rosa não nega a felicidade de fazer o que ama. Hoje, ela trabalha em dois locais e divide a rotina entre a cidade de Pilar e João Pessoa, distantes cerca de 60 km uma da outra. Mas para chegar até essa fase da vida, precisou passar por um período de cinco anos de curso, que acabou se prolongando por mais oito anos.

Nascida e criada em Pilar, quando precisou começar o estudos para valer, ia e voltava de João Pessoa em um ônibus da prefeitura, para ter a oportunidade de estudar em uma escola particular, já que na cidade natal não tinha. Foi um esforço dos pais que parece ter dado certo.

Aos 18 anos, a família inteira se mudou para a capital. O pai, com o diploma de duas graduações, é até hoje professor. Com muito esforço, pagou a escola particular da filha e também do filho mais novo.

Sonho de ser psicóloga

Quando fez o vestibular, em 2000, a UFPB fazia a seleção pelo Processo Seletivo Seriado (PSS). Estudava em uma escola privada, na capital, com aulas de manhã e de tarde. Optou por uma instituição de ensino superior porque a linha de estudo do curso era voltada para algo que ela tinha mais interesse. “No início eu queria medicina veterinária, mas com 13 anos comecei a despertar para a psicologia”, relata Regina.

Regina Melo tem 36 anos e passou oito anos para quitar o Fies por completo — Foto: Dani Fechine/G1

Começou o curso com o pai pagando a mensalidade, que custava pouco mais de R$ 500. No entanto, só quando entrou, de fato, na universidade, conheceu o Fies. Até então não sabia como seria o futuro na instituição, já que os custos ficariam caros demais para os pais.

No primeiro semestre, se inscreveu no Fies, mas não foi aprovada. “Na época era muito difícil. O fiador precisava ter uma renda muito superior à apresentada, como garantia caso a gente não conseguisse pagar”, enfatiza. No segundo semestre, então, conseguiu a bolsa de 70%. O pai passou a pagar apenas 30% do curso. O restante deveria ser quitado só após a formatura.

As dificuldades na graduação não foram tantas. Com a facilidade de não pagar a universidade de forma integral, acabou investindo em outras possibilidades. E Regina também aproveitou bem a biblioteca que a instituição fornecia, para evitar a compra de livros.

Em 2006, veio a formatura e a viagem de mais de uma hora entre Pilar e João Pessoa continuou, só que agora o caminho era feito para trabalhar. Com um ano de carência estabelecido pelo Fies, Regina começou a quitar a dívida com o Governo Federal em 2007 e terminou em 2015.

Regina viaja para Picuí, onde é coordenadora de um Capes, para trabalhar pelo menos duas vezes por semana — Foto: Dani Fechine/G1

O pai sempre ajudou com as parcelas de quase R$ 400. “Meu pai sempre foi minha referência de estudo, foi muito humilde, batalhou muito e quis se formar. Terminou duas graduações, passou em concurso, é professor. Sempre me espelhei muito nele. Ele me incentiva até hoje”, revela Regina.

Sem o Fies, portanto, Regina acredita que não teria terminado o curso. “Porque o pai já tinha dito que não iria pagar, não tinha condições. Os três primeiros meses, inclusive, ele não pagou. Quando conseguiu o Fies, o programa abonou o curso inteiro”, destaca.

Conseguiu um emprego em uma escola, como psicóloga, logo depois que se formou. Depois surgiu a oportunidade para trabalhar na Secretaria de Estado da Educação, mas não era bem a área que queria. Foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar em Pilar, onde é coordenadora de um Capes e vai pelo menos duas vezes por semana. Depois passou no concurso onde trabalha atualmente, na prefeitura de João Pessoa, duas vezes por semana, tratando pessoas com deficiência física e mental.

“Tenho dois filhos e hoje é muito mais fácil para tudo. Até questão de escola, tem mais opções”, diz Regina. Com oito e três anos, os pequenos ainda não estão preocupados com o futuro, mas já refletem o que querem ser quando crescer.

