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'Não há saídas pacíficas para crise na Venezuela', diz sociólogo que inspirou Chávez

Heinz Dieterichvê só vê três soluções: intervenção, golpe militar ou insurreição das massas
Para sociólogo alemão, modelo econômico dependente do petróleo, criado por Hugo Chávez, se esgotou há anos, mas Nicolás Maduro não foi capaz de reconhecer o problema
Foto: FEDERICO PARRA / AFP
Para sociólogo alemão, modelo econômico dependente do petróleo, criado por Hugo Chávez, se esgotou há anos, mas Nicolás Maduro não foi capaz de reconhecer o problema Foto: FEDERICO PARRA / AFP

BERLIM – "A crise da Venezuela atingiu um nível tão dramático que não há mais saídas pacíficas para a situação, o desfecho poderá ser trágico e sangrento." A afirmação é de Heinz Dieterich , sociólogo de esquerda que cunhou o termo “ Socialismo do século XXI ”, título de seu mais célebre livro e inspiração para Hugo Chávez (1954-2013), que governou a Venezuela por 14 anos, e também para o presidente boliviano Evo Morales .

Agora, o professor alemão radicado no México, onde é professor da Universidade Autônoma Metropolitana da Cidade do México, acusa Nicolás Maduro de ter arruinado a Venezuela e a obra de Chávez. “Hoje só há três futuros para a Venezuela, todos não desejáveis: uma intervenção de fora (dos Estados Unidos), um golpe militar ou uma insurreição das massas”, afirma.

O sociólogo, no entanto, também faz críticas a Chávez, de quem foi amigo: "Já em 2009, o modelo (econômico) chavista estava estruturalmente esgotado. Havia excesso de dependência do petróleo e a necessidade de uma reforma qualitativa. O dinheiro arrecadado deveria ter sido usado na modernização da indústria. Mas Maduro não fez isso. Quando o preço do petróleo caiu, a economia desabou".

Aos 75 anos, autor de mais de 30 livros, Dieterich interrompeu o seu trabalho de organização de um congresso internacional sobre os “paradigmas do século XXI”, que será realizado na Rússia, em pouco mais de quatro semanas, para falar ao GLOBO. Além da crise venezuelana, ele analisou outros governos de esquerda da América Latina e disse que o ex-presidente Lula pode ser definido como um social-democrata.

As tentativas desesperadas do presidente Nicolás Maduro para resolver a crise econômica da Venezuela terão efeito?

Não. A retirada dos zeros da moeda não vai trazer solução. A Venezuela é um Estado em falência. Todo o sistema de produção monetário e fiscal não está mais funcionando. Fontes financeiras externas estão bloqueadas. O produtor central de divisas, a PDVSA (a estatal Petróleos de Venezuela), está estruturalmente destruído, e seus ativos nos Estados Unidos e no Caribe foram praticamente confiscados pelas empresas americanas e canadenses. Só 20% dos venezuelanos ainda apoiam Maduro. A Venezuela está à beira do abismo. Maduro arruinou a Venezuela e a obra de Chávez.

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Na sua opinião, quais seriam as saídas para a crise venezuelana?

A crise da Venezuela atingiu um nível tão dramático que não há mais saídas pacíficas para a situação. O desfecho poderá ser trágico e sangrento. Hoje só há três futuros para a Venezuela, todos não desejáveis: uma intervenção de fora, um golpe militar ou uma insurreição das massas.  O regime de Maduro vai terminar de qualquer forma. Na minha opinião, os cenários mais prováveis são o golpe militar ou a insurreição das massas, o que terminaria em uma guerra civil. A possibilidade de uma transição pacífica é remota.

A intervenção de fora seria dos Estados Unidos?

Já no ano passado, o presidente Trump elaborou um plano para invadir a Venezuela. Mas isso não é surpresa. Sabemos que o Pentágono sempre tem um plano militar pronto para invadir qualquer país do mundo a qualquer momento. Uma intervenção militar contra o governo de Maduro seria fácil para os Estados Unidos. A distância não é grande e não é de se esperar resistência da Unasul, que quase deixou de funcionar. Mas acho que em um aspecto Maduro é parecido com Trump, pois os dois estão em uma guerra que não podem ganhar.

