Brasil

Especialistas criticam propostas de deputados para renovação do Fundeb

Fundo que financia 85% do gasto com alunos na educação básica precisa ser renovado em 2020; propostas estão em discussão na Câmara
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, apresenta a proposta do governo para o Fundeb, na Câmara dos Deputados Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, apresenta a proposta do governo para o Fundeb, na Câmara dos Deputados Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

RIO E BRASÍLIA — Responsável pelo financiamento de cerca de 85% do custo por aluno do ensino público infantil ao médio no país, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação ( Fundeb ), cuja vigência acaba em 2020, deverá ser redefinido ainda neste ano pelo Congresso , mas sua renovação pode carregar mudanças ainda mais profundas do que apenas a alteração no percentual aportado pelo governo federal — hoje o item mais discutido.

Emendas apresentadas por deputados ao projeto mais adiantado vão desde condicionar recursos extras à obtenção de resultados a permitir o uso do dinheiro do fundo para pagar o estudo de crianças e adolescentes na rede privada. No total, foram apresentadas cinco sugestões de alterações à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do novo Fundeb.

A comissão que trata do tema na Câmara vai analisar as modificações propostas antes que a deputada Dorinha Rezende (DEM), relatora da PEC, apresente o texto definitivo para votação. As emendas geram divergência entre educadores e especialistas. Eles consideram que algumas delas podem acabar intensificando problemas já existentes.

O Fundeb, composto por impostos dos estados, municípios e por uma complementação da União, é redistribuído de modo a evitar desigualdades entre regiões. Neste ano foi estimado um valor de R$ 156 bilhões para o fundo.

Financiamento público ao ensino privado

A emenda apresentada pelo deputado Tiago Mitraud (Novo-MG) visa permitir que estados e municípios possam "converter parte dos recursos para financiar o ensino público em instituições privadas com ou sem fins lucrativos." Ou seja, caso aprovada, os governos poderão conceder espécie de "vouchers" para estudantes.

"Permitir que crianças de famílias em situação de vulnerabilidade social também tenham acesso a um ensino de qualidade enquanto se busca soluções para elevar o desempenho das escolas públicas é também uma questão de justiça social. É por isso que é importante explorar inovações no modelo de ensino no Brasil, como oferecer oferecer bolsas em instituições de ensino privadas para alunos da rede pública e permitir a expansão das escolas conveniadas (chamadas de “charter schools”). A vantagem destas escolas é que elas trazem os benefícios da gestão privada para as escolas públicas", defende um trecho da justificativa apresentada pelo deputado para defender a emenda.

Ao GLOBO, Mitraud defendeu a ideia. Segundo ele, há uma "confusão" de que a educação pública precisa ser 100% estatal. O deputado afirmou que já existem experiências exitosas em alguns estados, citando unidades de educação infantil em Minas Gerais que atendem alunos da rede pública, mas com toda a infraestrutura gerida por entidades do setor privado.

O modelo, segundo ele, é especialmente interessante para creches e pré-escola, devido à mudança no perfil demográfico da população, com diminuição de nascimentos. Dessa forma, Mitraud sustenta que o Estado não precisaria montar uma infraestrutura e corpo docente que, em 10 ou 20 anos, podem não ser mais necessários.

— Não é desmonte da educação pública, mas sim um modelo a mais possível. Hoje, não está claro se o recurso do Fundeb pode ser usado dessa forma, o que traz insegurança jurídica. Com a emenda, queremos tirar isso da zona cinzenta e deixar como uma possibilidade, não uma obrigação. O estado e município que não achar interessante, continua com o modelo atual — afirma Mitraud.

A deputada Dorinha disse que ainda vai fazer reuniões técnicas para chegar ao texto final, mas adianta que a emenda que trata da destinação de recursos do Fundeb para instituições privadas, como a de Mitraud, não será considerada.

Para a relatora da PEC, o tema foge ao assunto principal da matéria analisada.

— Entendo que não é matéria da PEC. Já existe uma permissão (de pagar instituições privadas) quando não há vaga no sistema público — afirmou a relatora.

Especialistas apontam que não há um consenso sobre o modelo no cenário mundial. A pesquisadora Tássia Cruz, professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz ainda que esse tipo de política não seria viável em larga escala.

— Essa crença de que a escola privada é melhor do que a pública ou mais eficiente não se comprova. Quando observamos os dados e controlamos estatisticamente variáveis importantes como o nível socioeconômico dos alunos, aqueles com nível socioeconômico similar não vão melhor porque estudam em escola particular. A maior parte das escolas particulares são de baixa qualidade — diz Cruz. — É uma escolha mais por preferência de modelo e não por eficiência. Escolas particulares que gastam pouco por aluno, em geral, fazem um trabalho pior do que as escolas públicas. Ver isso como solução é problemático.

