Rio

Um ano após fechamento de Gramacho, promessas ainda no papel

No maior lixão da América Latina, histórias de quem precisou reaprender a viver

Zuleica Crispim observa o material que recolheu durante mais de um mês espalhado no terreno onde ficava o seu barraco, demolido na semana passada
Foto: Guilherme Leporace / O Globo
Zuleica Crispim observa o material que recolheu durante mais de um mês espalhado no terreno onde ficava o seu barraco, demolido na semana passada Foto: Guilherme Leporace / O Globo

RIO — No final da estrada de terra batida, atrás dos portões trancados do que um dia foi o maior aterro sanitário da América Latina, uma montanha de terra e mato impressiona. Em 3 de junho de 2012, sob os olhares da imprensa internacional e às vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, o aterro de Jardim Gramacho foi desativado com ares de festa. Nos discursos das autoridades, o entorno do lixão de Duque de Caxias, na Região Metropolitana do Rio, se transformaria em um bairro modelo, seus moradores receberiam capacitação para voltarem ao mercado de trabalho e a indústria da reciclagem continuaria a movimentar a economia local. Um ano mais tarde, o lixo e o mau cheiro sumiram. Junto com eles, foram-se também a principal fonte de renda de centenas de famílias, o burburinho dos depósitos de reciclagem e o vai-e-vem pelos bares e mercearias. Para quem ficou ali, restou a urgência em sobreviver e a esperança de que todos aqueles projetos, um dia, saiam do papel.

Com o fechamento, os trabalhadores cadastrados pela Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (ACAMJ) receberam da Prefeitura do Rio uma indenização de R$ 13.980, vindos de um fundo de R$ 23 milhões que será pago pela Nova Gramacho, empresa exploradora do gás derivado dos resíduos em decomposição. Governos municipais (Rio de Janeiro, por ser o principal usuário do aterro, e Duque de Caxias, onde ele está localizado), estadual e federal se comprometeram em levar adiante os projetos de desenvolvimento econômico e social da região, que incluíam a construção de um pólo de reciclagem (que empregaria cerca de 550 ex-catadores), a oferta de cursos profissionalizantes, a revitalização do bairro e a criação de um centro de apoio com psicólogos e assistentes sociais.

Em um ano, muitos desses planos ficaram pelo caminho. Do centro de apoio, que, segundo os ex-catadores, foi uma promessa feita pelo prefeito Eduardo Paes no dia do fechamento do aterro, jamais se teve notícia. Em meio à campanha pela reeleição do prefeito Zito (PP) em Duque de Caxias, a urbanização do bairro foi esquecida, e só agora, quase seis meses desde a posse do novo prefeito, Alexandre Cardoso (PSB), o projeto começou a ser discutido com o governo do estado. Os cursos profissionalizantes ficaram por conta da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), que instalou uma escola no bairro com cursos voltados para a construção civil e de informática, com duração de seis semanas cada. Até hoje 440 alunos se formaram, mas destes apenas um quarto são ex-catadores. Com previsão de inauguração em março, depois em maio, e agora na segunda quinzena de junho, o pólo de reciclagem, grande esperança para a geração de renda local, deve começar a funcionar com dois galpões e somente 110 empregados, quase um quinto do que fora propagandeado.

— Quem tem força e é jovem está por aí trabalhando, mas os mais velhos estão catando o material que encontram nas ruas. Se antes Jardim Gramacho era miserável, pelo menos as pessoas tinham algum dinheiro. Com o fechamento do aterro, acabou a geração de renda do bairro. Nós somos Serra Pelada sem ouro — lamenta Glória dos Santos, responsável financeira da ACAMJG.

Aos 59 anos, Zuleica Crispim viu o aterro de Gramacho nascer. Morava perto, e começou a catar assim que o primeiro caminhão despejou lixo no terreno. Com a indenização, comprou uma casinha em Mauá, não a cidade da Região Serrana, mas um distrito de Magé, na Baixada Fluminense. Lá vive com quatro dos 23 netos que tem — foram 13 filhos, de 29 gestações, muitas mal sucedidas pela poluição do lixão, ela diz. Durante a semana, Zuleica volta a Jardim Gramacho, onde vivem dois de seus filhos, também ex-catadores, para pegar material reciclável em um galpão. Por R$ 2 mil, comprou um barraco de madeira no bairro para guardar o material que recolhe e vez ou outra dormir. Em março, atearam fogo, e ela perdeu tudo o que havia recolhido por mais de um mês. Há duas semanas, demoliram. Ela acusa a associação de catadores, que teria interesse em usar o terreno para a expansão do pólo de reciclagem. Eles, acusam outros. E assim vai.

— Da primeira vez eu dei parte na polícia, agora não vou mais. Meu advogado é Jesus, e o juiz é Deus — sentencia.

Quem também vive do que encontra pelas ruas é Geraldo Oliveira, de 61 anos, mais conhecido como Brizola. Falante e vaidoso, ele esteve nas telas de TVs de todo o mundo no dia do fechamento do aterro, chorou para as câmeras no momento em que o último punhado de terra foi derramado sobre o lixo, perdeu as contas de quantas entrevistas deu. Doze meses mais tarde, sua vida deixou de ser televisionada. O carrinho de pipoca que comprou com o dinheiro da indenização jaz nos fundos da sede do grupo de acoólicos anônimos, onde um pedaço de terra e construiu um barraco de madeira e papelão. Na antiga casa alugada, onde levou repórteres do mundo todo, agora mora o filho. De segunda a sexta, ele acorda às 5h para catar material reciclável pelas ruas do bairro. Nos finais de semana, vende pipoca na praça.

