Política STF

STF libera compartilhamento de dados e abre caminho para retomar investigação de Flávio Bolsonaro

Tribunal ainda vai votar a tese, em que serão definidos os exatos limites da decisão
Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) Foto: Nelson Jr / Divulgação
Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) Foto: Nelson Jr / Divulgação

BRASÍLIA —  A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votou para liberar o compartilhamento de dados de órgãos de controle com o Ministério Público ( MP ) e a polícia, mesmo quando não houver decisão judicial. Também foi revogada a decisão liminar dada pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli , que mandava paralisar as investigações baseadas em informações detalhadas repassadas pela Receita Federal e pelo antigo Coaf , hoje rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira ( UIF ). Com isso, a Corte abre caminho para a retomada dos processos contra o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro .

Entenda : o que está em jogo no julgamento no STF sobre dados da Receita e do Coaf?

Os limites exatos da decisão — a chamada tese —ainda não foram definidos. Isso ficará para a próxima quarta-feira. Mas, em linhas gerais, a maioria dos ministros é favorável a um amplo compartilhamento de dados tanto da Receita como do Coaf, sem restrições significativas. Entre as obrigações que deverão ser seguidas é a necessidade de o MP preservar o sigilo das informações que receber.

Dos 11 ministros, nove não restringiram o compartilhamento por parte da Receita. Entre eles está Toffoli, que inicialmente restringia. Depois, segundo sua assessoria, alterou o voto para se alinhar à maioria. Durante a sessão, porém, ao afirmar que mantinha as ressalvas de seu voto, ele não deixou claro que estava fazendo essa mudança.

A maioria foi formada com o voto da ministra Cármen Lúcia , a primeira a se manifestar na sessão desta quinta-feira. Apenas os ministros Marco Aurélio Mello e Celso de Mello votaram para impôr restrições à Receita.

Leia : Especialistas divergem sobre uso de dados sigilosos

Com base na liminar dada por Toffoli em julho, que dizia respeito a todas as investigações baseadas em informações compartilhadas pelos órgãos de controle, o ministro Gilmar Mendes deu outra decisão, em setembro, suspendendo especificamente os processos de Flávio Bolsonaro. Assim, com a derrubada da liminar do presidente do STF, a consequência natural é que a decisão de Gilmar também caia. Ainda há incerteza sobre como isso se dará. Uma possibilidade é que ocorra de forma automática. A outra é que seja necessário um despacho de Gilmar.

Alguns ministros disseram ser contra discutir o compartilhamento de dados do antigo Coaf nesse julgamento. Isso porque o processo dizia inicialmente respeito apenas à Receita. O Coaf foi incluído graças à decisão de Toffoli em resposta ao pedido de Flávio. No fim da sessão desta quinta-feira, o presidente do STF entendeu que os ministros que querem excluir o órgão ficaram vencidos. Assim, a tese vai incluir as regras para o compartilhamento de dados do Coaf. Se ficassem de fora, isso também significaria na prática a retomada de investigações baseadas em dados repassados pelo órgão

Ao longo do julgamento, os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, embora sem impedir o compartilhamento de dados detalhados do antigo Coaf, também fizeram algumas ressalvas à atuação do MP. Os outros ministros não chegaram a abordar isso, o que pode vir a ocorrer durante a discussão da tese. Assim, eventuais restrições — que poderão ter impacto em casos específicos, como o de Flávio — ainda poderão ser tema de debate no STF.

Por que o julgamento ainda está em aberto?

Porque os ministros ainda não votaram a tese. O recurso julgado nesta quinta-feira é do tipo que tem "repercussão geral". Ou seja, a decisão tomada deverá ser aplicada por juízes de todo o país em processos sobre o mesmo assunto. Nesses casos, o julgamento tem duas fases: a resolução do caso concreto (que originou o julgamento) e a tese que deverá ser aplicada aos outros casos semelhantes.

Nesta quinta-feira, os ministros votaram apenas sobre o caso concreto, ou seja: eles deferiram o recurso do Ministério Público Federal que defendia a legalidade do repasse de informações entre a Receita Federal e o MP. A tese, que é o que irá definir, por exemplo, se esse compartilhamento poderá ser ampliado ao Coaf, ainda não foi votada. Só após a votação da tese é que será possível afirmar, com precisão, como poderá ser feito o compartilhamento de dados entre órgãos de controle como o Coaf e o MP.