Cruz cita como exemplo a cidade de  Milwaukee, no estado de Wisconsin, nos Estados Unidos (EUA) que tem mais de 80% das escolas no modelo charter e, segundo ela, "não é nenhum sucesso em termos de qualidade da educação".

Prêmio ao desempenho

Outra emenda que acendeu um alerta entre os educadores foi apresentada pela deputada Tabata Amaral (PDT-SP). A proposta pretende distribuir um recurso adicional, equivalente a no mínimo 10% de complementação, para redes que apresentarem bons resultados educacionais, levando em consideração o nível socioeconômico dos alunos.

Na justificativa da emenda, a deputada afirma que é importante que haja um "estímulo para a implementação de boas práticas e para a melhoria do ensino".

Amaral cita como exemplo o estado do Ceará, "que distribui parcela do ICMS aos municípios de acordo com critérios de avanço nos respectivos indicadores educacionais".

Embora a deputada faça a ressalva de que "seria injusto, no entanto, olharmos meramente para os resultados", e afirme que é preciso observar o nível socioeconômico dos estudantes sem avaliar de forma simplista as redes, especialistas apontam que o mecanismo proposto carrega em sua gênese fatores que pode intensificar essas desigualdades.

— Essa proposta é vinculada a uma visão de gerencialismo sem considerar que antes de avaliar dessa forma é preciso dar condições básicas para que o direito à educação seja garantido. Há pesquisas que mostram que esse tipo de responsabilização com base no desempenho causam um ajuste negativo e a longo prazo acaba fragilizando o sistema e gerando exclusão escolar— analisa a coordenadora-executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda.

O grupo elaborou um documento analisando as propostas para o Fundeb, complementando:

—  Os testes em larga escala têm limitações e não deveriam se usados como definidores para a tomada de decisão em relação ao financiamento, isso é gravíssimo, acaba gerando dupla injustiça com estados e municípios que já recebem menos.

Em outra emenda, Tabata Amaral sugere que o percentual de complementação da União passe dos atuais 10% para no mínimo 15%.

A ideia é alinhada ao que deseja o Ministério da Educação (MEC) , que apresentou proposta de sair dos atuais 10% de aporte e chegar a 15% em cinco anos. O valor defendido por grande parte dos integrantes da comissão chega a 30% após uma evolução gradual.

O GLOBO tentou falar com Tabata Amaral sobre as emendas, no fim de reunião da comissão ontem, mas a parlamentar disse que estava com pressa e saiu em seguida.

Fim da fiscalização externa

Outra emenda que faz alterações significativas no texto do Fundeb foi apresentada pela bancada do PT na Câmara.

Além de trazer dispositivos relativos à valorização dos profissionais que atuam na área da educação, a proposta elimina a fiscalização externa dos fundos que compõem o Fundeb.

Enquanto na proposta original o texto falava em "fiscalização e o controle interno, externo e social dos Fundos", na versão apresentada pela bancada a palavra "externo" foi suprimida.

O controle externo é feito pelo Legislativo com auxílio dos tribunais de contas e também por meio da Justiça. Nesse sentido, a alteração fragilizaria o dispositivo robusto de monitoramento proposto no documento em discussão.

O deputado Waldenor Pereira (PT-BA), que assina como autor principal da emenda, não retornou os contatos do GLOBO.

Governo não negocia aumento superior a 15%

Na terça-feira (25), o ministro da Educação, Abraham Weintraub, esteve na comissão da Câmara sobre o Fundeb.

Ele defendeu o aumento da complementação da União para 15% em cinco anos, conforme a proposta que já havia sido apresentada por escrito aos deputados.

Após ouvir reclamações de parlamentares de que o patamar é muito baixo, Weintraub disse que só é possível discutir uma nova elevação “mais para frente”, condicionando essa hipótese a um melhora da situação fiscal do país.

Ele defendeu que “mais do que o valor”, o importante é dar “um passo na direção correta”, com adoção de novos critérios para a distribuição da verba, como cumprimento de metas educacionais.

— Eu acredito que se a gente entregar um bom resultado do Fundeb, com metas claras, e gerando esse impacto que acho que pode gerar, a gente pode, sim, discutir um aumento mais para frente — disse Weintraub.

O MEC ainda vai mandar um documento complementar, com itens adicionais, para complementar a proposta anteriormente apresentada à comissão. Nesse ofício, devem constar as fontes para o aumento da complementação da União, segundo estudos feitos pela pasta.

O secretário-executivo do MEC , Antonio Paulo Vogel, disse aos deputados que o índice de 15% de complementação é o valor possível dentro da situação fiscal do país.