O sociólogo alemão Heinz Dieterich, teórico político e professor da Universidade Autônoma Metropolitana do México Foto: Divulgação
O sociólogo alemão Heinz Dieterich, teórico político e professor da Universidade Autônoma Metropolitana do México Foto: Divulgação

A crise venezuelana foi causada por alguma influência externa ou por erros da própria política econômica?

Essa crise foi 100% produzida endogenamente. Já em 2009, o modelo de Chávez estava estruturalmente esgotado. Havia excesso de dependência do petróleo. Havia necessidade de uma reforma qualitativa. O dinheiro arrecadado deveria ter sido usado na modernização da indústria.  Mas Maduro, o sucessor de Chávez, não fez isso. Quando o preço do petróleo caiu, a economia desabou.  O colapso hoje é uma consequência lógica. Chávez teria reconhecido o problema a tempo de fazer correções. Ele era extremamente inteligente e capaz de entender as coisas rapidamente. Já Maduro é dogmático e incapaz de reconhecer quando algo está errado. Ele identificou-se apenas com o cargo  e sofre também de megalomania.

Qual foi o principal erro de Maduro?

Ele não entendeu a necessidade de negociar uma solução porque é incapaz , errou ao inventar a Assembleia Constituinte e também ao formar um gabinete com políticos que são apenas oportunistas.

Por que a oposição não procura assumir um papel de liderança, oferecendo propostas de solução para a crise?

A oposição está inteiramente fragmentada e tão perdida que não consegue assumir esse papel. Embora forme oficialmente uma “unidade democrática” (a chamada Mesa de Unidade Democrática), a oposição está desunida e é incapaz de uma contribuição positiva para resolver a crise.

Há o risco de a crise na Venezuela contaminar os países vizinhos?

A crise na Venezuela já é geopolítica. Ela envolve a política de todo o hemisfério (OEA, Unasul etc.) e a logística dos paises limítrofes, que têm uma capacidade limitada de receber e de  integrar os venezuelanos. É  também ideológica porque a ideia bolivariana da Pátria Grande deixa de ter boas perspectivas futuras. Liquida factualmente a ideia do socialismo de Chávez em todo o continente e destrói as estruturas de integração latino-americanas. A direita brasileira vai usar essa catástrofe como tema de propaganda eleitoral.

Como conselheiro de outro “revolucionário bolivariano”, ou seja, Evo Morales, não vê como complicada a sua candidatura à reeleição?

Não. Evo foi o responsável pela experiência de esquerda mais bem-sucedida na América Latina. A receita é pragmatismo, apoio nas bases (indígenas), uma boa política de desenvolvimento nacional com parâmetros macroeconômicos realistas. Um Estado de direito moderno com combate à corrupção e um compromisso de poder com as elites que seja aceitável. Em comparação com outros paises da região, a situação da Bolívia é boa.

O senhor descreveria o ex-presidente Lula como de esquerda no sentido do seu livro “O socialismo do século XXI?

Os presidentes de centro-esquerda da América Latina são o que chamamos na Europa de social-democratas progressistas. Ou nos Estados Unidos, de políticos do New Deal rooseveltiano. O seu modelo é o Estado de bem-estar social da Escandinávia, principalmente da Noruega. Essa caracterização vale para Correa, Chávez, Lula, Kirchner, Morales, Ortega etc. Maduro pertencia a esse grupo mas se tornou um ditador capitalista estatal inteiramente incapaz. Correa e Chávez podem ser descritos como cristãos praticantes no sentido da Teologia da Libertação. O único presidente realmente de esquerda foi Fidel Castro. Cuba é o único país socialista, mas com socialismo do século XX. Não foi um regime socialista posto em prática no século XXI.

Capa do livro "O socialismo no século XXI", de Heinz Dieterich, sociólogo conhecido como o "novo Karl Marx" Foto: Reprodução
Capa do livro "O socialismo no século XXI", de Heinz Dieterich, sociólogo conhecido como o "novo Karl Marx" Foto: Reprodução

Como vê a tentativa de Lula de se candidatar da prisão onde está atualmente?

