• Natacha Cortêz, com colaboração de Kellen Rodrigues
Atualizado em

Na madrugada de 9 de Agosto de 2014, Themis (aqui protegida por um pseudônimo), hoje com 27 anos, foi a uma festa na USP que comemorava os jogos universitários das faculdades de arquitetura e urbanismo do estado de São Paulo, chamados de InterFAU. Ao final do evento, "pré-InterFAU", ela e uma amiga, que chamaremos de Atena, aceitaram a carona oferecida por Felipe Antoniazzi Prior, à época aluno do curso de arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Themis disse se encontrava "bastante alterada" na ocasião pois havia consumido bebida alcóolica. Segundo ela, Felipe teria deixado Atena em casa, e minutos depois, parado o carro na rua e desligado o motor. Neste momento, teria se lançado sobre Themis e começado a beijá-la, passando a mão pelo seu corpo. Em seguida, a arrastou para o banco de trás do veículo.

ALERTA DE GATILHO: a partir daqui os relatos podem ser fortes. Há detalhes de estupro e violência sexual.

Marie Claire teve acesso exclusivo a um documento que acusa formalmente o ex-BBB de violentar mulheres entre os anos de 2014 e 2018. Conversamos com as vítimas e suas advogadas, que explicam o caso. Procurado pela reportagem, Felipe não quis se posicionar (Foto: Karen Ka)

Marie Claire teve acesso exclusivo a um documento que acusa formalmente o ex-BBB de violentar mulheres entre os anos de 2014 e 2018. Conversamos com as vítimas e suas advogadas, que explicam o caso. Procurado pela reportagem, Felipe não quis se posicionar (Foto: Karen Ka)

Conforme depoimento que Themis concedeu às suas advogadas e presente na notitia criminis (protocolada no Departamento de Inquéritos do Fórum Central Criminal em 17 de março de 2020 por Maira Pinheiro e Juliana de Almeida Valente a fim de dar início a uma investigação criminal), ao qual Marie Claire teve acesso exclusivo, Felipe tirou a roupa dela e abriu a própria calça, deixando seu genital para fora. Devido à embriaguez, ela não conseguia oferecer resistência física, mas disse que falou não a ele muitas vezes, deixando claro que não queria ter relações sexuais. Felipe teria reagido dirigindo-se a ela aos gritos, dizendo “para de ser fresca, no fundo você quer, não é hora de se fazer de difícil” e, diante das seguidas negativas de Themis, insistido: “quer sim”. Neste momento, Felipe teria estuprado Themis.

Themis relatou que a violência do ato foi tamanha que causou uma laceração em seu lábio vaginal esquerdo, o que fez com que rapidamente sua roupa, o banco do carro e a roupa de Felipe ficassem ensanguentados. Por causa da dor, começou a chorar. Isso teria feito Felipe parar, ela acredita. Como a quantidade de sangue era grande, ele perguntou se ela queria ser levada ao hospital. Themis respondeu que queria ir para casa e "mais nada". Felipe assentiu, seguiu viagem, a deixou no portão de sua residência e foi embora.

Naquela mesma madrugada*, Themis foi ao hospital acompanhada da mãe que pediu para ver o ferimento e notou "um corte de cerca de três dedos de comprimento na região genital, profundo o suficiente para chegar até o músculo", como consta no documento. Precisou vestir uma fralda geriátrica para conter o sangramento e à mãe não quis dar detalhes do acontecido. No hospital, foi atendida por três médicas, para as quais também escondeu a violência que havia sofrido. Diante da pergunta de uma delas de “quem fez isso?”, Themis falou que havia sido um namorado. Em casa, ficou uma semana de cama, precisando de ajuda para andar e ir ao banheiro. Diz que teve dificuldade de abordar o estupro nas tentativas de começar um tratamento psicoterápico. Conta ainda que, cerca de um ano após o estupro, passou a vivenciar crises de pânico e precisava de apoio para ir e voltar do trabalho, tinha crises de choro no meio da rua e não conseguia sair do lugar. Em vários desses momentos, tinha flashes do estupro.

