Acaba de ser lançado um relatório feito pela Oxfam Brasil -  organização que tem como principal objetivo estudar a desigualdade social -  onde os números não deixam dúvidas. Com dados do Censo Agropecuário de 2006, já que não existem registros mais novos, o estudo mostra o desequilíbrio da sociedade brasileira também no meio rural.  Grandes propriedades somam apenas 0,91% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros, mas concentram 45% de toda a área rural do país. Por outro lado, os estabelecimentos com área inferior a dez hectares representam mais de 47% do total de estabelecimentos do país, mas ocupam menos de 2,3% da área total.

 

Há uma desproporção gigantesca também quando se analisa a questão de gênero no setor rural.  São os homens que controlam a maior parte dos estabelecimentos rurais e estão à frente dos imóveis com maior área: eles possuem 87,32% de todos os  estabelecimentos, que representam 94,5% de todas as áreas rurais brasileiras. No outro extremo, as mulheres representam quase o dobro do número de produtores rurais sem posse da terra em comparação aos homens – 8,1% frente a 4,5%, respectivamente.

 

Se o cenário já está parecendo bastante complexo, mais está por vir. Pois o estudo da Oxfam foi feito na América Latina, e o Brasil fica apenas em quinto lugar, nessa região, na questão da desigualdade do uso da terra. Em primeiro lugar vem o Paraguai, seguido do Chile, Venezuela e Colômbia.

 

Conversei com Katia Maia, diretora-executiva da Oxfam Brasil, que considera os dados do estudo muito graves. Para ela, “o tema da terra é a expressão máxima da desigualdade”. Abaixo, a entrevista na íntegra:



O que levou a Oxfam a fazer esse estudo?

 

Kátia Maia - Estamos fazendo estudos sobre  pobreza e desigualdade e, especialmente com relação à desigualdade, tentamos olhar alguns dos elementos estruturantes da desigualdade mais de perto.  Quando olhamos para a América Latina, onde atuamos há mais de 50 anos, no estudo específico do Brasil percebemos que o tema da terra é a expressão máxima da desigualdade. Porque se tem 1% de propriedade controlando 50% da área rural da região. É um número muito forte quando se pensa na importância da terra para o desenvolvimento de um país. Quando se fala de terra se fala de pessoas, de controle de recursos naturais, de desenvolvimento econômico, social, da questão cultural. A terra expressa muito o que é uma sociedade e a América Latina é a região com maior desigualdade  na concentração de terra no mundo. E um olhar sobre o Brasil mostra que ele tem 0,95 % de propriedades rurais controlando 45% de nossa área rural. São números que expressam a que ponto chegou a desigualdade no nosso país.

 

Há uma tendência, houve um aumento nessa concentração de terras?

 

Kátia Maia – De 2003 para 2010 houve um aumento de propriedades. Arredondando, em 2003 havia 4 milhões e 200 mil propriedades enquanto em 2010 esse número passou a ser 5 milhões e 160 mil. Você pode pensar: que ótimo, aumentou o número de propriedades!  Só que quando se chega perto para analisar, observa-se que as propriedades pequenas, os minifúndios, diminuíram, enquanto as grandes propriedades, acima de mil hectares, aumentaram. Em 2003, 51,6% das propriedades eram acima de mil hectares, e em 2010 essa porcentagem cresceu para 56,1%. Ou seja: não estamos enfrentando a desigualdade na terra, isso não está solucionado. Foi o que nos levou a pensar: se queremos tratar de desigualdade no Brasil, precisamos olhar o contraste a partir dessa perspectiva.  Que não é só uma desigualdade da propriedade da terra, é uma desigualdade em investimentos, na tecnologia, de gênero.

 

Como assim, de gênero?

 

Kátia Maia – Os homens possuem 87,32% de todos os imóveis rurais que existem no Brasil. Isso significa que os homens têm 94,5% de todas as áreas rurais brasileiras.

 

É possível dizer nas mãos de quem estão todas essas terras?

 

Kátia Maia – Usamos como fonte o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) , o Centro Agropecuário, o Incra. E, infelizmente, conseguimos fazer o registro das propriedades e do tamanho das áreas, mas não conseguimos saber quem são os proprietários.  Sem contar que esse estudo, o último Centro Agropecuário, é de 2006. Mas sabemos que são pessoas físicas, jurídicas, e sabemos também quando uma pessoa física ou jurídica tem mais de uma propriedade.

 

Bem, o que me faz entender que estamos patinando na história dos grandes latifundiários exatamente como sempre...

 

Kátia Maia – Sim, e o fato de estarmos perpetuando a concentração apresenta grandes desafios para a nossa sociedade. Fizemos um esforço para tentar olhar aqueles municípios que são de grande concentração fundiária e podemos dizer que aqueles que estão em área de maior produção agrícola do grande agronegócio têm os maiores níveis de pobreza e desigualdade. Porque gera menos emprego, é mais concentrado. E isso é algo que impacta porque a ideia vendida é que o modelo agrícola, a modernidade, seja para o bem coletivo da sociedade. E não é assim.

