Áudio foi coletado em 1965, mas apenas recentemente a espécie Pseudopaludicola matuta passou a ser conhecida oficialmente — Foto: Felipe Silva de Andrade/Arquivo Pessoal
A meta já estava traçada pelo biólogo Felipe Silva de Andrade, mestre e doutorando pelo Departamento de Biologia Animal da Unicamp. Mas, mesmo assim, o tesouro milimétrico que ele encontrou em Curvelo (MG), graças a uma repentina chuva, foi uma surpresa que ganhou repercussão internacional. Apenas por diferenças sutis de um som emitido no meio da mata, ele identificou uma rã até então desconhecida.
Um áudio coletado em 1965 na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte (MG), pelo naturalista Werner Bokermann (1929-1995), famoso pelo estudo de anfíbios, trazia o canto de uma rã que até então ninguém conhecia. Mais de 50 anos depois, descobriu-se que o tal registro era da agora batizada Pseudopaludicola matuta, a valiosa descoberta de Andrade.
O biólogo Felipe Silva de Andrade na Unicamp: descoberta divulgada em publicação internacional — Foto: Ascom Unicamp/Divulgação
O fato gerou um artigo publicado no último mês de novembro no European Journal of Taxonomy. O biólogo assina o trabalho com os pesquisadores Isabelle Haga, Mariana Lyra, Thiago de Carvalho, Célio Haddad, Ariovaldo Giaretta e Luís Felipe Toledo.
Os machos possuem de 12,8 a 14,3 milímetros de tamanho corporal: apesar disso, espécie emite canto potente — Foto: Felipe Silva de Andrade/Arquivo Pessoal
“Era algo que já estava nos meus planos, era um dos objetivos da minha tese esclarecer a identidade desse animal. No princípio, a população de interesse era a de Curvelo-MG. Nós fomos lá primeiramente. O acaso (e a grande surpresa) foi ter encontrado essa mesma espécie nova no sopé da Serra do Cipó”, conta. “A espécie irmã da P. matuta, a P. mineira, ocorre nos campos rupestres de altitude, a cerca de 1.200 metros. A P. matuta nunca foi encontrada na parte de cima do parque, até o momento. Há um paredão separando essas duas espécies. Resta saber qual foi o papel da altitude no processo de especiação dessas espécies irmãs”, acrescenta Andrade.
Na cidade mineira, o grupo coletou indivíduos, fez gravações e retirou tecidos para análises genéticas posteriores. Depois de Curvelo, em novembro do ano passado, os pesquisadores foram ao Parque Nacional Serra do Cipó, onde indivíduos da espécie nova foram recolhidos perto da Lagoa da Capivara. “Todo trabalho de campo tem seus riscos. Há o claro risco de trabalhar à noite no campo (animais peçonhentos, bicho homem, etc.). Há também o risco mais temido: viajar muitos quilômetros e não encontrar a espécie que se está procurando. Saímos de Campinas por volta das 10h e chegamos em Curvelo cerca de 1h do outro dia. Imagina se não encontrássemos o bicho?”, comenta o biólogo, hoje aliviado pelo sucesso da empreitada.
“No nosso caso, por conta das gravações sonoras, há o risco dos equipamentos. Nós vamos para campo com gravadores e microfones profissionais importados que custam milhares de dólares. Tudo isso traz uma tensão maior”, diz.
Andrade lembra que a chuva ajudou muito. A região de Curvelo é conhecida por ser muito seca, mas no dia anterior havia chovido bastante na cidade. “E nós chegamos debaixo de um pé d'água. Isso animou a P. matuta. No dia da coleta e gravações abriu um sol bem forte. Pronto! Tudo perfeito para nós”, comemora.
A descoberta de uma nova espécie, e conhecê-la com precisão, é um importante passo para se preservar e conservar a biodiversidade. A P. matuta é conhecida apenas em alguns pontos do estado de Minas Gerais até o momento: Curvelo, baixada do Parque Nacional serra do Cipó e lagoa da Pampulha em BH (nos anos 60, hoje não mais). Futuros estudos dirão se ela pode ser encontrada em outros pontos de MG ou em outros estados brasileiros.
"Dona" do som registrado em 1965 foi descoberta recentemente
Características
Essa espécie, e todas as outras espécies de Pseudopaludicola, são conhecidas pelo seu tamanho. Os machos de P. matuta possuem de 12,8 a 14,3 milímetros de tamanho corporal. As fêmeas são maiores, 14,7 a 16,0 milímetros. Apesar do tamanho pequenino, os machos são capazes de emitir cantos potentes. Dá para ouvi-los a uma boa distância. Os machos e fêmeas são muito ligeiros também, pulam como uma facilidade incrível. Muita paciência e agilidade são necessárias para pegar um bichinho desses.
O professor Felipe Toledo, orientador de Andrade, coordenador e curador da Fonoteca Neotropical Jacques Vielliard (FNJV), do Museu de Zoologia da Unicamp, lembra que as maiores dificuldades nesse tipo de estudo são embasar bem a caracterização da nova espécie e a diferenciar das demais relacionadas.
Ainda de acordo com o professor, descobertas de diversidade biológica são importantes em diversos aspectos. Em primeiro lugar é uma questão cultural – amplia-se o conhecimento sobre a riqueza de espécies do Brasil e isso também aumenta a esfera de cultura humana. Há também um acréscimo no entendimento da biodiversidade.
O professor Felipe Toledo, orientador do trabalho: espécie pode servir para estudos em relação aos fármacos — Foto: Ascom/Unicamp
Finalmente, a P. matuta é mais uma espécie que pode ser estudada com relação aos fármacos, dado que a pele de anfíbios é rica em compostos químicos com potencial para indústria farmacêutica, ou ainda do ponto de vista do controle de insetos (vetores de doenças e pragas agrícolas), visto que se alimentam exclusivamente de pequenos insetos como mosquitos.
Toledo conta ainda que essa descoberta está relacionada a um projeto mais amplo de estudo das espécies deste gênero (Pseudopaludicola), no qual ainda se pretende descrever mais bichos e também realizar análises mais amplas com todas as espécies do gênero, como por exemplo, estudar a evolução dos coaxos. Com tudo isso, a “nova-velha conhecida” rãzinha se tornou um "grupo modelo" para o Laboratório de História Natural de Anfíbios Brasileiros.