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Política

Diretor-geral penitenciário diz que país precisa de 20 mil a 25 mil vagas por ano para resolver o deficit

Fabiano Bordignon diz que o setor carcerário foi esquecido no Brasil e a solução está em abrir vagas e impor disciplina rigorosa nos estabelecimentos
Especial Violência encarcerada Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Especial Violência encarcerada Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

BRASÍLIA — Em palestras, reuniões de trabalho e outros compromissos profissionais, Fabiano Bordignon, diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), gosta de sacar o calhamaço e apresentar aos interlocutores. É a cópia do relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) feita em 1976 para investigar a situação do sistema prisional no país. “Ociosidade e superlotação”, diz o trecho grifado com marca-texto que Bordignon apresenta como a prova de que o setor carcerário sempre foi esquecido no Brasil. A solução, para o chefe da equipe do ministro Sergio Moro na questão prisional, está em abrir vagas e impor disciplina rigorosa nos estabelecimentos. Veja os principais trechos da entrevista dada por Bordignon ao GLOBO:

Como chegamos a essa situação absurda no sistema prisional?

Nunca houve uma política carcerária no Brasil. O tema sempre foi esquecido. A primeira CPI é de 1976 e na conclusão já se falava do problema da ociosidade dos presos, que ficam sem fazer nada nas unidades, e de superlotação. É um problema histórico. Mas não é que nós tínhamos muitos presos lá naquela época, o que nós não tínhamos era uma política nessa área.

Entre 2017 e 2019, pelo menos 289 pessoas morreram em rebeliões em presídios pelo país, expondo para alémdos muros a situação da superlotação do sistema penitenciário brasileiro. Só neste ano, 117 homens foram brutalmente assassinados em cadeias do Amazonas e do Pará. Nos dois casos, as unidades estavam com duas vezes mais presos do que vagas: uma situação que se repete em todo o país.A série Violência encarcerada tem seis episódios, todos com narração do ator Cauã Reymond.
Entre 2017 e 2019, pelo menos 289 pessoas morreram em rebeliões em presídios pelo país, expondo para alémdos muros a situação da superlotação do sistema penitenciário brasileiro. Só neste ano, 117 homens foram brutalmente assassinados em cadeias do Amazonas e do Pará. Nos dois casos, as unidades estavam com duas vezes mais presos do que vagas: uma situação que se repete em todo o país.A série Violência encarcerada tem seis episódios, todos com narração do ator Cauã Reymond.

O que fazer para resolver?

Precisamos resolver o déficit carcerário com a abertura de vagas, com alternativas penais, com processos judiciais mais rápidos para que a gente tenha cada vez menos presos provisórios. É um esforço dos três Poderes e temos que envolver a sociedade nisso. Precisamos retomar o controle das unidades prisionais.

O senhor acha que o Brasil prende muito?

Em números absolutos, somos a 3ª ou 4ª maior população carcerária, mas temos 210 milhões de habitantes. A taxa é de 350 presos por 100 mil habitantes, com dados de 2017. Tem um site (prisonstudies.org) que faz um ranking por cem mil habitantes. Mostra, com dados de 2016, que o Brasil estaria lá pelo 24º lugar.

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Mas esse ranking considera até ilhas minúsculas, em que poucos presos distorcem a taxa por cem mil habitantes, o que é questionado metodologicamente.

A quantidade não é importante. Temos os presos que merecemos ter, que nosso momento histórico permite. A questão é o que fazemos com eles. Historicamente, fizemos muito pouco. Deixamos os presos em unidades com pouca estrutura, não disciplinamos os procedimentos. As organizações criminosas nasceram onde? No cárcere. Precisamos fazer mais com eles.

Como o governo federal vai atuar para fazer mais?

A questão importantíssima é equacionar a abertura de vagas. Estamos aumentando a parte de engenharia, fazendo projetos padronizados para que o tempo de construção, que levava cinco, oito, dez anos seja de no máximo dois anos. Precisamos de 20 mil a 25 mil vagas por ano, num período de quatro a oito anos, para resolver o deficit e retomar o controle. Aí a gente realmente vai resolver o problema prisional no Brasil.

Há espaço para uma política de desencarceramento?