O que acontece com Flávio Bolsonaro

Com a revogação da liminar de Toffoli, o caminho fica aberto para a retomada das investigações contra o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), conduzidas pelo MP do Rio de Janeiro. Ele é alvo de uma investigação pela suposta prática de "rachadinha". O MP apura se servidores do seu gabinete quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro devolviam, ilegalmente, parte de seus salários.

O ex-assessor parlamentar de Flávio, Fabrício Queiroz, admitiu que recebia parte dos salários dos servidores para contratar mais pessoas no gabinete de Flávio. Queiroz, no entanto, diz que Flávio não tinha conhecimento da prática.  As investigações estavam travadas desde julho, quando Toffoli concedeu uma liminar a pedido da defesa do senador.

Veja como votou cada ministro:

Celso de Mello

Último a votar, o ministro Celso de Mello seguiu o posicionamento de Toffoli e Marco Aurélio, votando pela necessidade de decisão judical para o repasse de informações da Receita às autoridades. Ele ainda destacou que a atuação moderadora da Justiça impede que direitos individuais sejam violados e, por isso, defendeu que a quebra de sigilo seja feito só por meio de aval judicial.

Ainda em seu voto, o ministro afirmou que que a própria Constituição determina que a administração tributária deve respeitar os direitos dos contribuintes. Ele disse ainda os poderes dos agentes estatais não são absolutos.

Marco Aurélio

O ministro Marco Aurélio votou para negar o recurso que motivou a discussão sobre o compartilhamento de informações da Receita. Em voto breve, ele ressaltou a necessidade de haver decisão judicial para que o órgão repasse informações ao Ministério Público. Sendo assim, acompanhou o voto do relator do processo, Dias Toffoli.

Marco Aurélio inclusive citou um trecho da Constituição que diz ser " inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal".

O ministro ironizou o fato de o Ministério Público não poder quebrar o sigilo, mas a Receita, na sua avaliação, ter autorização para fazer isso. Assim, para o MP ter acesso aos dados sigilosos que normalmente ficariam fora de seu alcance, basta o compartilhamento das informações em posse da Receita.

— Surge uma ironia. A Receita, parte na relação tributária, pode quebrar o sigilo de dados bancários, mas o Ministério Público não pode. Daí o surgimento desse vocábulo que passou a ser polivalente, que é o vocábulo "compartilhamento" —  disse Marco Aurélio.

O ministro não falou sobre o compartilhamento de dados do antigo Coaf.

Gilmar Mendes

Oitavo integrante do Supremo a votar pela possibilidade de a Receita Federal compartilhar, sem necessidade de autorização judicial, dados detalhados com o Ministério Público, como cópias de declaração de imposto de renda, a fim de embasar investigações criminais.

— Divirjo da proposta apresentada por Vossa Excelência (Toffoli) para não estabelecer a impossibilidade de compartilhamento no âmbito restrito da representação fiscal para fins penais de documentos como declarações de imposto de renda ou extrato bancários. Ressalto no entanto que tais documentos só poderão ser objeto de compartilhamento na medida em que forem estritamente necessários para compor indícios de materialidade nas infrações apuradas — disse Gilmar.

No caso de dados do antigo Coaf, hoje rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira (UIF), Gilmar também foi o oitavo a votar a favor do compartilhamento de relatórios de inteligência financeira (RIFs) com o MP sem necessidade de autorização do Judiciário. Mas, assim como Toffoli, ele fez uma ressalva: se por um lado a UIF pode compartilhar seus dados, o MP só pode pedir relatórios a esse órgão em casos de cidadãos contra os quais já haja uma investigação criminal ou um alerta emitido por unidade de inteligência.

— O procedimento de disseminação espontânea de informações até aqui narrado afigura-se perfeitamente legal constitucional e necessário para a eficiência do combate à corrupção, lavagem de dinheiro ao terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa — disse Gilmar.

Ricardo Lewandowski

Oitavo a votar, o ministro se posicionou favorável a que a Receita Federal possa repassar informações ao Ministério Público se necessidade de autorização judicial prévia. Ele não se manifestou sobre a possibilidade ou não de compartilhamento de dados entre a UIF e o MP.

— Aqui não se cogita, senhor presidente, de compartilhamento indiscriminado ou aleatório de bancos de dados bancários e fiscais entre a Receita e o MP. Mas tão somente de transferência ou repasse daquela repartição para este órgão de provas relativas a sonegação fiscal de contribuintes para o efeito de promoção de sua responsabilidade penal. Não se está, portanto, diante de prova obtida ilegalmente ou de quebra de sigilo bancário ou fiscal da Receita — afirmou o ministro manifestando-se em direção ao presidente do STF, Dias Toffoli.

