Rio Coronavírus

Números diferentes: favelas têm mortes por Covid-19 fora de boletim oficial

Dados coletados por moradores indicam que número de óbitos pode ser 41% maior
Movimento na Av. Itaoca, no Complexo do Alemão Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo
Movimento na Av. Itaoca, no Complexo do Alemão Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo

RIO - Dados coletados por moradores junto a clínicas da família indicam que, em 14 comunidades do Rio , o número de mortes provocadas pela Covid-19 é 41% maior que o divulgado pela prefeitura. A conta não oficial chegou ontem à noite a 129 óbitos, enquanto o boletim do município divulgado duas horas antes contabilizava 91 nessas regiões. Para organizadores do levantamento independente, a discrepância se deve principalmente a uma suposta falha no sistema do município: vítimas de algumas comunidades estariam sendo registradas como residentes de bairros vizinhos. Assim, a estatística não retrataria a realidade de áreas mais carentes da cidade.

O painel #CoronaNasFavelas, organizado pelo coletivo Frente Maré, seria um exemplo dessa possibilidade de erro. O levantamento inclui duas comunidades que não constam do boletim oficial — os morros Pavão-Pavãozinho, situados em Copacabana e Ipanema, e da Providência, na Gamboa. Considerando ambas, o total chegaria a 148 óbitos em 16 favelas.

Faixa na passarela da Rocinha pede que moradores fiquem em casa Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo
Faixa na passarela da Rocinha pede que moradores fiquem em casa Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo

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Um painel criado pelo “Voz das Comunidades”, jornal comunitário fundado por René Silva, morador do Complexo do Alemão, acompanha dados de 13 favelas. Assim como o trabalho da Frente Maré, a iniciativa independente consolida não só as notificações da prefeitura e do governo estadual, mas registros de Clínicas da Família. Na região, o município não contabilizou mortes por Covid-19, porém o levantamento popular somou 12.

Confira os números*

Voz das Comunidades: 375 casos e 125 óbitos em 13 comunidades: Rocinha (97 e 40 óbitos), Manguinhos (42 e 11) Maré (40 e 9), Providência (34 e 10), Mangueira (29 e 7), Jacaré (28 e 9), Alemão (29 e 12), CDD (23 e 7), Acari (23 e 6), Vidigal (13 e 2), Pavão-Pavãozinho e Cantagalo (9 e 9), Jacarezinho (6 e 2) e Vila Kennedy (2 e 1)

Painel Corona nas favelas (Frente Mobilização Maré): 446 casos e 149 mortes em 16 comunidades : Rocinha (97 e 40 óbitos), Manguinhos (42 e 12) Maré (40 e 12), Providência (34 e 10), Vigário Geral (34 e 10 óbitos), Mangueira (29 e 7), Jacaré (28 e 9), Alemão (29 e 12), CDD (23 e 7), Acari (23 e 6), Parada de Lucas (21 e 4), Caju (16 e 6) , Vidigal (13 e 2), Pavão-Pavãozinho e Cantagalo (9 e 9), Jacarezinho (6 e 2) e Vila Kennedy (2 e 1)

Painel da Prefeitura: 367 casos e 91 óbitos em 14 comunidades: Rocinha (94 e 18 óbitos), Maré (40 e 7 óbitos), Vigário Geral (34 e 10 óbitos), Manguinhos (35 e 12),  Mangueira (29 e 7), Jacare (28 e 9), CDD (23 e 7), Acari (23 e 6 ) Parada de Lucas (21 e 4), Vidigal (11 e 2 ), Complexo do Alemão (5 e 0), Jacarezinho (6 e 2),  Caju (16 e 6) Vila Kennedy (2 e 1)
*atualizados em 13/5/2020

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Óbitos em casa

Moradores destacam que o número real de óbitos é maior porque várias pessoas morreram em casa, ou seja, não teriam entrado na estatística do poder público, feita a partir de registros em unidades de saúde. Também haveria diferença entre estatísticas oficiais e independentes relacionadas aos casos de infecção, e, por isso, a equipe médica da Clínica da Família Zilda Arns, no Complexo do Alemão, decidiu lançar um portal com atualizações diárias das notificações.