Já existe uma política de desencarceramento, com tornozeleiras eletrônicas, prisão domiciliar. Não defendo que temos que prender todo mundo. O poder Executivo não tem a chave da cadeia, mas tem que ter as vagas para atender as demandas do Judiciário e das polícias. Há, se não me engano, 18 estados com centrais de penas alternativas que apoiamos. No Brasil hoje temos cerca de 50 mil pessoas que não estão presas, mas estão com tornozeleiras.

O senhor relaciona o nascimento das facções à falta de disciplina nos presídios. Mas também há falta de assistência, de condições mínimas aos presos, que muitas vezes encontram apoio nas facções.

Certamente. Nós não estamos satisfeitos com as condições dos cárceres no Brasil. Precisamos melhorar. Agora, a melhora das unidades depende também do trabalho do preso. Nós temos uma grande ociosidade, poucos presos hoje no Brasil trabalham e alguma coisa do trabalho de presos pode repercutir inclusive na melhora das condições do cárcere. Eles podem fazer algumas reformas, pinturas e ampliações. O Depen quer incentivar isso.

O preso não quer trabalho ou não é oferecido trabalho a ele?

Não há uma objeção do preso em trabalhar em geral, há alguns faccionados que não querem, mas a maioria dos presos hoje no Brasil quer trabalhar. Agora, colocar o preso para trabalhar dá trabalho, e o preso que trabalha dá menos trabalho. É preciso equacionar essas questões.

“Se vai ter visita íntima, tem que ser uma visita íntima em celas adequadas, com mulheres que efetivamente sejam parceiras daqueles presos”

Fabiano Bordignon
Diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional

Quais as grandes dificuldades para ofertar o trabalho ao preso?

Existe receio dos empresários em investir nas oficinas de trabalho dentro de unidades prisionais. A lei de execução penal favorece muito o trabalho: tem o ganho financeiro, tem remição da pena. Então precisamos melhorar as estruturas prisionais para que possamos acoplar barracões industriais. E o preso, trabalhando cinco ou dez anos, sai com um pecúnio que permita a ele recomeçar a vida, não numa facção, mas com uma profissão garantida e um dinheirinho.

Quais medidas de disciplina, um tema muito mencionado pelo senhor, poderiam ser aplicados aos presídios?

Percebemos em alguns estados a falta de uma rotina carcerária escrita para ser seguida pelos agentes, pelos presos, pelos visitantes. A questão da visita íntima, que foi banida no sistema federal, deve ser discutida nos estados. Se vai ter visita íntima, tem que ser uma visita íntima em celas adequadas, com mulheres que efetivamente sejam parceiras daqueles presos. Há o ingresso de celulares nas unidades que precisa ser coibido.

E o papel da corrupção dos agentes públicos nos presídios?

Quando eu falo em disciplina nas cadeias eu digo em duas mãos: para o agente e para o preso, que são os dois grandes atores. Existe a corrupção no cárcere e é preocupante. Estamos incentivando a criação de corregedorias, criamos uma diretoria de inteligência que faz a união de todas as unidades federativas e do governo federal na questão da inteligência penitenciária, que envolve também ações de contrainteligência. Precisamos ter olho atento para o agente penitenciário, que em alguns casos, sim, pode ser afetado, pode ser cooptado pelas organizações.

Mas como garantir isso na prática?

Temos que diminuir o contato do preso com o agente. Então, por exemplo, São Paulo, na região oeste, quase todas as cadeias estão com portas automatizadas. Não há contato físico do agente com o preso na hora do banho de sol, que é um momento crítico em que pode haver ameaças e propostas de corrupção. Nos presídios federais, por exemplo, temos as câmeras que ajudam, estão olhando todo mundo. Mas também precisamos de corregedorias atuantes, inteligência penitenciária, para verificar também a lisura do servidor.

Por que é tão difícil construir vagas no sistema prisional, mesmo as financiadas pelo governo federal?

Uma grande obra penitenciária custa R$ 50 milhões, precisa ter um engenheiro ali para fiscalizar, para ver o andamento da obra. Nós não tínhamos profissionais, só havia um projeto padrão. Criamos uma coordenação de licitação de obras que vai ajudar os estados a fazerem essas licitações. Mas não dá para fazer só com o poder público. Temos que envolver também as empresas privadas sem que isso represente a privatização completa do sistema. O poder de polícia nas PPPs (parcerias público-privadas) deve ser do Estado. Isso é irrenunciável por uma questão constitucional.

