Desafio Natureza

Por Elida Oliveira, G1


Arara-azul-de-lear é foco de ações de preservação. — Foto: Marcelo Brandt/G1

O grito da arara ecoa pelo sertão da Bahia nas primeiras horas do dia. O chamado vem de uma das 1.700 araras-azuis-de-lear que vivem na região do Raso da Catarina, na caatinga, o bioma mais biodiverso do planeta. Elas só existem nesta parte do mundo. Monogâmicas, voam em duplas ou em trio, quando o filhote ainda não se desprendeu dos pais. No amanhecer, elas saem em busca do licuri, um coquinho que cresce aos cachos em palmeiras da região. Chegam a percorrer até 60 km ao dia atrás de alimento. Ao entardecer, retornam à morada.

A aparente normalidade da cena esconde um problema: a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) está em perigo de extinção. Outros 182 animais da caatinga também estão ameaçados, como a onça-pintada e a parda, que quase desapareceram do semiárido nos últimos anos.

No caso das araras, os esforços para recuperar a população passam pela manutenção dos espaços nos quais elas vivem, pela educação ambiental e pela luta contra o tráfico de animais.

Para conhecer estas ações, o G1 percorreu 1,6 mil quilômetros no sertão da Bahia e visitou as regiões do Raso da Catarina e do Boqueirão da Onça como parte do especial "Desafio Natureza". Antes, a série de reportagens tratou do lixo em Noronha. (Veja bastidores da série, 10 fatos e soluções para um problema que vai além da ilha.)

Retorno de arara quase extinta na caatinga mostra os desafios da conservação de espécies

Retorno de arara quase extinta na caatinga mostra os desafios da conservação de espécies

Da ‘redescoberta’ à preservação

A arara-azul-de-lear é o único psitacídeo (família de aves que inclui os periquitos, araras e papagaios) alvo da Aliança Brasileira para Extinção Zero (Baze). Ela também está na lista vermelha da BirdLife International, uma das principais referências em preservação de aves.

A outra arara foco de preservação é a ararinha-azul, da espécie Cyanopsitta spixii, criticamente ameaçada e já extinta na natureza. Foi esta espécie que inspirou o personagem Blu do filme Rio, lançado em 2011 com direção do brasileiro Carlos Saldanha. Em todo o mundo, estima-se que existam apenas 160 destas aves, todas em cativeiro (confira as diferenças e semelhanças entre as espécies no quadro ao fim da matéria).

Para que a arara-azul-de-lear não tenha o mesmo destino da ararinha-azul, diversos projetos estão sendo desenvolvidos para estimular o crescimento da população, que vive e se alimenta na região de Canudos, Serra Branca, Euclides da Cunha, Jeremoabo, Santa Brígida e Baixa do Chico (veja quadro abaixo). Eles são focados em preservação da área e do licuri, principal alimento desta ave.

No Boqueirão da Onça, a quase 400 km dali (ou 250 km, em linha reta), uma iniciativa inédita na região busca repovoar a área onde antes havia cerca de 30 araras-de-lear, mas agora tem apenas duas. Especula-se que as demais tenham sido levadas por traficantes nos anos 1990. Um projeto monitora a soltura de seis novos indivíduos naquele espaço para incentivar a reprodução da espécie.

Locais de ocorrência da arara-de-lear na caatinga — Foto: Igor Estrella/G1

Uma das ações de preservação do espaço das araras está em Canudos, a cidade conhecida pela guerra que terminou em 1897 com 25 mil mortos. A poucos quilômetros do centro da cidade fica a Toca Velha, um vale formado por paredões de arenito que ganhou este nome porque é onde as araras fazem suas tocas, dentro de buracos.

Mantido pela Fundação Biodiversitas, o espaço tem entrada controlada de visitantes, o que garante tranquilidade para a reprodução da espécie e inibe a ação de traficantes de aves, diz Tania Maria Alves da Silva, bióloga e gerente da Estação Biológica de Canudos.

Foi lá que uma expedição coordenada pelo ornitólogo alemão Helmut Sick "redescobriu" a arara-azul-de-lear na virada de 1978 para 1979.

Até então, sua existência só era conhecida por meio de uma ilustração de 1832 feita pelo artista inglês Edward Lear (daí o nome da arara) e pela descrição de 1856 feita por Charles Lucien Bonaparte (sobrinho de Napoleão Bonaparte) a partir de exemplares taxidermizados do Museu de Paris e do Zoológico da Bélgica. Como ninguém sabia a procedência da arara, pensava-se que ela estava extinta.