— A gente acha que a discrepância para a estatística oficial ocorre porque muitos pacientes estão vinculados a outros lugares e isso mascara a realidade do Complexo do Alemão, que se estende por seis bairros. Nosso objetivo é justamente mostrar que, na verdade, as favelas têm muito mais casos que o divulgado pelas autoridades — disse um médico da clínica, que pediu para não ser identificado. — Temos muitos relatos de pessoas falecendo em casa, principalmente na comunidade Nova Brasília.

Faixa com pedido para que moradores fiquem em casa na Avenida Itaoca, no Complexo do Alemão Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo
Faixa com pedido para que moradores fiquem em casa na Avenida Itaoca, no Complexo do Alemão Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo

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O “Voz das Comunidades” também compila números da Rocinha, em parceria com o jornal comunitário “Fala Roça”. Os dados são levantados por meio de análises da Vigilância Sanitária municipal, pesquisas no sistema de verificação de exames de laboratórios e registros de atendimento no Centro Municipal de Saúde Albert Sabin e nas Clínicas da Família Maria do Socorro Silva e Silva e Rinaldo de Lamare.

Segundo Wallace Pereira, presidente da Associação Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha, o painel dos médicos reúne apenas casos com indicação de internação hospitalar. Ficam de fora os doentes com sintomas leves, que são a maioria. Em entrevista ao “Fala Roça”, um profissional de saúde disse que o levantamento não oficial é mais realista e reforça, para a comunidade, a importância do isolamento social.

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'Pronunciamentos do presidente foram um desserviço'

Responsável por atualizar a estatística do Frente da Maré, o morador da comunidade Anísio Borba diz que mesmo o levantamento paralelo está muito aquém da realidade.

— Temos relatos diversos aqui dentro, mas não conseguimos dar conta de tudo. E não vejo respeito ao isolamento. Depois dos pronunciamentos do presidente, os moradores saíram muito de casa, foi um desserviço grande para a gente. Muita gente acha que é gripezinha até hoje, o comércio funcionando normalmente e a prefeitura não está fiscalizando — diz Borba, que destaca que o Frente Maré já arrecadou mais de 3 mil cestas básicas junto a parceiros como Fiocruz e Lamsa. —  O problema de desemprego está afetando muita gente aqui, e muitos moradores são informais e precisam trabalhar na rua.

Integrantes do coletivo Frente de Mobilização da Maré carregam uma van com material de limpeza e alimentos para distribuição no interior da Favela da Mare Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo
Integrantes do coletivo Frente de Mobilização da Maré carregam uma van com material de limpeza e alimentos para distribuição no interior da Favela da Mare Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo

'Nunca morreu tantas pessoas de uma vez só'

Uma comunidade que não aparece nos dados oficiais, nem nos levantamentos paralelos, é Rio das Pedras. Andreia Ferreira, integrante da Comissão de Moradores do local, diz que a maioria das pessoas são atendidas no Lourenço Jorge, o que poderia ser um dos motivos da falta de notificações na comunidade. Ela diz que já teve conhecimento de pelo menos 10 óbitos.

— Temos percebido um fenômeno, nunca na comunidade morreu tantas pessoas de uma vez só — lamenta a moradora. — Não sei se o motivo é que as pessoas são atendidas na Barra ou Jacarepaguá, mas a gente já reparou que as estatísticas nunca mostram Rio das Pedras.

O número de casos de Covid-19 chegou a 18.728 ontem no Estado do Rio. Já são 2.050 mortes provocadas pela doença, de acordo com a Secretaria estadual de Saúde. Em 24 horas, foram registrados mais 122 óbitos. Na capital, que concentra o maior número de infectados (11.026), 1.363 pessoas morreram.

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Defensoria lamenta

Coordenadora do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio, Adriana Bevilaqua disse que relatos de moradores corroboram a impressão de subnotificação em favelas.