A situação do Brasil e o possível papel de Lula é comparável com a situação brasileira de 2002 ou a mexicana de 2018. Em 2002, Lula garantiu uma transição pacífica através de projetos nacionais do centro com inclusão dos pobres. Como Obrador no México neste ano. A situação do Brasil em 2018 é semelhante. Todos os outros candidatos piorariam a crise atual. Em crises nacionais, são necessários políticos com capacidade de liderança, não de administradores, como em épocas normais. Assim Lula representa os interesses nacionais na situação atual. Eu concordo com o Comitê de Direitos Humanos da ONU de que o governo brasileiro feriu os direitos políticos de Lula e o seu isolamento ilegal é um abuso político da Justiça para evitar a sua vitória.

Não ficou decepcionado ao tomar conhecimento dos escândalos de corrupção envolvendo o PT, o partido de Lula?

Não fiquei decepcionado porque estou convicto de que ele é inocente. Decepcionado eu fiquei foi com o papa, que não tomou providências contra os pedófilos na Pensilvânia, mas não com o Lula.

Na sua opinião, Daniel Ortega , da Nicarágua, tem chance de ficar no poder, como quer, até 2022 apesar da recessão da economia e dos protestos?

O conflito da Nicarágua é resultado de dois fatores: as "revoluções coloridas" promovidas por Washington, encabeçadas pela máfia anticubana em Miami, e a autocracia de Ortega. Quem manda na verdade é a sua mulher, Rosario Murillo.  Se Ortega não aceitar a transição pactuada, a Nicarágua seguirá o caminho da Venezuela , com a economia destruída e a possibilidade de um golpe militar interno. Em outras palavras, com a abordagem atual, Ortega não vai conseguir ficar no poder até 2022.

O ex-presidente do Equador, Rafael Correa, criticou bastante o seu sucessor Lenín Moreno, que teria introduzido uma nova política que é o contrário da sua. O senhor vê diferenças reais entre as políticas dos dois?

Correa utilizou um modelo de desenvolvimento rooseveltiano, que tem como meta um sucesso extraordinário da economia, bem como da politica educacional sobretudo no setor científico. A cooperação de desenvolvimento com a China tornou possível o financiamento, em combinação com a política econômica e de combate à corrupção.Lenin Moreno significa o retorno ao neoliberalismo. Através da operação “cavalo de Tróia”, as elites antigas tiraram os reformistas e modernizadores do poder. A arrogância de Correa e seu extremo narcisismo impediram que ele reconhecesse isso. O Equador precisa agora pagar o preço.

O senhor é conhecido como um intelectual de esquerda, por vezes chamado de “novo Karl Marx”. Até que ponto seus professores da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer,  o influenciaram nessa direção?

Adorno e Horkheimer são o ponto de partida da minha identidade ético-política. No contexto do movimento estudantil (dos anos 1960), do qual eu participei ativamente, ao lado de pessoas como Joschka Fischer ou Daniel Cohn-Bendit,  houve porém um ruptura. Quando o movimento se radicalizou, a teoria transformou-se em prática, em essência devido à brutalidade inaceitável e infrações contra os direitos humanos nos Estados Unidos e no Vietnã. Como durante a ditadura nazista Adorno e Horkheimer haviam encontrado asilo nos Estados Unidos, depois de fugir da morte na Alemanha, não estavam em condições psicológicas de condenar a guerra de agressão americana. Aí eu rompi com os dois. A minha evolução de como encaro o mundo passou a ser influenciada por Marx, Darwin e Arno Peters, para a teoria de sistema e para o socialismo do século XXI.

O senhor está a caminho da Rússia para organizar  um congresso internacional com o título“Paradigma científico do século XXI” e vai falar sobre que países vão dominar o século atual. A era dos Estados Unidos vai acabar?

A era dos Estados Unidos como potência dominante acabou definitivamente. A Rússia é hoje a potência militar estratégica mais forte do mundo. Tem tecnologia militar com a qual os americanos nem sonham. A China é a potência econômica mais importante e mais inovadora do mundo. A guerra comercial de Trump é a tentativa quixotesca de impedir a supremacia da China como potência digital e industrial mais forte do mundo. Diante da agressão dos Estados Unidos contra os dois países, Rússia e China fecharam uma aliança estratégica que, para o Ocidente, é invencível. Em 25 anos, a Índia vai fazer parte desse grupo. A União Europeia só vai conseguir se abandonar o status de vassalo dos Estados Unidos. Nossas pesquisas no Centro de Ciências de Transição (CTS) indicam que só uma guerra nuclear mudaria essas previsões.

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Videográfico: A crise na Venezuela