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Novo coronavírus pode causar uma epidemia de abuso de crianças

O 18 de maio é Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes. Em artigo, pediatra que atende menores vítimas de abuso afirma que a pandemia de Covid-19 criou as condições para um aumento nos casos de violência contra crianças que não serão checados por profissionais especializados
Em artigo, pediatra alerta para a possibilidade de aumento expressivo nos casos de abuso infantil durante a pandemia de coronavírus Foto: Pixabay
Em artigo, pediatra alerta para a possibilidade de aumento expressivo nos casos de abuso infantil durante a pandemia de coronavírus Foto: Pixabay

Famílias inteiras estão em casa. A ansiedade sobre saúde, educação e finanças é grande. As crianças não estão vendo seus professores, conselheiros e outros adultos que normalmente levantam questões sobre o seu bem-estar. A pandemia de Covid-19 cria as condições para um aumento nos casos de abuso infantil que não serão checados.

Já existem relatos de um aumento nos casos de abuso de crianças no Texas, EUA. Já vimos coisas assim antes, em períodos de estresse. Durante a crise econômica de 2008, pediatras relataram um aumento no número de crianças machucadas e de mortes em consequência de traumas na cabeça, uma tendência que se estendeu por anos.

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Quando a casa é disfuncional - violência doméstica, abuso parental ou alguma disfunção mental – o risco de abuso infantil aumenta, e há razões para acreditarmos que isso acontecerá durante a pandemia de Covid-19. A cidade de Nova York, assim como o Brasil, já vê um aumento na violência doméstica. As linhas telefônicas para prevenção de suicídio têm recebido mais chamadas. Enquanto estivermos confinados em nossas casas, muitos pais e mães que estão lutando com essas condições não terão como adiar o trabalho árduo de alimentar, entreter e educar suas crianças.

As crianças enfrentam particularmente o risco de violência sexual. Estima-se que uma em quatro meninas são abusadas até os 18 anos, e esse abuso costuma ser perpetrado por um membro da família dentro da casa onde a criança mora. Frequentemente, a criança revela o abuso para a mãe, mas o abusador continua em casa porque ele é o principal provedor. Estou preocupada que a nossa realidade atual – a falta de oportunidades para conseguir um refúgio fora de casa combinada com a dificuldade de conseguir novas configurações de vida quando há falta de recursos financeiros – torne ainda mais difícil para essas jovens vítimas escaparem de seus abusadores.

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Quase sempre, os olhares atentos dos professores, de conselheiros e outros cuidadores é um salva-vidas para essas crianças. Os educadores são as primeiras fontes de denúncias de abuso infantil. Uma professora pode ver a marca de um tapa no rosto de uma aluna e denunciar o caso as autoridades quando a criança, com medo de ser tirada de seus pais, der explicações inconsistentes para o machucado. Um conselheiro pode se encontrar com um adolescente que está mostrando sinais de depressão e entender que o padrasto está abusando sexualmente daquela menina ou menino.

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Como uma pediatra que trabalha com crianças vítimas de abuso, eu costumo ver mais casos no outono porque o abuso que acontece no verão é mais difícil de detectar. Espero que, quando esse período de distanciamento social acabar, eu veja um surto similar.

Pessoas que estejam preocupadas com uma família em particular podem ajudar fazendo pequenas coisas que diminuem o estresse. Pequenos gestos de apoio – seja em forma de comida, papel higiênico, livros de colorir e apenas a escuta empática - podem fazer a diferença e acalmar o estresse de mães e pais. Faça uso da tecnologia com encontros virtuais. Procure por sinais de estresse e lembre que qualquer um pode denunciar uma suspeita de abuso infantil. Mas também seja uma presença encorajadora, que gera confiança. Distanciamento social não é sinônimo de distanciamento emocional.

Líderes comunitários, líderes religiosos e representantes eleitos devem se coordenar com profissionais na área de saúde mental, trabalhadores do serviço social e conselheiros para conduzir visitas virtuais a família em risco. Uma ideia é formar grupos de pais e mães e conduzir ensino remoto para crianças com menos de 5 anos, porque essas estão sob o risco mais alto de abuso. Podem ainda trabalhar com grupos de apoio como os Alcoólicos anônimos e oferecer apoio online e em vídeo. Podem também usar as redes sociais para distribuir ajuda por telefone e enviar às crianças a mensagem de que elas não estão sozinhas.

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Como parte de consultas virtuais, os profissionais de saúde devem sempre perguntar como as famílias estão levando a quarentena e oferecer ajuda. Da mesma maneira que a febre é um sinal de infecção, os médicos devem reconhecer os sinais de abuso. Como médicos, podemos compartilhar informação sobre apoio às famílias, violência doméstica e serviços de prevenção ao suicídio com aqueles que possam estar sob risco, além de checar com alguma frequência de essas famílias têm dúvidas.

A pandemia trouxe com ela novos desafios sobre a proteção de crianças e adolescentes e revela falhas no que fizemos até aqui. Temos agora a oportunidade de usar novas ferramentas para assegurar as crianças de que elas estão seguras. Ferramentas essas que nos servirão durante essa crise e por muito tempo depois dela.

* Nina Agrawal é pediatra, especialista no tratamento de crianças vítimas de abuso, e professora assistente da Universidade Columbia.