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Carta ‘perdida’ mostra que Galileu tentou amenizar texto para enganar a Inquisição

Documento estava catalogado em biblioteca britânica há pelo menos 250 anos

A primeira e a última página da carta escrita por Galileu Galilei
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The Royal Society
A primeira e a última página da carta escrita por Galileu Galilei Foto: / The Royal Society

LONDRES — Escondida há pelo menos 250 anos na biblioteca da Real Sociedade, em Londres, uma carta mostra que Galileu Galilei, no início de sua batalha contra os inquisidores da Igreja Católica, tentou suavizar sua defesa científica para não desagradar às autoridades eclesiásticas. O documento está sendo apontado como a carta original na qual o astrônomo argumenta contra a doutrina de que o Sol orbita a Terra, e reforça a tese de que Galileu tentou amenizar sua posição para não ser condenado por heresia pelo Vaticano.

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Muitas cópias da carta foram feitas e são conhecidas duas versões. Uma delas, enviada para a Inquisição em Roma e mantida nos arquivos secretos do Vaticano, tem uma linguagem dura e serviu para a sua condenação, em 1633. A outra versão é mais amena. Como o original estava perdido, não era possível saber se os clérigos haviam manipulado as palavras de Galileu para reforçar as provas da heresia — algo que Galileu se queixou a amigos — ou se o próprio astrônomo havia escrito a versão mais forte e depois amenizado sua posição.

A carta original foi redescoberta no dia 2 de agosto, por Salvatore Ricciardo, pós-doutorando da Universidade de Bérgamo, na Itália. Ele visitou a biblioteca para outro propósito e, checando o catálogo, encontrou a preciosidade da História da ciência. Junto com seu orientador, Franco Giudice, e a historiadora Michele Camerota, da Universidade de Cagliari, Ricciardo descreveu detalhes da carta e suas implicações em artigo publicado no periódico “Notes and Records”.

— Eu pensei: “Eu não acredito que descobri a carta que virtualmente todos os pesquisadores sobre Galileu acreditavam estar perdida — contou Ricciardo, à revista “Nature”. — Parecia ainda mais inacreditável porque a carta não estava numa biblioteca obscura, mas na Sociedade Real.


Retrato de Galileu Galilei feito por Justus Sustermans
Foto: Wikipedia
Retrato de Galileu Galilei feito por Justus Sustermans Foto: Wikipedia

Escrita em 21 de dezembro de 1613 ao amigo Benedetto Castelli, então um matemático na Universidade de Pisa, a carta argumenta que as escassas referências bíblicas aos eventos astronômicos não devem ser entendidas na forma literal, pois os escribas teriam simplificado as descrições para que pudessem ser compreendidas por pessoas comuns. Segundo Galileu, as autoridades eclesiásticas que defendem o contrário, escreveu, não têm competência para julgar.

No ponto mais importante, o astrônomo argumenta que o modelo heliocêntrico proposto por Nicolau Copérnico em 1543, com a Terra orbitando o Sol, não é incompatível com a Bíblia. Ao longo da vida, Galileu escreveu milhares de cartas, muitas delas consideradas tratados científicos. Das mais importantes, muitas cópias foram feitas por leitores para aumentar a circulação. A carta escrita a Castelli provocou um escândalo.

Das duas versões até então conhecidas, uma foi enviada à Inquisição no dia 7 de fevereiro de 1615, pelo frade dominicano Niccolò Lorini. Os historiadores sabem que Castelli devolveu a carta a Galileu e que, no dia 16 de fevereiro de 1615, o astrônomo escreveu ao amigo Piero Dini, então um clérigo em Roma, sugerindo que a versão apresentada por Lorini ao Vaticano teria sido manipulada. Em anexo, estava uma versão com linguagem mais amena, que Galileu dizia ser a correta, e o pedido para que fosse entregue por Dini aos inquisidores.

Na carta a Dini, Galileu reclama da “maldade e da ignorância” de seus inimigos, e revela preocupação de que a Inquisição “possa ser enganada por essa fraude que circula sob o manto do zelo e da caridade”. A existência dessas duas versões, a apresentada por Lorini ao Vaticano e a recebida por Dini, gerou uma dúvida sem solução para os pesquisadores do tema.

A carta original, descoberta por Ricciardo, revela o texto original de Galileu, que é o mesmo da cópia apresentada por Lorini. E o documento traz rasuras e emendas, todas com a escrita de Galileu, provavelmente feitas após a devolução de Castelli. As alterações tentavam amenizar o texto. Numa passagem, por exemplo, galileu se referia a certas proposições da Bíblia como “falsas se alguém seguir o sentido literal das palavras”. A palavra “falsas” estava cortada e substituída por “diferentes da verdade”.

Para Giudice, o documento sugere que Galileu escreveu a versão enviada por Lorini ao Vaticano, que serviu de base para sua condenação, e depois, ele mesmo moderou suas palavras, criando uma nova versão que foi enviada a Dini.

— A carta de Galileu a Castelli é um dos primeiros manifestos seculares sobre a liberdade da ciência — avaliou Giudice, ainda estupefato com a descoberta. — É a primeira vez na minha vida que estou envolvido numa descoberta tão emocionante.

A descoberta aconteceu ao acaso. Ricciardo estava fazendo pesquisas em bibliotecas britânicas para analisar comentários escritos por leitores em documentos de Galileu. Um dia, após pesquisar na biblioteca da Real Sociedade, ele buscou no acervo por peças relacionadas a Castelli. Então, encontrou a carta escrita por Galileu catalogada, com a assinatura “G. G.”, de Galileu Galilei. Imediatamente, pediu permissão para fotografar as sete páginas.

A carta foi incluída no catálogo em 1840, mas com um erro na data. Em vez de 1613, o ano indicado era de 1618. Talvez esse seja um dos motivos para o documento ter passado tanto tempo escondido dos olhares dos pesquisadores. Além disso, disse Giudice, é na Biblioteca Britânica que esse tipo de material histórico fica armazenado, não na Real Sociedade.

O modelo heliocêntrico do sistema solar foi apresentado pela primeira vez em 1543, pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico, no livro “Sobre as revoluções das esferas celestes”. Em 1600, o frade dominicano e matemático Giordano Bruno foi condenado à morte na fogueira pela Inquisição por defender o modelo de Copérnico. Dez anos depois, Galileu publicou o livro “Mensageiro Sideral”, onde descreve as primeiras observações realizadas com um telescópio.

Em 1616, o livro escrito por Copérnico foi retirado de circulação e obras que apoiavam o modelo, incluindo os estudos de Galileu, foram banidos. Em 1632, Galileu publicou o livro “Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo”, que compara o tradicional modelo Ptolomaico, ou geocêntrico, com o modelo de Copérnico. No ano seguinte, o livro foi banido e Galileu foi condenado por “suspeita de heresia”, com sentença de prisão, posteriormente substituída pela prisão domiciliar, onde passou os nove últimos anos de vida.