Blog da Yvonne Maggie

Por Yvonne Maggie

Antropóloga. Professora emérita da UFRJ. Autora dos livros 'Guerra de orixá' e 'Medo do feitiço'


Ruth de Souza emocionada durante desfile da Santa Cruz — Foto: Marcos Serra Lima/G1

O general mouro, Otelo, serve ao reino de Veneza e ama sua jovem esposa Desdêmona. Insuflado por seu suboficial, Iago, acredita que sua esposa o trai com o jovem tenente Cássio. Consumido pelo ciúme pela trama armada por Iago, Otelo totalmente desesperado asfixia sua amada esposa. Logo a seguir, Cássio entra no aposento do crime e desfaz as mentiras do suboficial. Conhecendo a verdade, depois de um último beijo, Otelo se suicida, caindo morto ao lado da esposa.

Essa cena faz parte de uma das inúmeras obras de Shakespeare, Otelo, escrita em 1603. O general mouro é mais velho e negro. Sua bela esposa, filha de um senador, é jovem rica e branca.

No festival de Shakespeare organizado em 1946 por Paschoal Carlos Magno, ator, teatrólogo, poeta e diplomata brasileiro, o Teatro Experimental do Negro, TEN, montou a famosa cena shakespeareana. Os papeis dos dois personagens centrais foram representados pela jovem atriz Ruth de Souza e o criador do TEN, Abdias do Nascimento, dando à tragédia um caráter mais universal do que nos espetáculos clássicos.

Os dois atores negros centraram a trama no sofrimento da paixão, da inveja, do ciúme e da diferença de posição social do casal apaixonado: Desdêmona rica e Otelo oficial a serviço de um reino.

Da cena produzida pelo TEN neste festival, Ruth de Souza, segundo ela, a primeira Desdêmona negra no mundo, guardava uma linda foto em um cartaz grande na sala do apartamento simples em que vivia no Flamengo. A fotografia impressiona porque já se vê ali o nascimento de uma atriz de primeira grandeza.

Tive o privilégio de conhecer Ruth de Souza quando fui convidada para fazer sua biografia para o Dictionary of Caribbean and Afro–Latin American Biography, v. 1, Oxford University Press, USA, 2016, organizado por Franklin W. Knight e Henry Louis Gates Jr.. Decidi entrevistá-la depois de ler a bibliografia existente. Por intermédio de Milton Gonçalves, consegui seu telefone e liguei sem esperança de ser atendida. A própria atriz respondeu à chamada e logo marcamos o encontro.

Em uma tarde fresca de junho de 2012, Ruth de Souza me contou com seu sorriso largo, muitas histórias e passagens de sua vida. Expôs, sobretudo, o seu sentimento em relação a ser uma atriz, e reafirmou o que já declarara em muitas entrevistas, especialmente em 1988 ano do Centenário da Abolição da escravatura no Brasil, quando estrelou um filme de propaganda do Ministério da Cultura no qual aparecia pensativa dizendo: “Eu me chamo Ruth de Souza. Eu espero um dia fazer uma coisa, um papel, uma vivência de gente sem a marca de ser negro, branco, azul ou cor de rosa e quem sabe algum dia consiga”.

Depois de descrever muitos de seus percalços de artista, especialmente no filme "O assalto ao trem pagador" (1962) de Roberto Farias, no qual interpretou a amante do assaltante Tião e assumiu maior peso na história do que Luiza Maranhão que fazia o papel principal de esposa do protagonista. Terminamos nossa conversa com um abraço afetuoso e Ruth disse que não gostava de ser chamada de dama do teatro, de estrela, preferindo ser vista como uma atriz que faz bem o seu trabalho.

Ruth de Souza inaugurou sua vida artística no dia em que o mundo comemorava o fim da Segunda Grande Guerra, 8 de maio de 1945. Revendo sua inigualável trajetória pode-se dizer sem pestanejar que desde sua primeira atuação na peça O imperador Jones encenada pelo TEN, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, neste memorável dia de 1945, enquanto na rua era comemorado com enorme algazarra e alegria o fim do sangrento conflito, até sua última participação na série "Se eu fechar os olhos agora" da TV Globo, conseguiu realizar seu desejo de ser uma atriz universal, fazendo papéis que expressaram dramas de todo o ser humano.

Que beleza representar Desdêmona sendo uma jovem negra e, sobretudo, no início de sua carreira. Seria possível hoje fazer tal deslocamento? Parece-me que não. Inúmeros exemplos acenam para outro sentido no Brasil e no mundo quando escolhem um ator negro para representar um personagem como Carlos Marighella ou quando rejeitam uma atriz “menos negra” para representar Dona Ivone Lara.

Finalmente, como explicar o debate em torno da escolha da laureada atriz britânica Cynthia Erivo para o papel da legendária abolicionista norte-americana Harriet Tubman. A escolha de uma britânica para o papel sofreu críticas ferozes por parte dos Afro Americanos porque, segundo dizem, a inglesa não tem uma vivência histórica da escravidão e da segregação norte-americanas.

É com imenso carinho e admiração que me despeço da grande Ruth de Souza. Seu legado é muito mais vasto do que sua cor.

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