*ERRATA: a notícia crime não cita a palavra "madrugada" no momento da ida ao hospital, mas diz que Themis saiu de casa com a mãe depois do pai da vítima deixar a residência da família, o que costumava ser "bem cedo". 

"Tudo para mim se resume a uma grande agonia no peito", disse Themis a Marie Claire em uma conversa por telefone. "Simplesmente coloquei a violência que sofri debaixo do tapete por seis anos. Achei que não lidando com ela, sumiria em mim. Atrasei dois anos da minha faculdade por causa do estupro. Tranquei todas as matérias do curso porque vê-lo todos dias era torturante. Ele é um cara impulsivo, agressivo. O que mostrou no BBB não chega perto do que é na vida real. Tenho medo do que pode fazer, mesmo diante de uma acusação formal, com advogada e tudo. Mas não posso mais guardar esse mal para mim”, afirmou.

Ainda de acordo com o documento, durante os jogos InterFAU de 2016, no município de Biritiba Mirim, Felipe teria praticado o crime de tentativa de estupro contra a estudante Freya (também aqui sob pseudônimo), hoje com 24 anos. Segundo depoimento dela, ele se aproveitou de seu estado de embriaguez e a persuadiu a ingressar em sua barraca no camping dos jogos universitários após abordá-la em uma festa. Na barraca, aconteceram as tentativas de estupro - ela relata que Felipe tentou penetrá-la no ânus por duas vezes e, diante da negativa, disse com temor “Eu não quero! Não quero!” - a conteve fisicamente usando de sua força. Diz ainda que o estupro não foi consumado porque o empurrou usando os braços e pernas e conseguiu fugir. Apesar de ter entrado na barraca do acusado, Freya diz que quando percebeu que não havia camisinha para o sexo, se recusou veementemente a continuar a relação. Mas ele insistiu usando força física.

"Quando começou o BBB, vi um tuíte de uma garota que dizia que o Felipe tinha fama de assediador no Mackenzie. Foi quando entendi que a violência que sofri não era única. Mandei uma mensagem para garota e disse a ela que se aparecessem mais vítimas, me manifestaria. Dessa forma encontrei Themis, que me contou que além do estupro, tinha um boletim médico comprovando a laceração em seu genital", disse Freya a Marie Claire também em entrevista pelo telefone. A partir desse encontro, decidiram agir.

Nos jogos InterFAU de 2018, realizados no município de Itapetininga, Felipe teria cometido outro estupro. Dessa vez contra Ísis (também sob pseudônimo), 23 anos atualmente, de novo prevalecendo-se do estado de embriaguez dela. O relato é parecido com os anteriores. De acordo com Ísis, Felipe a chamou "com muita insistência" para entrar em sua barraca, onde iniciou relações sexuais com ela de maneira consentida. No entanto, após ele passar a agir de maneira agressiva, Ísis verbalizou que queria parar, o que não surtiu efeito. Segundo o documento obtido por Marie Claire, o acusado desferiu tapas no rosto e por todo o corpo de Ísis, mesmo depois de ela dizer que estava sentindo dor e, por diversas vezes, que desejava interromper a dinâmica. Chegou a chorar, conta, mas ele disse que não a deixaria sair dali. A uma certa altura, a teria colocado deitada de barriga para baixo e se pôs sobre seu corpo, de forma que ficasse imobilizada no chão. Mesmo após terminar o ato sexual, a empurrou e puxou fazendo com que ela caísse sobre o colchão e que não conseguisse se desvencilhar da situação. Ela apenas conseguiu sair de dentro da barraca depois que ele caiu no sono ao amanhecer. Naquele noite, na barraca ao lado, duas testemunhas escutaram Ísis chorar e pedir que o acusado parasse. "Uma voz feminina chorando. A voz dizia 'Para, tá me machucando' e continuava chorando." Essas testemunhas sustentam a versão de Isis no documento da acusação.

"As meninas que moram comigo gostam de assistir BBB. Imagina ter que ver a cara dele todo dia? Mas ao mesmo tempo, foi importante para que eu pensasse no passado. Eu achava que ia superar pelo esquecimento. E vê-lo na TV me despertou muitos gatilhos e medo de me relacionar com homens", afirmou Ísis a Marie Claire.

