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Animação sobre super-heroínas drag queens é atacada por pediatras: 'Imprópria para crianças'

Médicos querem impedir que a produção, anunciada para o segundo semestre na Netflix, vá ao ar
A série de animação "Super Drags" retrata a rotina de três rapazes que, à noite, se transformam em drag queens super-heroínas Foto: Divulgação
A série de animação "Super Drags" retrata a rotina de três rapazes que, à noite, se transformam em drag queens super-heroínas Foto: Divulgação

RIO - O anúncio de que a Netflix vai exibir, no segundo semestre, uma série de animação brasileira chamada "Super drags" — sobre três rapazes que se transformam em super-heroínas drag queens — tem sido alvo de críticas por parte de alguns médicos. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) divulgou uma nota criticando o conteúdo, que considera impróprio para crianças. A entidade pede, inclusive, que a série seja cancelada antes mesmo de ir ao ar.

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Quando "Super drags" foi oficialmente anunciada pelo serviço de streaming, no final de maio, a Netflix informou que o desenho animado é voltado para adultos, e não para o público infantil. Ainda assim, a SBP argumenta que não se pode "utilizar uma linguagem iminentemente infantil para discutir tópicos próprios do mundo adulto", porque isso " exige maior capacidade cognitiva e de elaboração por parte dos espectadores".

A série é a primeira animação original da Netflix produzida no Brasil. A história é centrada nos personagens Patrick, Donny e Ramon, que durante o dia trabalham em uma loja de departamento e, à noite, tornam-se Lemon Chiffon, Safira Cian e Scarlet Carmesim. De acordo com o anúncio oficial, que já mostra a veia cômica da produção, as super-heroínas drags têm a missão de reunir a comunidade LGBT e "espalhar purpurina pelo mundo".

EXPRESSÕES DO UNIVERSO LGBTQ

A sinopse da série também destaca o caráter cômico do desenho voltado para o público adulto, usando várias expressões do universo LGBTQ: "De dia, eles trabalham numa loja de departamento e têm que aguentar o chefe escroto. De noite, eles aquendam a neca e se transformam nas SUPER DRAGS, prontas para salvar o mundo da maldade e da caretice, enfrentando um vilão desaplaudido a cada episódio. Prepare-se, essas SUPER DRAGS vão longe demais". O texto brinca com frase "agora foi longe demais", um meme geralmente usado para se referir a Pabllo Vittar.

Com cinco episódios, a animação foi criada criada por Anderson Mahanski, Fernando Mendonça e Paulo Lescaut. A produção é do Combo Estúdio, que foi procurado, mas afirmou que só irá se pronunciar sobre as críticas da SBP depois que a série for ao ar. Até agora, as únicas imagens disponíveis ao público são de um teaser de apenas 27 segundos — o suficiente para provocar a revolta da SBP.

Procurada, a Netflix Brasil destacou que a série estará disponível apenas na plataforma adulta, e não na Kids. E que, mesmo que a criança acesse à plataforma de conteúdo para adultos, a empresa oferece duas formas de os pais controlarem o que os filhos assistem: o controle parental — em que uma senha faz com que tudo o que tiver classificação indicativa superior à idade da criança seja bloqueado para ela — e o controle individual para títulos — em que os pais podem escolher títulos de séries ou filmes específicos para bloquear.

Segundo o porta-voz da Netflix Brasil, essas ferramentas tornam o serviço de streaming seguro para menores de idade. De acordo com o porta-voz, ainda não possível dizer qual será a classificação indicativa da série "Super drags" porque ela está em fase de produção. O conteúdo dela não é infantil, mas a classificação exata só será determinada depois que a série estiver pronta.

"A Netflix oferece uma grande variedade de conteúdos para todos os gostos e preferências. 'Super drags' é uma série de animação para uma audiência adulta e não estará disponível na plataforma infantil (Netflix Kids). A seção dedicada às crianças, combinada com o recurso de controlar o acesso aos nossos títulos, faz com que pais confiem em nosso serviço como um espaço seguro e apropriado para os seus filhos. As crianças podem acessar apenas o nosso catálogo infantil, e nós colocamos o controle nas mãos dos pais sobre quando e a que tipo de conteúdo seus filhos podem assistir", diz a empresa, em nota oficial.