“O Fies foi fundamental porque se não tivesse o Fies eu não tinha nem conseguido concluir, foi a segurança que eu tive para concluir a universidade”, declara Regina.

Em João Pessoa, Regina trabalha com paciente com deficiência física e mental — Foto: Dani Fechine/G1

Ter terminado o curso e já começar trabalhando na área de formação foi a realização de um sonho. Para Regina, as pessoas não podem jamais desistir.

“É de fundamental importância correr atrás de um sonho e seguir a profissão que quer. E aproveitar as oportunidades, como aproveitei o Fies”, relata.

Fies: antes e depois

Criado em 2001 como um programa federal para financiar a graduação no ensino superior particular, o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) passou, em 2010, por mudanças que fizeram com que o número de contratos se multiplicasse e chegasse a mais de 1,5 milhão, em 2017. Em 2015, para conter a rápida e imprevista expansão, o programa passou a funcionar com alguns limites de vagas e nova taxa de juros, privilegiando estudantes mais pobres e nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Taxa de juros:

  • Antes de 2010: Até outubro de 2006, era de 9%. Depois, até agosto de 2009, passou a ficar entre 3,5% e 6,5%, dependendo da natureza do curso (alguns cursos eram considerados prioritários).
  • Entre 2010 e 2015: Em março de 2010, na grande reformulação do programa durante o governo Lula, a taxa de juros foi fixada em 3,4% ao ano para todos os cursos.
  • Desde julho de 2015: O MEC alterou as regras e fixou a taxa de juros em 6,5% ao ano para todos os cursos.
  • A partir de 2018: Os juros dependem da modalidade de contrato, podendo oscilar entre zero, 3% e outro índice ainda não definido.

Prazo para pagamento:

  • Antes de 2010: O chamado "período de carência" era de seis meses.
  • 2010-2017: Um novo decreto aumentou as regras de carência para 18 meses.
  • A partir de 2018: Os estudantes terão 14 anos para liquidar o financiamento, considerando, por exemplo, um curso com mensalidade média de R$ 1,2 mil.

Teto da renda familiar:

  • Antes de 2010: Não havia teto máximo de renda familiar para o estudante.
  • Entre 2010 e 2015: Na reformulação, o Fies passou a ser estendido para pessoas com renda familiar bruta de até 20 salários mínimos.
  • 2015 - 2017: O Fies restringiu o teto de renda familiar para privilegiar estudantes mais pobres, e passou a operar com um limite de renda per capita de 2,5 salários mínimos por mês.
  • A partir de 2018: O limite será de três salários mínimos de renda familiar per capta para a modalidade 1, e de cinco salários mínimos de renda familiar per capta para os demais tipos de contrato.

Prioridade regional:

  • Antes de 2015: Não havia recorte de prioridade para regiões ou estados. E 60% dos contratos eram com estudantes de estados do Sul, do Sudeste ou do Distrito Federal.
  • 2015 - 2017: O Fies passou a priorizar o atendimento de alunos matriculados em cursos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (excluindo Distrito Federal).
  • A partir de 2018: Na modalidade Fies 2, os beneficiados serão alunos do Norte, Nordeste e Centro Oeste.

Processo de seleção:

  • Antes de 2010: O Ministério da Educação fixava prazos para os estudantes se inscreverem no processo seletivo.
  • Entre 2010 e 2015: O MEC passou a permitir que estudantes se inscrevessem pela internet em qualquer período do ano (entre janeiro e junho para financiamentos relativos ao primeiro semestre, e entre julho e dezembro para financiamentos relativos ao segundo semestre).
  • 2015 - 2017: O Fies voltou a ter um processo seletivo com períodos definidos, e ainda passou a exigir uma nota mínima de 450 pontos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para conceder o financiamento aos estudantes.
  • A partir de 2018: MEC não deu detalhes sobre eventuais mudanças.

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