ALTAMIRA E MANAUS — Carmen estranhou o silêncio assim que chegou ao Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, na manhã de 26 de maio. Ao contrário de outros domingos de visita, naquele dia os detentos não conversavam em rodinhas, não cantavam louvores nem jogavam futebol. Ela perguntou ao marido se havia algo errado, e ele desconversou. O detento só pediu que a mulher não saísse de dentro da cela. Era por volta de 10h30m quando Carmen começou a ouvir pedidos de socorro. Uma sirene tocou, indicando que a tropa de choque entraria e as visitas deveriam deixar o local. Mas as mulheres decidiram ficar, com medo de que os agentes agredissem seus companheiros.
— Percebi o que estava acontecendo porque um detento veio correndo e disse: "a cadeia está lombrando , a cadeia está lombrando " (em conflito, na gíria do crime) . E as mulheres começaram a gritar. Não vimos ninguém morrendo. Quando saí de lá, já vi sangue no chão e corpos cobertos com colchão. Eles (agentes) espirraram spray de pimenta na nossa cara. Depois vimos um helicóptero dando tiros lá de cima. Falaram que era de efeito moral, mas tinha marcas no chão — lembra ela.
Especial: Violência encarcerada
Nos últimos três anos, pelo menos 289 pessoas morreram em rebeliões em presídios pelo país. Boa parte dos assassinatos ocorreram com requintes de crueldade, com a decaptação das vítimas e a retirada de órgãos — crueldade depois disseminada em fotos e vídeos pelos aplicativos de troca de mensagens. Os episódios expuseram, para além dos muros, os efeitos da superlotação do sistema penitenciário brasileiro.
O mais recente massacre em cadeias de Manaus, presenciado por Carmen, resultou na morte de 55 detentos em quatro unidades. A matança foi motivada por um suposto racha entre integrantes de uma mesma facção, nascida no Norte do país. Os primeiros 15 assassinatos ocorreram no domingo. Na segunda-feira, houve outras 40 mortes. Como as cadeias do Amazonas estão superlotadas, não houve condições imediatas de transferir presos que representavam perigo.
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A maioria das mortes foi por asfixia mecânica, o conhecido mata-leão; algumas poucas, por estocadas com escovas de dentes afiadas, de modo a fazerem as vezes de faca. O secretário de Administração Penitenciária do Amazonas, Marcus Vinícius Almeida, conta que assistiu ao estrangulamento de alguns dos detentos enquanto os agentes tentavam abrir as celas. Para destrancar as portas da unidade, são necessárias duas chaves de rosca — o tempo médio da operação é de 40 segundos.
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— A gente foi abrindo cela por cela e tirando os caras, que estavam igual caranguejo amarrado, se matando. A gente salvou mais de 200. Mas muitos morreram com a gente olhando. Como tinham várias celas, enquanto a gente abria uma, eles matavam em outra. Um negócio surreal — disse Almeida.
A dois mil quilômetros dali, em Altamira, no interior do Pará, outro massacre escancarou os efeitos nefastos da superlotação pouco mais de dois meses depois. Evander Fontenele, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Subseção da OAB de Altamira, recorda-se da cena que viu ao final da briga entre duas facções rivais — uma local e outra nacional —, que resultou em 57 mortos no Centro de Recuperação Regional de Altamira, em 29 de julho.
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— O que nós encontramos foi a barbárie. Muitas cabeças estavam espalhadas pelo chão e depois foram recolhidas em um carro de supermercado para possível identificação. Corpos também estavam espalhados pelo local, partes de corpos também. Foi uma rebelião atípica para a nossa região.
Segundo Fontenele, dias antes do massacre os presos relataram que a unidade tinha mais do que o dobro de presos do que sua capacidade permitia. Roupas e medicamentos se encontravam escassos. Até o banho de sol estava limitado. Parte das celas do Centro de Recuperação Regional de Altamira fica num sistema de contêineres, com janelas minúsculas e ventilação insuficiente para dar conta das temperaturas amazônicas.