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Política

'A milícia é criação do próprio estado', afirma ex-secretário nacional de Justiça e Cidadania

Astério Pereira dos Santos alerta para ação de novos grupos criminosos dentro e fora das cadeias
Especial Violência encarcerada - Astério Pereira dos Santos - ex-secretário de Administração Penitenciária do Rio Foto: Agência O Globo
Especial Violência encarcerada - Astério Pereira dos Santos - ex-secretário de Administração Penitenciária do Rio Foto: Agência O Globo

RIO DE JANEIRO —  Ex-secretário nacional de Justiça e Cidadania, Astério Pereira dos Santos defende a criação de um serviço de classificação de presos, como forma de quebrar o paradigma da separação por facção criminosa, que existe hoje em razão da superlotação. Para ele, as milícias são hoje mais uma facção criminosa a ocupar unidades prisionais, que cresce a reboque de uma política de  segurança pública.

No segundo episódio da série Violência Encarcerada, a reportagem viaja a Manaus, Altamira e João Pessoa para entender como as facções criminosas exercem seu poder dentro das cadeias e influenciam a violência fora delas. O episódio também mostra, em Ilha Grande, como a primeira facção se originou a partir do encontro de presos políticos com presos comuns.A série VIOLÊNCIA ENCARCERADA tem seis episódios, todos com narração do ator Cauã Reymond.
No segundo episódio da série Violência Encarcerada, a reportagem viaja a Manaus, Altamira e João Pessoa para entender como as facções criminosas exercem seu poder dentro das cadeias e influenciam a violência fora delas. O episódio também mostra, em Ilha Grande, como a primeira facção se originou a partir do encontro de presos políticos com presos comuns.A série VIOLÊNCIA ENCARCERADA tem seis episódios, todos com narração do ator Cauã Reymond.

Por que o senhor defende que a milícia é uma invenção do estado?

A milícia é criação do próprio estado, porque começa com o recrutamento de policiais militares excluídos, posteriormente dos maus policiais. E ganhou um incremento muito grande com a criação das UPPs.

Especial: Violência encarcerada

Por quê?

As UPPs foram criadas sem que se apreendessem armas ou prendessem lideranças. Essas lideranças foram para os locais mais próximos, como Niterói, São João de Meriti, para a Região dos Lagos, tomando comunidades do interior. Bandidos da capital têm supremacia sobre o interior e eles começaram a desrespeitar estas comunidades. Isto foi um incremento para as milícias. Ao mesmo tempo, o governo formou milhares de policiais, sem seleção ou treinamento adequados. Quem já foi policial sabe que a formação requer tempo, não é da noite para o dia.  Uma parcela desses policiais já tem perfil para miliciano, vai ser excluída e, como o estado não tem forma de ressocializar, este excluído vai ser um miliciano ou vai trabalhar para o tráfico. Então o estado está fornecendo a mão de obra para bandidos.

O senhor foi o primeiro secretário de Administração Penitenciária do país, no Rio de Janeiro, e foi na sua gestão que aconteceu a rebelião de Benfica, em 2004, a última grande do estado? O que houve?

Havia ali um problema sério que era a impropriedade daquele local para a implantação de uma unidade prisional. Ao lado de Benfica tem uma favela, eu já havia feito relatório elaborado pela Seap alertando que o local era inadequado para o risco de uma invasão. Mas como havia uma carência muito grande de vagas, o governo não fez nada. Foi a primeira vez que uma rebelião começou do lado de fora. Bandidos atacaram o sentinela e tomaram a portaria para liberar a facção que atacou e matou 30 presos. A partir dali muita coisa foi mudada.

O que mudou?

Nós vimos a necessidade de criar um grupo de intervenção tática, o GIT, com uma atuação especializada. Começamos a utilizar armamento não letal, bala de borracha, gás lacrimogêneo, fumígenos. Aperfeiçoamos o setor de Operações Especiais do sistema prisional. Cerca de 17 estados da federação copiaram depois o modelo do Rio. A primeira tropa do Exército que foi para o Haiti foi formada, em relação a reação não letal, em Bangu, pelo GIT. E hoje a ausência praticamente de rebeliões se deve a este grupo

“No estado do Rio, há bem pouco tempo, quem mandava eram as facções, mas hoje eu vejo uma retomada, a administração tomando conta”

Astério Pereira dos Santos
Ex-secretário Nacional de Justiça e Cidadania

Como o senhor analisa hoje a situação do sistema?

O problema maior em todo o país é a superlotação. E não se resolve colocando camas. Aliás, já naquela  época o estado tentava resolver a situção colocando mais camas. Naquela época este já era o projeto para resolver o problema de vagas. Era o projeto "mais camas, mais vagas". Foi assim que  chegamos à situação por que passa o Rio hoje, com mais de 52 mil presos. E 19.500 são presos provisórios, isto é muito grave. Eles deveriam ter um tratamento diferenciado. Nós não podemos fazer um enfrentamento de facções colocando presos provisórios, junto com presos definitivos. O estado deveria construir cadeias concentradoras em regiões do estado para que a polícia cuidasse dos presos provisórios, que são importantes inclusive na apuração de inquéritos. Mas ninguém quer preso, na verdade todo mundo quer que o preso fique por conta do sistema prisional. Enchem então os presídios e não se pode fazer um tratamento de ressocialização adequado. O governo atual vem trabalhando para separar os presos provisórios. E acredito que a situação vai melhorar muito.

O que se pode fazer para quebrar a lógica da divisão de presos por facções criminosas sem por em risco a segurança dos próprios presos?

Para isto deveríamos voltar a um serviço que existia nos anos 70. O Rio de Janeiro tinha o Instituto de Classificação e Tratamento, onde você tinha psicólogos, médicos psiquiatras, assistentes sociais para fazer a classificação do preso pela personalidade dele e pelo delito praticado. Ele ficava em média de dez a 15 dias passando por este estudo e depois saía com uma ficha criminal  que o acompanharia ao longo da execução da pena. Então precisamos recriar este serviço, porque isto é que vai orientar depois a Vara de Execuções Penais para afirmar se ele tem ou não direito à progressão de regime, se ele tem condições de voltar ao convívio social. Hoje como é feito isto? É um atestado do diretor? O diretor conhece dois mil presos que estão lá ? A recriação do instituto pode resolver isto. É a única forma de enfrentamento de facção.

No país, em muitos presídios quem manda são as facções criminosas. No Rio quem manda?

No estado do Rio, há bem pouco tempo, quem mandava eram as facções, mas hoje eu vejo uma retomada, a administração tomando conta. Vejo uma administração mais rígida, vejo um juiz de Execução mais atuante, mais comprometido. E inclusive algumas câmaras criminais estão voltadas e este trabalho junto com a Vara de Execuções Penais. Há uma integração maior entre estes órgãos. Eu vejo o Ministério Público mais próximo da Administração Penitenciária. As coisas no Rio de Janeiro estão melhorando sensivelmente. Mas o fato é que o incremento da inteligência ajuda sobretudo a acabar com a liderança das facções. E quando eu falo da inteligência não estou falando só da Seap, mas da Polícia Civil, que devem funcionar juntas para desarticular as facções dentro dos presídios.