Toca Velha, dormitório das araras-de-lear, em Canudos — Foto: Marcelo Brandt/G1

Helmut Sick, naturalizado brasileiro, soube de relatos de que poderia haver este tipo de arara no sertão baiano e foi atrás do bicho.

“Em 5 de janeiro chegamos à 'Toca Velha', num dos desfiladeiros (ou 'talhados', no linguajar regional) usado como dormitórios e criadouros pelas araras. Atravessando o rio Vaza-Barris penetramos em outro desfiladeiro (no limite sul do Raso da Catarina) atingindo a 'Serra Branca' onde, em 16 de janeiro, coletamos um exemplar de A. leari (o primeiro obtido em natureza por um ornitólogo), assegurando assim a necessária prova da descoberta" - Helmut Sick, em artigo publicado na "Revista Brasileira de Zoologia da USP", em 1987.

Casal de arara-de-lear sobrevoa a área da Toca Velha, em Canudos. Local é mantido pela Fundação Biodiversitas. — Foto: Marcelo Brandt/G1

O que a história oficial não conta é que quem ajudou Sick a localizar as araras foi Eliseu Alves, pai de Eurivaldo Macedo Alves, guarda-parques da Fundação Biodiversitas, instituição que atualmente mantém a Toca Velha.

“Meu pai foi garimpeiro, então conhecia muito as araras que tinha [na região]. Ele disse [para Helmut Sick]: ‘Arara tem. Você dorme aqui e amanhã cedinho elas aparecem’. Quando foi de manhã, já apareceram seis. Aí foi onde gerou todo o começo de conservação”, conta.

“Quando iniciou-se o trabalho, eram contadas 60 araras. Hoje a gente já consegue contar 1.700. [Antes] Vinham muitos apanhadores de araras a mando dos traficantes. Bastou que a gente controlasse a entrada humana e, automaticamente, o número de araras aumentou”, diz Tania Maria Alves da Silva, bióloga e gerente da Estação Biológica de Canudos, onde fica a Toca Velha.

Cânion seco da Baixa do Chico, local que tem atraído araras-de-lear desde 2014. — Foto: Marcelo Brandt / G1

Expansão para novas áreas

Com o crescimento da população, as araras-de-lear estão se espalhando para outras áreas. Uma delas é o cânion seco da Baixa do Chico, que fica dentro da reserva indígena da tribo dos Pankarares. O cânion também é formado por paredões de arenito.

O local chegou a ser cenário da minissérie Amores Roubados, de 2014. É lá que o personagem de Cauã Reymond (Leandro Dantas) foge de uma emboscada armada pelo personagem de Murilo Benício (Jaime Favais) com um tiro na barriga. (Veja a cena)

De acordo com a bióloga Erica Pacífico, coordenadora geral do grupo de pesquisa e conservação da arara-azul-de-lear, a presença destas aves nesta região era constante até 1980. Depois, não apareceram mais. “[Sumiram] porque foram perseguidas, caçadas, capturadas e perturbadas nos dormitórios”, explica.

Araras-de-lear no cânion seco da Baixa do Chico. Local já foi habitado pelas araras, que sumiram na década de 1980; em 2014, elas começaram a voltar ao local. — Foto: Marcelo Brandt/G1

Segundo o biólogo Thiago Filadelfo, a área era palco de competições de motocross. "Nossa equipe colocou placas manuais pedindo que não houvesse trânsito nos horários mais sensíveis para as araras e conversamos com a comunidade indígena explicando para que eles agissem como protetores", afirma.

"A recepção foi boa. Ouviram e disseram: 'Agora quem toma conta somos nós'", disse.

Com o fim das competições, cessaram os barulhos, e as araras começaram a voltar para a Baixa do Chico em 2014.

“Primeiro, foi um casal, depois dois, agora já tem na base de umas 100 araras já. Aqui, ninguém mexe muito com elas. A partir das 16h, essa parte [acesso ao cânion] é isolada e, graças a Deus, está dando certo”, diz o cacique Milton Santos Nascimento. “Acho que voltaram pra cá porque se agradaram do lugar, está bem cuidado”, avalia.

“É importante preservar para que não desapareçam porque, no futuro, meus netos e tataranetos vão ver estes animais”, diz Milton.

— Foto: Roberta Jaworski / G1

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!