— A situação é agravada pela dificuldade de o isolamento ser uma possibilidade para as camadas mais pobres,  sem o devido auxílio governamental. O isolamento social deveria também ser observado pelo prisma do direito à saúde e à vida, e em consequência uma obrigação do Estado em fornecer os meios necessários, tais como renda mínima, cestas básicas alimentícias e de higiene, água, que ainda é um problema em várias localidades. — disse Adriana.

Coronavírus em 31 comunidades

Além das comunidades contabilizadas pelos painéis do Voz das Comunidades e do Frente Maré, há outras dezenas sofrendo com o Coronavírus. A urbanista Theresa WIlliamson, diretora da Comunidades Catalisadoras, já identificou 31, incluindo locais como Complexo do Lins, Rio das Pedras  e Borel.

— Nossa preocupação é saber em quais comunidades há casos, independente da quantidade. Porque a partir da entrada do vírus, ele se espalha muito rápido. O isolamento é um desafio, principalmente por causa do problema da renda da população. Não adianta decretar lockdown se não garantir alimentação para essas pessoas — explica a urbanista, que diz ter contatos com cerca de 40 lideranças comunitárias durante a pandemia. — Há muitas comunidades com relatos de óbitos que não aparecem nos registros oficiais.

Um portal de notícias de favela surge em meio à crise e ajuda na conscientização

Gestado no fim ano passado para ser um portal a reunir canais de comunicação de diversas comunidades, o Portal das Favelas teve seu lançamento antecipado para ajudar moradores no meio da pandemia. Idealizado pelo jornalista, compositor da Mangueira e líder comunitário do Jacarezinho, Rumba Gabriel, o projeto está realizando campanha de financiamento coletivo para custear cestas básicas — até aqui já arrecadou cerca de R$20 mil — e fazendo ações de conscientização e divulgação de ferramentas do combate ao Coronavírus.

— Quando a gente olha para o país como um todo, é difícil pensar num isolamento total. Imagina uma terra "sem lei" ter lockdown, como funciona? — responde Rumba, que detalha o trabalho do Portal das Favelas durante a pandemia. — Além de produzir conteúdo, impulsionamos canais de parceiros tudo dentro do portal, com as mais diversas informações, de como se prevenir, se comportar. Também passamos com carro de som e usamos rádio comunitária. Fazemos um esforço sobrenatural para convencer as pessoas e usá-las como multiplicadoras

O jornalista diz que há muitas pessoas aderindo ao isolamento social, mas ainda assim há diversas aglomerações no Jacarezinho, assim como nas demais comunidades. O trabalho é de formiguinha, reconhece. Por isso, é cético quanto ao plano da prefeitura de fiscalizar o comércio local.

— Gostaria de ver isso na prática como morador. Acho legal uma fiscalização, só não gostaria de ver o uso da força. É melhor conscientizar, como estamos fazendo. Mas se até quando os próprios moradores pedem, o comércio se recusa a fechar, acho que se for a prefeitura vão só esperar os guardas saírem para reabrir tudo de novo —  explica Rumba, que, da parte do poder público, gostaria de ver investimento maior em testagem. — Aqui pode, sem medo de errar, multiplicar os casos notificados por três para chegar ao número real, no mínimo.

O projeto está realizando campanha de financiamento coletivo para custear o funcionamento do Portal por um ano e até aqui já arrecadou cerca de R$20 mil ( http://vaka.me/989980 ). Além disto, está divulgando campanhas de arrecadaçã das favelas verificadas pelo Portal para ações de conscientização e divulgação de ferramentas do combate ao Coronavírus, pelo site https://www.portalfavelas.com/post/covid-19-solidariedade-na-pandemia.

— Estamos sofrendo com a pandemia, a catástrofe era anunciada. Temos pessoas morrendo em casa,  outras com dificuldade em fazer higienização. Somos um guarda-chuva dessa solidariedade — resume Rumba.

A Secretaria municipal de Saúde afirmou que as notificações de Covid-19 levam em conta os bairros declarados nas fichas dos pacientes. Além disso, a pasta alegou que, como Rio das Pedras, Pavão-Pavãozinho e outras favelas não são bairros oficiais, seus moradores têm que ser registrados com outros locais de origem.