A experiência de cogestão no caso do presídio de Manaus, que teve massacres sangrentos, não sinaliza problemas em agregar a iniciativa privada em uma área tão delicada?

Vimos alguns exemplos bons e outros exemplos ruins de cogestão. Assim como no sistema público, a PPP também pode ter coisa que funciona e outras que nem ficam em pé. Não temos nenhum preconceito com qualquer modelo, desde que seja aplicado de forma adequada. Se funciona, vamos apoiar.

Há um temor de que PPPs tragam a lógica do lucro no setor, o que, por sua vez, poderia implicar em superencarceramento, fenômeno apontado nos Estados Unidos. O senhor tem essa preocupação?

Não, porque no Brasil as PPPs não chegariam a 50% do sistema. A gente pensa em ter alguns complexos maiores com PPP. Não vai ser como aconteceu no exterior.

“A gente gasta muito pouco hoje com o sistema prisional. Deveríamos ter gastado mais. Por isso está desse jeito”

Fabiano Bordignon
Diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional

Quanto custa um preso hoje?

Em média, de R$ 2 mil a R$ 2,5 mil por mês, mas isso sem computar o custo das obras. Considerando apenas os salários de servidores, alimentação, lavanderia. O custo não é tanto o problema.

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Não é problema?

A gente gasta muito pouco hoje com o sistema prisional. Deveríamos ter gastado mais. Por isso está desse jeito. Todo dinheiro que botarmos em presídio é mais barato que conviver com 60 mil homicídios por ano. E a vida não tem preço. Nós precisamos de R$ 3 bilhões por ano no sistema prisional. É muito abaixo do que o custo das vidas perdidas.

Mas presos por homicídio são a minoria no sistema, que concentra basicamente detidos por crimes contra o patrimônio e por trafico de drogas. O Brasil prende mal?

Não entro muito nesse mérito. Precisamos ter lugar para recebê-los e fazer mais com eles do que foi feito no passado. Mas realmente temos que melhorar a apuração de homicídios. Se melhorar esses índices, vai aumentar o número de presos. Mas isso não é o problema. Porque o crime precisa ter um castigo proporcional à violação do direito que foi cometida. Todo o trabalho que está sendo feito pelo Ministério da Justiça e pelos estados é para melhorar essa apuração dos crimes violentos.

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Há prisões desnecessárias entre presos por tráfico?

Temos uma lei de drogas que coloca penas rígidas por tráfico e o Brasil é um dos maiores consumidores de droga do mundo, tem muito trânsito de entorpecentes. Então, se temos uma legislação que pune o tráfico, é natural que tenhamos muitos traficantes presos. É um trabalho importante da polícia. E a questão do consumo? Precisamos trabalhar com o usuário de drogas para que ele perceba que está fomentando tudo isso aí.

Há usuários presos como traficantes, devido a uma suposta dificuldade de diferenciar as duas situações?

Pode ter. O que acontece às vezes: o traficante pode ter sido usuário que, para custear o vício, começa a traficar na faculdade, na escola. É preso pela polícia e nossa legislação diz que aquilo é tráfico. Portanto, ele é traficante. Há casos em que pode ser usada a tornozeleira, por exemplo. Mas isso é uma decisão judicial, não do Executivo.

Há críticas de que o sistema penitenciário federal pode ter ajudado na nacionalização das facções. O que o senhor acha disso?

Não, o que nacionalizou as facções foi a questão do tráfico de drogas. Dominar rotas, entregar cada vez mais drogas para os usuários. Não aceito essa crítica de que o sistema federal patrocinou isso. Se não tivéssemos o sistema penitenciário federal, onde colocaríamos os presos que estão lá? O sistema não é uma panaceia que vai resolver todos os problemas. Mas é preciso ter um discurso duro conta a criminalidade organizada, que já matou juízes, promotores, agentes penitenciários. Não é possível que 50 mil faccionados tragam terror a 210 milhões de pessoas.