 

Tem algum exemplo de município com alto nível de agricultura e muita pobreza?

 

Kátia Maia – Sim. Há um município chamado Correntina,  na Bahia, que é um dos que têm maior nível de agronegócio do país, altamente tecnológico, tudo com irrigação. E lá eles têm um nível de pobreza que não condiz com o fato de ser um dos municípios com agricultura mais modernizada.

 

Como é o panorama da distribuição de terra na América Latina?

 

Kátia Maia – Na América Latina o problema se repete, tem uma concentração altíssima. O Brasil não é o mais desigual de todos, está em quinto lugar, quando se usa o coeficiente de Gini para a distribuição da terra. O país mais desigual em termos de distribuição da terra na AL é o Paraguai, depois tem o Chile, Colômbia, Venezuela. Na AL, assim como no Brasil, há a desigualdade na posse, na propriedade da terra, no investimento público que se faz para a produção agrícola. Quanto maior a propriedade, mais apoio do governo ela irá receber, tanto na parte da tecnologia como nos impostos pagos. E tem ainda um fator importante, que é recrudescimento da violência no campo.

 

Recentemente o ministro Blairo Maggi declarou, na COP22, que esse problema não é tão sério, disse que são questões de relacionamento. Mas, pelo visto, a teoria dele é desconstruída pelo estudo que vocês fizeram.

 

Kátia Maia – Sim. Porque a terra, independente de ela ser para o gado, ser para a agricultura, para a plantação florestal, é um recurso importante. Existem áreas onde a terra coincide com exploração mineral, tem a questão da água que passa num determinado ponto. Ou seja: é um recurso importante, o que faz com que as disputas pela terra estejam aumentando. O fato de que não se soluciona a demanda por terra na região, faz com que a violência esteja aumentando. E assassinatos de defensores, seja da causa ambiental ou da reforma agrária, só vão se agravando.

 

É impossível saber dessas informações e não querer refletir além. Mas a sensação que tenho é que esse tipo de mensagem não interessa à grande maioria da sociedade. O que você acha disso?

 

Kátia Maia – Há um nível de desinformação. Mas estamos vivendo é uma captura da política e da comunicação em torno dessa política por alguns interesses econômicos. Há hoje uma influência muito grande de setores da economia definindo as nossas políticas públicas. Há melhoras no financiamento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), por exemplo, mas o investimento no agronegócio é infinitas vezes maior.  Temos uma bancada ruralista expressiva, com  214 deputados e 22 senadores que se identificam como uma frente parlamentar da agricultura, cuja agenda prioritária é a defesa dos interesses do setor rural, ou seja, um poder instalado dentro do Congresso Nacional.

 

E isso tudo sob a égide do desenvolvimento...

 

Kátia Maia – Temos uma análisesobre a questão dos impostos e a injustiça fiscal na concentração de renda. Existem na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional as dívidas de pessoas físicas e jurídicas com a União. Em 2014 havia 4.013 devedores acima de R$ 50 milhões cada um.  Desses, 729 disseram que eles possuíam 4.057 imóveis rurais. Essas 729 pessoas devem R$ 200 bilhões para a União, e as terras deles significam 6.5 milhões de hectares, que dariam para assentar 214 mil famílias. Hoje existem 120 mil famílias acampadas esperando a reforma agrária. Mas passou uma Medida Provisória no Congresso em 2016 dando o perdão das dívidas acima de R$ 1 milhão, com desconto de 65% no valor total, dados da procuradoria e do INCRA. Quanto dinheiro público está sendo colocado hoje para esse grande negócio? E não é para o coletivo.

 

Há alguma saída?

 

Kátia Maia – Acreditamos que sim, não podemos permitir o reducionismo dessa discussão.  Acreditamos no engajamento da sociedade, a pressão pública sobre o estado, e temos um conjunto de iniciativas que vai fazer parte da disputa política. Para nós, um dos elementos é a questão do acesso, a reforma agrária, e aqui é importante dizer que não é sair desapropriando. O Brasil tem regras muito claras sobre como é a reforma agrária no país, estamos falando de terras da União e de áreas improdutivas.  A questão de gênero, o estado brasileiro precisa ter políticas proativas para que as mulheres tenham mais propriedades, e o caminho que o estado pode dar, inicialmente, é garantir títulos compartilhados. A questão de proteção dos direitos coletivos, de povos indígenas e quilombolas, a questão da tributação, rever as dívidas, o imposto sobre a propriedade rural que não está arrecadando nada e que tem a possibilidade de ser um imposto mais progressivo. O fortalecimento das políticas e de programas como o Pronaf. Mas, de verdade, estamos preocupados com esse novo momento político, com a extinção do MDA. Estamos num momento muito difícil, quando a articulação da sociedade  se faz muito necessária.

 

Foto: Divulgação