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Brasil Conte algo que não sei

"Plantar horta na cidade é fazer micropolítica", diz líder indígena Aílton Krenak

Ativista participou de evento sobre agricultura urbana na Fundição Progresso
"A população precisa entender que a presença do índio protege a floresta melhor do que um exército de guardas florestais" diz o líder indígena Aílton Krenak Foto: Ana Branco / Agência O Globo
"A população precisa entender que a presença do índio protege a floresta melhor do que um exército de guardas florestais" diz o líder indígena Aílton Krenak Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO - Líder indígena e ativista ambiental que percorre o Brasil trabalhando pela preservação dos povos da floresta (e das florestas do povo), Aílton Krenak esteve no Rio para, como ele diz, "fazer alianças" com coletivos de plantio urbano. Fundador da União das Nações Indígenas e da Aliança dos Povos da Floresta, o ambientalista nascido no terrirório dos krenaks ( botocudos ), na região do Médio Rio Doce, em Minas Gerais, vê nesse interesse em comum pela enxada uma chance de unir o campo e a cidade. Convidado para o evento PlanteRio, na Fundição Progresso, na Lapa, Krenak deixa claro, nesta entrevista à seção "Conte algo que não sei", do GLOBO, que, para ele, plantar uma horta na cidade é um ato de micropolítica.

Conte algo que não sei.

Em diferentes lugares, tem gente lutando para este planeta ter uma chance, por meio da agroecologia, da permacultura. Essa micropolítica está se disseminando e vai ocupar o lugar da desilusão com a macropolítica. Os agentes da micropolítica são pessoas plantando horta no quintal de casa, abrindo calçadas para deixar brotar seja lá o que for. Elas acreditam que é possível remover o túmulo de concreto das metrópoles.

Qual a importância de difundir para o país essas práticas de plantio urbano?

Penso muito na música “Refazenda”, do Gilberto Gil, naqueles versos que dizem “Abacateiro acataremos teu ato/Nós também somos do mato como o pato e o leão”. O tempo passou, as pessoas se concentraram em metrópoles, e o planeta virou um paliteiro. Mas, agora, de dentro do concreto, surge essa utopia de transformar o cemitério urbano em vida. A agrofloresta e a permacultura mostram aos povos da floresta que existem pessoas nas cidades viabilizando novas alianças, sem aquela ideia de campo de um lado e cidade do outro, mas de humanidade.

Qual o papel do índio nesse processo?

Minha inserção se dá pela minha experiência de muito cedo ter sido enxotado junto com a minha família do Médio Rio Doce, após o estrangulamento causado pela agroindústria, a siderurgia... Dos botocudos, que já tinham sido dizimados com a chegada de Dom João VI ao Brasil, no século XIX, sobrou só uma reserva de 4 mil hectares e 120 famílias na margem esquerda do mesmo Rio Doce que, há dois anos, foi plasmado pela lama da mineração, como se fosse uma pá de cal sobre a última esperança de viver da terra.

Qual o efeito do rompimento da barragem da Samarco para os botocudos?

Foi um colapso. Muitas pessoas ficaram em choque tão contínuo que não conseguiram retomar seu cotidiano. E, antes que pudessem se recuperar, as corporações derramaram sobre as famílias um pacote tão abrangente de assistência que elas se tornaram reféns disso. Fico até desconfiado sobre se a estratégia não é para que os índios não consigam voltar a reconstituir suas atividades.

Mas a assistência não é necessária, uma vez que a tragédia tirou a fonte de sustento?

Essas ações emergenciais entorpecem as pessoas que deveriam ser agentes da transformação. Dependendo de quanto tempo durar, as pessoas podem ter dificuldade de retomar suas vidas e se convencer de que não precisam mais daquele lugar. Estudos mostram que não se poderá contar com o Rio Doce como fonte de recursos por 30 anos.

E o futuro dos povos locais?

Só vejo futuro numa perspectiva ampla, da nossa região no contexto global. Fomos engolfados pela economia, precisamos de alianças. É como vejo sentido na minha presença aqui. Se o povo da floresta está vendo na cidade uma chance de compartilhamento, talvez estejamos todos descobrindo que também somos do mato, como o pato e o leão.

Ainda há preconceito da metrópole com os povos da floresta?

Agentes públicos dizem que o índio impede o progresso porque não deixa desmatar. E exploram a falta de informação das pessoas. Mas a população precisa entender que a presença do índio protege a floresta melhor do que um exército de guardas florestais.