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Rio

Ministra do STM diz que militares mataram, mentiram e devem permanecer presos

Maria Elizabeth Rocha deu, até agora, o único voto contra a liberdade dos envolvidos na morte do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo
Oitenta tiros disparados contra o carro do músico Evaldo Rosa, assassinado por militares em Deodoro Foto: José Lucena / Futura Press
Oitenta tiros disparados contra o carro do músico Evaldo Rosa, assassinado por militares em Deodoro Foto: José Lucena / Futura Press

BRASÍLIA - Única voz divergente até agora no Superior Tribunal Militar (STM) contra a concessão de liberdade aos nove militares acusados de disparar mais de 83 tiros contra o carro de uma família - matando o músico Evaldo Rosa e o catador de papel Luciano Macedo -, a ministra Maria Elizabeth Rocha afirma ao GLOBO ter percebido de imediato que a ação, ocorrida no dia 8 de abril, tratou-se de um duplo homicídio e destacou o fato de os acusados terem apresentado uma versão falsa dos fatos a seus superiores no primeiro momento. No último dia 8, enquanto ela votou para que a prisão preventiva seja mantida, quatro ministros, e também o subprocurador-geral do Ministério Público Militar, Roberto Coutinho, se posicionaram a favor da liberdade para os acusados.

- Minha convicção veio da temeridade do ato perpetrado. Do horror de uma esposa e de um filho de 7 anos verem o pai e marido ser fuzilado na sua frente sem nenhuma razão, de um humilde catador de resíduos perder a vida para tentar ajudar outro ser humano, na falta de misericórdia dos réus - disse a ministra numa entrevista exclusiva ao GLOBO.

A intervenção da ministra, única mulher de um colegiado dominado por homens, pode mudar a história do caso que, até então, caminhava para a soltura dos investigados. Logo depois da participação dela, um pedido de vista suspendeu a votação. Não há prazo para o caso voltar à pauta. A corte do STM é formada por 15 ministros - 10 são militares da ativa, e cinco, civis. Nesta terça-feira, acontece na Auditoria Militar do Rio uma audiência com sete testemunhas do Ministério Público e uma das vítimas sobreviventes. A seguir, a íntegra da entrevista  concedida por e-mail pela ministra.

A senhora abriu forte divergência com o relator e votou pela permanência na prisão dos nove militares acusados de matar o músico Evaldo Rosa. Por que a senhora entende que eles devem permanecer presos ?
Primeiramente por entender que a juíza de 1ª instância fundamentou adequadamente a prisão preventiva dos militares, com base nas informações que possuía até aquele momento. Depois, porque vi presentes os requisitos próprios das medidas cautelares: o perigo na concessão da liberdade e a fumaça do cometimento do crime. Desde o primeiro momento, percebi que se estava diante de um duplo homicídio e de uma tentativa, e não, de mera inobservância de lei, regulamento ou instrução, razão pela qual a custódia provisória jamais ultrapassaria o tempo da pena se os réus viessem ou vierem a ser condenados.

Neste ponto, o Ministério referendou meu entendimento no oferecimento da denúncia. Pesaram, ainda, na formação do meu convencimento, o alto potencial ofensivo da ação praticada que, além de alvejar três civis desarmados com uma descarga de tiros desproporcional, foi realizada em meio à população que transitava no local e que poderia vir a ser atingida e lesionada. A insensibilidade dos agentes, que se recusaram a prestar socorro em momento tão dramático, e a indignação popular, que eu também compartilho e que pode ser juridicamente traduzida como a preservação da ordem pública, igualmente norteou o meu voto. Por último, a versão inverídica engendrada pelos militares ao Comando do Leste, obrigado a se desdizer rapidamente, me fez temer pela instrução processual. Evidentemente todo o acusado tem direito ao silêncio e a mentira está nele acobertada. Porém, cabe ao juiz valorar o comportamento do réu que mente e não colabora e os riscos que podem advir deste comportamento para a ação judicial no momento de deferir ou não a liberdade.

O subprocurador-geral e quatro ministros se manifestaram em defesa da soltura dos acusados. Mesmo assim, a senhora manteve seu voto. De onde vem a sua convicção?

Minha convicção veio da temeridade do ato perpetrado. Do horror de uma esposa e de um filho de 7 anos verem o pai e marido ser fuzilado na sua frente sem nenhuma razão, de um humilde catador de resíduos perder a vida para tentar ajudar outro ser humano, na falta de misericórdia dos réus.

Numa defesa mais enfática que a do própria advogado de defesa, o subprocurador-geral disse que não havia nem mesmo indício de crime cometido pelos militares. Qual é o seu entendimento sobre essa questão?

O Ministério Público tem independência funcional, ou seja, inexiste subordinação intelectual ou hierarquia entre os membros que o integram. Isso é positivo e foi uma grande conquista constitucional! Graças a ela, as promotoras de 1º grau puderam oferecer a denúncia.