Durante o anúncio de "Super drags", em maio, o produtor executivo da série, Marcelo Pereira, divulgou um comunicado em que defendia a importância de existir representatividade LGBTQ nas produções distribuídas por streaming, que alcançam tantas pessoas.

"Estamos muito felizes por começar essa parceria com a Netflix. Quando Nostradamus disse que o mundo seria salvo por super heroínas drag queens, ninguém acreditou, só a gente (...). Graças à Netflix podemos levar a animação brasileira e principalmente a representatividade LGBTQ para os 190 países que têm acesso ao serviço. E também já podemos (...) sonhar com um mundo onde os gays podem arrebentar os bandidos, e não o contrário. Obrigado, Netflix, por nos fazer acreditar", declarou Marcelo Pereira, na ocasião.

Ainda assim, a SBP julga que a exibição desse produto será prejudicial para a formação das crianças e dos adolescentes que tiverem acesso a ele.

Liubiana Arantes de Araújo, neurocientista e presidente do Departamento Científico de Desenvolvimento e Comportamento da SBP, afirmou ao GLOBO que a crítica não é em relação à existência de uma série sobre drag queens, mas ao fato de as drags serem colocadas na posição de super-heroínas e representadas em um desenho animado.

— O super-herói faz parte da fantasia infantil. A criança tende a ver o super-herói como modelo de comportamento, modelo a ser seguido. É preocupante quando se coloca drag queens nessa posição de super-heróis — diz ela. — Defendemos a diversidade de gênero, respeitamos as drag queens, mas não podemos banalizar o efeito que que um desenho assim tem no cérebro infantil, que não tem maturidade cognitiva para entender isso. Mesmo sendo um conteúdo voltado para adultos, o simples fato de ser uma animação já o torna atraente para crianças.

Veja abaixo a íntegra da nota emitida pela organização:

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), em nome de cerca de 40 mil especialistas na saúde física, mental e emocional de cerca de 60 de milhões de crianças e adolescentes, vê com preocupação o anúncio de estreia, no segundo semestre de 2018, de um desenho animado, a ser exibido em plataforma de streaming, cuja trama gira ao redor de jovens que se transformam em drag queens super-heroínas.

A SBP respeita a diversidade e defende a liberdade de expressão e artística no país, no entanto, alerta para os riscos de se utilizar uma linguagem iminentemente infantil para discutir tópicos próprios do mundo adulto, o que exige maior capacidade cognitiva e de elaboração por parte dos espectadores.

A situação se agrava com o fim da Classificação Indicativa, decretado com sentença do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou inconstitucional o dispositivo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que estabelece multa e suspensão às emissoras de rádio e TV ao exibirem programas em horário diverso do autorizado pela classificação indicativa.

Essa decisão deixa crianças e os adolescentes dependentes, exclusivamente, do bom senso das emissoras de TV e plataformas de streaming, agregando um complicador a mais às relações delicadas existentes no seio da família, do ambiente escolar e da sociedade, de forma em geral.

Isso por conta do risco de exposição indevida desse segmento, por meio de programas, como esse desenho animado, a imagens e conteúdos com menções diretas e/ou indiretas a situações de sexo, de violência, de emprego de linguagem imprópria ou de uso de drogas.

Vários estudos internacionais importantes comprovam os efeitos nocivos, entre crianças e adolescentes, desse tipo de exposição. Ressalte-se o período de extrema vulnerabilidade pela qual passam esses segmentos, com impacto em processos de formação física, mental e emocional.

Sendo assim, a SBP reitera seu compromisso com a liberdade de expressão e com a diversidade, mas apela à plataforma que cancele esse lançamento, como expressão de compromisso do desenvolvimento de futuras gerações.

Além disso, a SBP pede aos políticos que, considerando a impossibilidade de recurso à decisão do STF, reabram o debate sobre a retomada da Classificação Indicativa ouvindo a contribuição dos especialistas, o que permitirá encontrar solução que não comprometa questões artísticas e assegure mecanismos de proteção para o público composto por crianças e adolescentes.