— O movimento aqui é fraco. Se eu levasse o meu carrinho para o Rio, conseguiria vender bem. Mas eu não tenho como levar, e para o frete me cobraram R$ 500. Só por que as pessoas me reconhecem na rua, acham que fiquei rico — lamenta.

Mais sorte teve Maxwell dos Santos, ex-catador que hoje trabalha em um estaleiro no bairro do Caju, no Rio. Filho de Valter dos Santos, um dos mais antigos e respeitados catadores de Gramacho, morto em 2011 vítima de um câncer no pulmão, Maxwell começou a trabalhar ali ainda criança, assim como a maioria dos meninos que cresceram no entorno da rampa. Aos 16 anos, largou a escola, na quinta série, e nunca mais voltou. Com o fim do aterro, não sabia onde procurar emprego, até que um amigo o indicou para uma vaga no estaleiro.

— Agora eu sou rigger — orgulha-se, e depois explica a função, responsável por preparar as cargas e auxiliar o seu içamento. — Em 34 anos, nunca tinha tido a carteira assinada. Agora tenho plano de saúde, INSS, cesta básica, hora extra. Mas saudade do lixão, não vou mentir, eu tenho.

A grande queixa dos ex-catadores é de que todas as políticas de reinserção social só começaram a ser desenvolvidas a partir fechamento do aterro. De imediato, só os R$ 13.980 depositados para os catadores cadastrados, motivo de polêmica até hoje. Segundo a ACAMJG, ainda há cerca de 160 trabalhadores que não receberam a quantia devido a problemas de documentação, mas ex-catadores acusam a associação de ter beneficiado pessoas que não trabalhavam no aterro e deixado outras de fora da listagem. As seis pequenas cooperativas de reciclagem que existem no local recebem material de grandes produtores, como empresas e condomínios residenciais, mas conseguem absorver no máximo 60 trabalhadores.

As famílias também foram cadastradas no programa Bolsa Família, mas quem não conseguiu o benefício ficou entregue à própria sorte. A grande esperança dos ex-catadores era a construção do pólo de reciclagem, que teria capacidade para processar 1.500 toneladas de material reciclável por mês, dando emprego a 550 pessoas. Às vésperas da inauguração, esses números não são uma certeza, já que a Comlurb não garante quanto material poderá enviar ao pólo, e o município de Duque de Caxias sequer conta com o serviço de coleta seletiva. Ou seja, corre-se o risco de faltar lixo.

Dos mais de 2 mil ex-catadores, Maria da Glória Dias foi uma das poucas que conseguiu um emprego em uma das cooperativas de reciclagem que ainda funcionam em Jardim Gramacho. Aos 59 anos, 23 deles passados no aterro de Jardim Gramacho, dona Cristina, como é conhecida (ela não gosta do próprio nome), carrega no corpo os efeitos da catação de material reciclável. Há 15 anos, foi atropelada por um caminhão de lixo enquanto catava à noite, ficou meses internada, e na volta não tinha mais forças em uma das pernas. Carrega alguns pinos no quadril e tem dificuldade para se abaixar — motivo pelo qual não consegue trabalhar como faxineira, profissão de uma das quatro filhas. O fim do lixão não chegou a ver, mas não por vontade própria: uma hanseníese a obrigou a se afastar do trabalho um mês antes de o aterro ser desativado.

— Depois que a rampa (como se chama a montanha de lixo do aterro) acabou eu vi que tudo é mais difícil. Em meia hora eu subia lá e tirava o dinheiro da carne. Agora tenho que esperar terminar o mês — lamenta Cristina, que na época do aterro conseguia até R$ 1.500 por mês, e hoje recebe um salário mínimo na cooperativa.

Segundo Jorge Pinheiro, Coordenador do Programa Recicla Rio, da Secretaria de Estado do Ambiente, e principal interlocutor do governo do estado junto aos ex-catadores, o encerramento do aterro já vinha sendo discutido desde 2010, quando começou a ser desenvolvido um plano estratégico de políticas públicas para o desenvolvimento sustentável da região. Ele garante que o desativamento do lixão foi um sucesso, apesar de os muitos projetos ainda não terem sido plenamente executados — resultado de um jogo de empurra entre as diversas instituições, governamentais ou não, envolvidas no drama de Jardim Gramacho.

— É óbvio que os catadores que perderam a sua fonte de renda não estão satisfeitos, mas um problema dessa complexidade não tem respostas fáceis. Temos que construir uma política pública de maneira que esses problemas sejam solucionados de forma duradoura — argumenta Pinheiro, reafirmando que o governo tem a espectativa de levar o plano urbanístico e o centro de apoio ao bairro. — Estamos preocupados com a continuidade do processo e discutindo com a sociedade a melhor gestão dos resíduos, de forma a incluir esses ex-catadores.

A Comlurb, por meio de sua assessoria de imprensa, informa que abastece 28 cooperativas de catadores no município do Rio com as 808 toneladas de material que recolhe a cada mês. O órgão diz que poderá enviar o material excedente ao pólo de Jardim Gramacho após a ampliação de sua coleta seletiva, prevista para ser iniciada na próxima segunda-feira. Atualmente a companhia recolhe apenas 1,4% dos resíduos recicláveis da cidade, e pretende expandir para 5% até o final do ano. Já a Prefeitura da Duque de Caxias promete começar um projeto piloto de coleta seletiva e argumenta que está dialogando com o governo estadual sobre a revitalização do bairro. Procurado, o prefeito Eduardo Paes não se posicionou sobre o assunto.