A maneira reiterada e habitual com que Felipe incorria nesse tipo de conduta levou à deliberação por parte da comissão organizadora do InterFAU do impedimento de seu acesso ao ambiente dos jogos universitários. O relato da violência sofrida por Ísis foi determinante para essa decisão. Segundo Maira, a advogada das vítimas, seu caso foi reportado à comissão Antiopressão do InterFAU, sem grandes detalhes, ainda durante os jogos. Na reunião de fechamento, em outubro de 2018, foi novamente mencionado, juntamente com outros relatos de assédio por estudantes de outras faculdades e, em face disso, foi decidido que Felipe não poderia mais participar dos eventos relacionados aos jogos.

No entanto, até a entrada de Felipe na vigésima edição do Big Brother Brasil, ninguém prestou queixa oficialmente. As denúncias começaram a aparecer nas redes sociais em janeiro, indicando que ele teria tido um mau comportamento durante o período da faculdade, especialmente contra as mulheres. O InterFAU foi questionada nas redes conforme mostra o tuíte de @morestydia, publicado no dia 27 de março. Em resposta à usuária, o InterFAU escreveu: "Temos ciência do que está acontecendo e nos pronunciaremos no momento certo". Tentamos contato com o InterFAU, que não se pronunciou até o fechamento deste texto.

Print do tuíte de @morestydia (Foto: Reprodução Twitter)

Print do tuíte de @morestydia (Foto: Reprodução Twitter)

Apesar do apoio de Neymar - que segundo a coluna da jornalista Patricia Kogut o convidou para assistir a um jogo do Paris Saint-Germain, na França -, do Corinthians e de outros perfis famosos, Felipe foi eliminado do programa na última terça-feira, 31 de março, com 56,73% dos votos. Sobre as acusações contra o participante, a Comunicação da Rede Globo informou à reportagem de Marie Claire, que no Brasil é publicada pelo mesmo grupo: "A Globo é veementemente contra qualquer tipo de violência, como se percebe diariamente em seus programas jornalísticos e mesmo nas obras do entretenimento, e entende que cabe às autoridades a apuração rigorosa de denúncias como estas".

O trâmite da acusação

A criminalista Maira Pinheiro explica como chegou às histórias de estupro e por que foi importante reunir testemunhas para formar a denúncia. "Esse trabalho começou no final de janeiro, a partir da conversa com a primeira vítima. Conforme tivemos informações sobre a existência de outras, percebemos que, para que os fatos fossem relatados com a devida profundidade e complexidade, teríamos que fazer uma investigação defensiva abrangente. E assim chegamos à segunda e à terceira vítimas e às demais testemunhas. Tivemos, inclusive, notícia de pelo menos uma outra, que acabou preferindo não depor." Além de Maira, a advogada Juliana de Almeida Valente também representa Themis, Freya e Ísis.

No Brasil, o crime de estupro consta no artigo 213 do Código Penal e consiste em: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. O estupro é tipificado como crime hediondo e é válido mediante violência real (agressão) ou presumida (praticado contra menores de 14 anos, alienados mentais ou pessoas que não possam oferecer resistência). Atualmente, a pena é de 6 a 10 anos de reclusão, aumentando para 8 a 12 anos quando há lesão corporal da vítima.

Sobre o fato das mulheres não terem registrado boletim de ocorrência na ocasião dos crimes, Maira diz: "Precisamos entender que lidamos com vítimas reais e não ideais. Acompanhando esse tipo de caso cotidianamente, percebemos que infelizmente é comum que entre a ocorrência da violência e a decisão de denunciar, passe um certo tempo. Isso tem a ver com o tratamento revitimizador que muitas dessas mulheres recebem junto às instituições, à falta de apoio de amigos e familiares e, de maneira geral, com a cultura do estupro, que normaliza situações de violência sexual e não cultua a valorização do consentimento. Todas as vítimas relataram sentimentos de culpa após os fatos. Isso é emblemático, pois revela como, diante desse tipo de caso, o senso comum tende a focar mais numa suposta 'responsabilidade' da vítima em não ser capaz de evitar os atos do agressor."