Cármen Lúcia

Primeira a votar na sessão desta quinta-feira, a ministra Cármen Lúcia acompanhou a maioria dos ministros, sendo favorável ao compartilhamento de dados de órgãos de controle fiscal, mesmo que não haja autorização judicial prévia. A magistrada conclui que é constitucional a Receita Federal receber, acessar e repassar dados fiscais ao Ministério Público. Com o parecer de Cármen, a Corte teve maioria para a aprovar que repasses de ambos os órgãos seja feito sem que seja necessário o aval judicial.

Luiz Fux

Fux foi o último a votar na quarta-feira. Ele acompanhou a divergência aberta por Alexandre de Moraes e também votou pelo amplo compartilhamento de informações de órgãos como a Receita Federal e a UIF com o Ministério Público. Em sua manifestação, Fux sustentou que esse compartilhamento vem sendo fundamental para a investigação de casos relacionados à lavagem de dinheiro e no combate aos demais crimes do colarinho branco.

Rosa Weber

A ministra votou a favor do amplo compartilhamento de dados. Para ela, o julgamento deveria se limitar apenas à possibilidade de repasse de dados entre a Receita Federal e o MP, mas, em sua manifestação, ela afirmou que se a maioria dos ministros decidir incluir o Coaf no julgamento, ela decidirá pela autorização do compartilhamento de dados entre o Coaf e o MP também, em posição similar à do ministro Alexandre de Moraes.

Luís Roberto Barroso

Também é a favor de um amplo compartilhamento dos dados. Além da Receita e do antigo Coaf, ele citou em seu voto outros dois órgãos de controle: Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Ele entende que o julgamento deveria se limitar à Receita, tema original do processo, mas como outros órgãos de controle foram abrangidos posteriormente, votou para liberar o repasse de todos eles.

Edson Fachin

Assim como Moraes, é a favor de amplo compartilhamento de dados coletados pela Receita. No caso do antigo Coaf, também votou pelo repasse de dados. Quanto à possibilidade de o MP solicitar dados da UIF de quem não é investigado ainda, Fachin disse que, pelo modo como o órgão opera, não verifica que isso venha a ser um problema. Segundo ele, a UIF não detém acesso a extratos bancários, apenas os recebe dos bancos e outras instituições obrigadas por lei a receber. Além disso, ele entende que o órgão pode fazer residualmente a coleta ativa desses dados para obter esclarecimentos acerca de eventual inconsistência das informações já prestadas por bancos e outras instituições.

Alexandre de Moraes

Para o ministro, não impedimentos legais para que a Receita compartilhe a íntegra de dados coletados por ela no âmbito de processos administrativos. Os documentos produzidos pela Receita Federal nesses processos devem ser considerados como prova lícita.

Quanto aos dados do antigo Coaf, Moraes disse que eles equivalem a peças de informação que chegam ao Ministério Público. A partir disso, o MP deve decidir o que fazer. Moraes não chegou a abordar um ponto mencionado por Toffoli em seu voto: se o MP pode pedir RIFs apenas de cidadãos contra os quais já haja uma investigação criminal ou um alerta emitido por unidade de inteligência.

Dias Toffoli

Toffoli, primeiro a votar, ainda na semana passada, impôs uma série de restrições, mas ficou em minoria. Para ele, a Receita não pode repassar sem autorização judicial a íntegra de documentos sobre os quais há sigilo, como a declaração de imposto de renda e extratos bancários. Também entende que o MP, ao receber informações, deve abrir um procedimento investigativo penal (PIC) e comunicar isso à Justiça, para que haja supervisão judicial. Além disso, avalai que os dados podem ser compartilhados apenas no caso de crimes contra a ordem tributária, contra a previdência social, descaminho, contrabando e lavagem de dinheiro.

Ao fim da sessão nesta quinta-feira, ao ver que ficaria isolado, Toffoli disse que se alinharia à corrente majoritária no julgamento do caso concreto, ou seja, pela legalidade da investigação conduzida no interior de São Paulo que levou o tema a ser debatido no STF. Por outro lado, destacou que manteria as ressalvas que havia feito. Depois, a assessoria do ministro informou que ele mudou o voto não apenas no caso concreto, mas também na discussão do tema como um todo. Em outras palavras, segundo a assessoria, mesmo dizendo que ainda tinha ressalvas, Toffoli passou a admitir o compartilhamento de informações detalhadas pela Receita em qualquer caso, mesmo sem autorização judicial.