Rio

Pesquisa revela hábitos de consumo de moradores de oito favelas do Rio, que precisam lidar com dificuldades

Eles só querem ser felizes, pedir delivery, andar de Uber e viajar
Espelho, espelho meu. Gabriella Mesquita prepara a modelo Nathália Felix: clientes economizam para gastar nos muitos salões de beleza da Rocinha Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
Espelho, espelho meu. Gabriella Mesquita prepara a modelo Nathália Felix: clientes economizam para gastar nos muitos salões de beleza da Rocinha Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

RIO — Pedir um carro por aplicativo após um chope com os amigos, receber uma pizza em casa ou comprar roupa pela internet são coisas fáceis de fazer, mas, para quem vive em favelas do Rio, nada é tão simples. Uma pesquisa inédita que levantou hábitos em oito comunidades cariocas mostra, por trás dos números, as barreiras que precisam ser vencidas diariamente por quem vive nessas áreas. Resistência de empresas em subir morros e ação de milicianos e traficantes fazem com que parte da população da cidade fique alguns passos atrás quando o assunto é consumo digital.

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A pesquisa, do recém-criado Instituto DataANF, da Agência de Notícias das Favelas, fundada há 18 anos pelo jornalista André Fernandes, revela dificuldades, mas também sonhos: ao serem questionados de forma livre sobre o que mais desejam consumir, 21,8% responderam viajar. Vontade que fica à frente da casa própria (15,5%), do carro ou da moto (12,9%) e do plano de saúde (12,1%). Outro ponto que se destaca é a preocupação com a estética: a quantidade de produtos e serviços de beleza comprados supera a de alimentos.

— A gente encontrou um morador de favela ávido por consumo digital, disposto a aderir de forma intensa aos aplicativos, mas ainda receoso por causa da resistência de empresas e profissionais para entregar produtos em favelas — afirma a socióloga Carmen Valdez, que coordenou a pesquisa.

Resta aos moradores driblarem os obstáculos. Pesquisadores entrevistaram, entre 2 e 10 de setembro, 409 pessoas na Cidade de Deus, Mangueira, Manguinhos, Dona Marta, Rocinha, Salgueiro, São Carlos e Vila Kennedy. E ouviram muitas histórias. Uma delas é de um grupo, na comunidade do Estácio, que se uniu para fazer pedidos de comida via aplicativos e se revezar para buscá-los no pé do morro. Só que traficantes passaram a cobrar pedágio.

— Há tentativas de fazer frente ao que o mercado não viabiliza, mas, muitas vezes, essa organização precisa se submeter aos mandos e desmandos do poder paralelo — diz Carmen.

Um app para chamar de seu

Embora a pesquisa aponte a adesão de 46,6% a serviços de transporte como o Uber, isso só é possível porque muitos clientes suam para quebrar a resistência de motoristas. Guia de turismo na Providência, no Centro, Cosme Felippsen, de 30 anos, agora usa um app (o Porto Driver) criado para atender os morros da região.

— É uma iniciativa que partiu de moradores devido à grande demanda de gente querendo usar Uber, 99... Nesses aplicativos, só insistindo muito. Quando estou na Lapa com amigos, peço Uber com o coração na mão — diz Cosme. — Na favela, mesmo tendo dinheiro, não conseguimos acesso a serviços básicos.

Guia de turismo na Providência, no Centro, Cosme Felippsen, de 30 anos, agora usa um app (o Porto Driver) criado para atender os morros da região Foto: Brenno Carvalho / Agência O GLOBO
Guia de turismo na Providência, no Centro, Cosme Felippsen, de 30 anos, agora usa um app (o Porto Driver) criado para atender os morros da região Foto: Brenno Carvalho / Agência O GLOBO

O estudante de jornalismo Tarcísio Lima Salazar, de 24 anos, vive na favela CHP-2, em Manguinhos, e sabe bem o que é isso.

— Aqui não chega nada, nem conta, que vai para a associação de moradores — comenta Tarcísio, que gosta de comprar pela internet roupas e bonés de uma marca do mundo do rap em São Paulo, mas sempre precisa buscar as peças (após rastreio) em algum centro de distribuição dos Correios.

Tarcisio Lima, morador de Manguinhos, precisa pegar um ônibus para buscar suas encomendas nos Correios na Penha. Na favela, não são feitas entregas Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo
Tarcisio Lima, morador de Manguinhos, precisa pegar um ônibus para buscar suas encomendas nos Correios na Penha. Na favela, não são feitas entregas Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

A pesquisa, que tem confiabilidade de 95% e margem de erro de 3%, levantou que 57,1 % dos entrevistados só compram em lojas físicas. No entanto, 65,6% já compraram algo na internet. Se falta um olhar mais cuidadoso por parte das empresas, sobra vontade de abrir a carteira, especialmente quando se trata do mundo da beleza.

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A maquiadora Gabriella Mesquita, de 26 anos, que o diga. Em 2018, ela começou a receber clientes em casa, na Rocinha. O negócio deu tão certo que ela encomendou um projeto de design para seu estúdio. Crise? Não bateu à sua porta, apesar da forte concorrência. Gabriela calcula que há cerca de 30 salões só na parte baixa da Via Ápia, polo comercial da comunidade:

— Às vezes, as mulheres economizam numa roupa ou numa compra de mercado para investir nelas próprias.

Do Dona Marta, Salete Martins (dir.), que atua com turismo receptivo na favela, junta dinheiro para conhecer os Lençóis Maranhenses e, mais adiante, a França, seu sonho Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo
Do Dona Marta, Salete Martins (dir.), que atua com turismo receptivo na favela, junta dinheiro para conhecer os Lençóis Maranhenses e, mais adiante, a França, seu sonho Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

Moradores também não veem problema em poupar para pegar um avião. Do Dona Marta, Salete Martins, que atua com turismo receptivo na favela, junta dinheiro para conhecer os Lençóis Maranhenses e, mais adiante, a França, seu sonho.

— Quero fazer foto lá com a Torre Eiffel... Estou estudando francês — conta ela, que passou a expandir seus horizontes há dez anos. — Faço tudo aqui na agência do morro (a Vai Voando). Compro no boleto, e, quando chega a viagem, já paguei.