Ainda em relação à investigação por parte da acusação, Maira afirma que, infelizmente, a violência sexual investida contra as mulheres no ambiente universitário é algo comum. "No processo de pesquisa, encontramos diversos estudos sobre violência sexual no contexto universitário. Em todas as faculdades, nos mais diversos torneios universitários ou em festas, acontecem casos assim. É preciso pensar ações voltadas não só ao acolhimento de vítimas depois que os atos de violência e assédio acontecem, mas em ações de caráter preventivo que promovam uma reflexão profunda sobre questões relacionadas à masculinidade, ações direcionadas aos possíveis agressores, que, na maioria das vezes, sequer compreendem (ou estão dispostos a compreender) que suas ações podem ser vividas como graves e inesquecíveis atos de violência."

As advogadas entraram com um pedido de medidas cautelares para que Felipe fosse proibido de manter contato com as vítimas e testemunhas por qualquer meio de comunicação, inclusive por terceiros e internet. A solicitação foi acolhida pela Promotoria de Justiça do Estado de São Paulo e aguarda julgamento. Como os crimes aconteceram em três cidades diferentes, a investigação poderá ser realizada por um grupo especializado do Ministério Público ou se desdobrar em até três inquéritos policiais diferentes.

A reportagem procurou Felipe Antoniazzi Prior para que ele respondesse às acusações. O primeiro contato com seu assessor de imprensa foi feito na quarta-feira, 1 de abril. Em uma mensagem de texto, pedimos um número de telefone para apresentar as denúncias. Diante da ausência de resposta, a reportagem enviou o conteúdo das denúncias em mensagens privadas para o WhatsApp do assessor às 11h da manhã da quinta-feira, dia 2.  Diante do novo silêncio, ligou insistentemente em seu telefone celular. A resposta do assessor veio por WhatsApp às 12h40. "Isso aí é mentira” escreveu. Diante da insistência para que respondesse às acusações, o assessor respondeu: "acho que agora não", e logo depois "assim que eu entrar em contato com a família eu te aviso". Marie Claire deu o prazo um dia para que o assessor ou o próprio Felipe se manifestassem formalmente diante das acusações, o que não aconteceu, apesar das tentativas da reportagem. Um novo foi contato foi feito nesta sexta-feira pela manhã, avisando da iminência da publicação - outra vez sem resposta.

As polêmicas no BBB 20
Felipe Antoniazzi Prior nasceu em junho de 1992 em São Paulo, onde cresceu e vive até hoje. Aos 17 anos, ingressou no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e concluiu a graduação em 2014. Atualmente, aos 27, é sócio de uma construtora e de uma pizzaria na zona norte da capital paulista. Felipe mora com os pais, Fátima Cristina Prior e Edmir Prior, e tem um irmão mais velho, Fábio Prior.

O arquiteto é um dos personagens mais polêmicos do BBB 20. Logo no início do programa, o grupo formado por ele, Hadson, Guilherme, Lucas e Petrix foi acusado de machismo por parte do público após Hadson criar um plano para fazer com que algumas participantes comprometidas traíssem seus parceiros. A estratégia do quinteto deu errado e os amigos foram eliminados, restando apenas Felipe.

Com a saída dos amigos, ele passou a ser o principal alvo das colegas para os paredões e foi escolhido por Ivy para ocupar o quarto branco - um cômodo isolado da casa. Felipe escolheu Gizelly, com quem trocou beijos em uma festa, e Manu Gavassi para dividir o espaço e disputar um possível paredão.

Em sua participação, o arquiteto se envolveu em algumas brigas e chegou a afirmar que grita “até com a própria mãe”. Entre seus rivais estavam Pyong Lee e Daniel. Nas últimas semanas de jogo, Felipe ficou mais próximo de Babu. A aliança entre eles conquistou a simpatia de parte do público e ele se tornou um dos favoritos ao prêmio. O paulistano foi eliminado no dia 31 de março com 56,73% dos votos em uma disputa com Manu Gavassi e Mari Gonzalez. O embate foi recorde de votação na história do programa, somando mais de 1,5 bilhão de votos.
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