Coluna
Ricardo Rangel opais@oglobo.com.br
O colunista Ricardo Rangel Foto: Fabio Rossi / O Globo

Campeonato do atraso

O caso da PM que matou assaltante proporcionou oportunidade para praticarmos nosso esporte preferido: nos xingarmos mutuamente

Recentemente, uma policial militar matou um assaltante na periferia de São Paulo. O vídeo do episódio, em alta qualidade, ganhou a internet e proporcionou nova, e excelente, oportunidade para praticarmos nosso esporte favorito, o de nos xingarmos mutuamente sem moderação. No dia seguinte, o governador homenageou a policial, e lá fomos nós para o segundo tempo.

O time da direita comemorou a morte do assaltante, aplaudiu o governador e xingou a esquerda; o time da esquerda maldisse a policial, criticou o governador e xingou a direita. As diferentes atitudes retratam maneiras distintas de enxergar a realidade, uma concreta, outra simbólica.

Quem vê a realidade de forma concreta enxerga uma guardiã da lei que cumpre seu dever de eliminar uma ameaça a inocentes indefesos (a morte do assaltante não é desejada, é contingencial). Quem vê o mundo assim se concentra nos inocentes e na agente de segurança que os protege, os vê como vítimas, se solidariza com eles.

Quem vê a realidade de forma simbólica enxerga um homem negro e pobre, excluído e embrutecido, que, pressionado pela recessão e pelo desemprego, recorre ao crime. Quem vê o mundo assim enxerga o criminoso como resultado de uma realidade perversa.

Uns e outros raramente se entendem: simbólicos consideram concretos cansativos, sem imaginação, sem poesia, sem solidariedade; concretos acham simbólicos frívolos, irracionais, extravagantes, um entrave. Se tivessem um pouco mais de boa vontade e de bom senso, veriam que nenhuma das duas visões está errada, que ambas são verdadeiras, e que não se contradizem, pelo contrário, se complementam.

Num mundo ideal, a combinação entre as duas visões levaria a um olhar mais amplo — que bom que a policial cumpriu seu dever; que bom que nenhum inocente se feriu; que pena que o bandido morreu; precisamos melhorar a questão social — e a um esforço para tornar o país menos injusto e violento.

Estamos longe de um mundo ideal. No ambiente conflagrado em que vivemos, quem adota a visão concreta enxerga o outro como defensor de bandido; quem adota a visão simbólica enxerga o outro como defensor de assassinato.

O problema chega ao paroxismo quando cada um passa a se comportar como o outro espera. A direita comemora a morte do assaltante, trata a policial como heroína, defende a liberação do porte de arma, exige o aumento da violência policial. A esquerda afirma que a policial não deveria ter reagido — e esperado não apenas uma eventual tragédia como sua própria morte certa (assassinar policiais é outro esporte nacional).

No fundo, a esquerda guarda o ranço de enxergar o Estado liberal-democrata como mecanismo de dominação do povo, e o criminoso, que desafia a ordem “burguesa”, como herói da resistência. “Seja marginal, seja herói”, escreveu Hélio Oiticica.

A direita precisa abandonar a curiosa suposição de que aumentar a violência é um bom caminho para diminuir a violência. A esquerda precisa abandonar a absurda ideia de que criminosos são românticos.

Enquanto a direita repete Washington Luís, insistindo que “a questão social é um caso de polícia”, e a esquerda teima em tratar casos de polícia como questão social. Estão ambos parados nos anos 1920, e, no campeonato do atraso, todos somos derrotados.

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