A senhora não se intimidou nem quando alguns ministros faziam gestos de desaprovação ao seu voto. O fato de ser mulher num colegiado formado por homens, a maioria militares, cria algum embaraço a sua atuação na corte?

A divergência faz parte do colegiado, ela não coage, ao contrário, é saudável e importante para o estado democrático de direito. Ser a única mulher em um tribunal composto majoritariamente por homens é, sem dúvida, um desafio, na medida em que o meu olhar, obviamente, é subjetivo e singular. Encaro a minha presença no Superior Tribunal Militar como uma construção permanente em prol da igualdade de gênero. É espantoso constatar que, atualmente, os tribunais superiores contam com apenas 13 ministras, num universo de 89 magistrados. A pessoa humana ainda está confinada em lugares preestabelecidos na hierarquia social dos seres sexuados. É preciso romper com estas estruturas arcaicas! É daí que provêm a minha força, a minha convicção e a minha luta.

No início do julgamento, o advogado de defesa argumentou que a acusação contra os militares era uma forma de acusação às Forças Armadas. Esse argumento está correto?

De forma alguma! As Forças Armadas foram consideradas em pesquisas de opinião como a instituição mais confiável do Brasil e estão fazendo o que podem para auxiliar o estado brasileiro e a sociedade civil, vulnerável e indefesa, no combate à violência urbana. Elas vêm sendo sistematicamente convocadas, em nome do federalismo cooperativo, a atuarem na Garantia da Lei e da Ordem, constitucionalmente e legalmente prevista, mas que deveria ser esporádica e pontual. Até porque o art. 144 da Constituição Federal, quando elenca os órgãos que deverão atuar na segurança pública, não inclui as Forças Armadas, mas a Polícia Federal; as polícias Rodoviária e Ferroviária federais, a Polícia Civil; a Polícias Militares e o Corpos de Bombeiros. Contudo, diante do esgotamento da capacidade operativa em alguns estados têm-se atribuído este ônus ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica. Isto é inquietante, pois, em última análise, o que se vê é o cidadão fardado sendo chamado para atuar como uma espécie de peace enforcement às avessas no interior do próprio territorial nacional. Sem dúvida, um quadro desolador!

Alguns críticos dizem que a Justiça Militar tem um viés corporativista. O corporativismo tem peso nas decisões do STM?

Esta é uma pergunta extremamente importante porque me possibilita dissipar desinformações acerca da Justiça Militar da União. Desconhecida por grande parte da sociedade brasileira e dos próprios operadores do Direito, a despeito de ser a justiça mais antiga do Brasil, instituída em 1808 por Dom João VI, e não em 1964, como alguns sugerem ao chamá-la de justiça de exceção, ela integra o ramo especializado do Poder Judiciário desde a democrática e liberal Constituição de 1934. O corporativismo que pejorativamente lhe é atribuído, como defesa exclusiva dos interesses dos réus militares, é inexistente, e digo isso com muita tranquilidade por ser eu a magistrada que mais absolve na corte, sendo sistematicamente vencida. O que prevalece nas decisões dos ministros, nomeadamente dos ministros militares, é a preocupação em salvaguardar a hierarquia e a disciplina, pilares das Forças Armadas sem os quais a cadeia de comando não prevalece. Historicamente, ao longo dos períodos ditatoriais, sua jurisprudência sempre atestou imparcialidade e isenção consolidadas em decisões memoráveis, tal qual a em favor de João Mangabeira, condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo de Vargas, que lhe concedeu ordem de habeas corpus.

Outros julgados podem ser mencionados, como a quebra da incomunicabilidade dos presos, proibidos de manter contato com seus advogados sob a égide da Lei de Segurança Nacional; a decisão que assentou que o direito de greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse objetivos de melhoria salarial não se traduzia em crime contra a segurança nacional; e a que assentou que a ofensa às autoridades, mesmo expressa em linguagem censurável, não configurava crime contra a segurança do Estado, resguardando, dessa forma, a liberdade de imprensa e de expressão.

No tocante à Lei de Anistia, foi o STM quem ampliou jurisprudencialmente o seu alcance para estender o perdão legal aos réus e presos políticos que tivessem sido condenados por terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, os chamados crimes de sangue. Mas nada se compara ao acórdão na Apelação nº 41.264 de 19 de outubro de 1977, na qual todos os ministros subscreveram, por unanimidade, um verdadeiro manifesto contra as torturas e sevícias praticadas pelo regime naquele período, única Corte de Justiça do Brasil a fazê-lo.

Sem dúvida alguma, o Superior Tribunal Militar lega às gerações futuras jurisprudência digna, que soube sobrepor-se às pressões políticas. E foi por essa razão, e não outra, que os grandes advogados que ocuparam a tribuna do Superior Tribunal Militar, e defenderam a liberdade e a restauração democrática no Brasil, como Sobral Pinto, Heleno Cláudio Fragoso, Técio Lins e Silva, só para nomear três de um universo imenso, teceram a ele referências elogiosas.