SÃO PAULO — O aumento do peso global das doenças crônicas faz com que a interação desses males com a Covid-19 gere uma “tempestade perfeita”. Essas foram as palavras com que os autores do maior levantamento epidemiológico do mundo divulgaram a última edição do estudo, na revista médica The Lancet.
O projeto Global Burden of Disease (GBD, ou Carga Global de Doenças) vem mapeando o perfil de saúde da população mundial desde 1990 e concluiu a última coleta de dados no fim de 2019. O estudo ainda não capturou o efeito da pandemia do coronavírus no cenário global, mas antecipa que a maneira com que a Covid-19 e as “doenças não comunicáveis” se retroalimentam terá consequências graves e duradouras.
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O panorama geral que o GBD vem mostrando na última década é um cenário em que problemas como doenças infecciosas e desnutrição vêm perdendo importância e dando lugar a doenças crônicas como diabetes e problemas cardíacos.
Essas transformações são lentas e graduais. No Brasil, por exemplo, nos últimos dez anos uma das mudanças importantes foi que a violência caiu de 4º para 5º lugar como causa de morte, mesmo tendo aumentado em 5%, porque foi ultrapassada pelas doenças pulmonares crônicas, que aumentaram 28%. No mesmo período (2009 a 2019) as doenças neonatais perderam 41% do peso, e desceram do 6º para o 13º lugar nas causas de mortalidade.
Mudança de perfil
A transição pela qual o Brasil passou é um bom sinal, porque mostra que causas de doenças mais típicas de áreas pobres estão diminuindo em importância. Por outro, cria uma dificuldade, porque a prevenção de doenças crônicas é algo em que o mundo custa em avançar, incluindo em países ricos, como os EUA.
No total, a última edição do GBD analisou 286 causas de morte, 369 doenças/lesões e 87 fatores de risco em 204 países. Os três fatores que o estudo aponta como os que mais cresceram na América Latina em três décadas são a diabetes, a doença cardíaca isquêmica e a doença renal crônica.
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Na opinião do epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP que foi um dos colaboradores do GBD, dois desses fatores passam a ser ainda mais preocupantes no contexto do coronavírus.
— O impacto geral da Covid-19 se deve muito à alta prevalência de doenças cardiovasculares e diabetes — explica. — O problema ganhou notoriedade durante a pandemia, e alçou a palavra “comorbidade” ao uso corrente. Não é que pessoas com diabetes contraiam mais Covid-19, mas elas têm mais doença cardíaca imperceptível, que a Covid-19 acaba exacerbando. Se tivéssemos uma quantidade menor de doença cardiovascular no Brasil, teríamos uma quantidade muito menor de casos graves de Covid-19.
A medida da saúde
Para medir o impacto das doenças na população, um dos principais conceitos que o GBD usa é o de “esperança de vida saudável”, que é um cálculo que mistura a “expectativa de vida” tradicionalmente usada em estudos demográficos, mas subtrai desta os anos em que as pessoas vivem com problemas de saúde limitantes.
De um modo geral, países emergentes como o Brasil tiveram um ganho de expectativa de vida, mas o ganho em vida saudável não acompanhou no mesmo ritmo. Isso significa que doenças incapacitantes e não letais estão tendo um peso maior no cenário de saúde.
Nesse contexto, as doenças não transmissíveis aumentaram de peso — de 51% para 71% — dentro da perda de vida saudável registrada no Brasil. No cenário global, a interação dessas doenças com a Covid-19 preocupa igualmente.
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“A Covid-19 é uma emergência de saúde aguda sobre uma emergência de saúde crônica”, afirmou em comunicado Richard Horton, editor-chefe da Lancet, que publica o GBD. “E a cronicidade da crise atual está sendo ignorada a nosso próprio risco futuro. Doenças não transmissíveis tiveram um papel crítico em impulsionar as mais de 1 milhão de mortes causadas pela Covid-19 até agora e continuarão a determinar a forma da saúde em todos os países depois que a pandemia passar.”
‘Sindemia’
O IHME (Instituto para Métrica e Avaliação da Saúde), centro de pesquisa que coordena o estudo, fala em uma “sindemia” (interação em sincronia entre problemas sociais e epidemias) prejudicando os cuidados contra doenças crônicas.
O problema ocorre em duas mãos: ao mesmo tempo a convulsão social causada pela pandemia atrapalha medidas de prevenção das doenças crônicas, e a incidência dessas doenças aumenta a mortalidade pela pandemia. À medida que a Covid-19 demora a ceder, esse efeito de retroalimentação tende a se agravar.
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Segundo Christopher Murray, diretor do IHME, o combate aos fatores que provocam as doenças crônicas deve estar na lista para prevenir impactos futuros da Covid-19 e outras pandemias que eventualmente vão emergir no futuro.
“A maior parte desses fatores de risco é evitável e tratável, e lidar com eles trará grandes benefícios econômicos e sociais”, diz o epidemiologista. “Nós estamos falhando em mudar comportamentos nocivos à saúde, particularmente aqueles ligados a qualidade da alimentação, consumo de calorias e atividade física.”
Na opinião do cientista, o caminho para resolver o problema é de longo prazo, e passa por mudanças de políticas sanitárias, financiamento à saúde pública e pesquisa comportamental.