Educação

“Doria mandou bater no nariz errado”

“Doria mandou bater no nariz errado”

O relato da professora primária agredida por guardas após manifestação na Câmara Municipal de São Paulo

POR LUCIANA XAVIER EM DEPOIMENTO A LUIZA SOUTO
24/03/2018 - 08h00 - Atualizado 24/03/2018 08h00
Luciana Xavier disse acreditar não ter sido atingida sem querer. “Eles miraram em mim” (Foto: Marcos Alves/Agência O Globo)

Trabalho com educação infantil há 14 dos meus 41 anos. Um dos nossos desafios é enfrentar a falta de recursos, o sucateamento da educação e a grande quantidade de alunos dentro das salas. Às vezes, o professor tem de lidar com 45 estudantes num mesmo espaço. Por isso, sempre participei de manifestações e greves.

Muitas de nossas reivindicações não são salariais, mas por condições de trabalho, infraestrutura, todo o aparato. Trabalho numa creche em São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo. Neste ano, estou com 20 crianças de 2 anos numa sala. É muito porque crianças nessa idade têm uma dependência maior. Também nos manifestamos para não perder direitos, como no caso dessa reforma da Previdência Social em São Paulo (o atual prefeito, o tucano João Doria, defende projeto de lei que prevê a elevação da contribuição previdenciária dos servidores públicos municipais de 11% para 14% do salário a fim de cobrir o déficit previdenciário, que pode chegar a R$ 8,4 bilhões em 2020). É muito número. Somos números para todas as instituições. O que vale é o financeiro. Mas, se não cuidar da base, toda a estrutura fica comprometida.

A creche de São Miguel Paulista fica num prédio antigo, que tem mais de 25 anos, e nunca passou por uma reforma. Não temos rampa de acesso, por exemplo. Se recebemos uma criança com limitações, a gente não consegue dar um bom atendimento. Já trabalhei em escola onde o aluno não tinha cadeira de rodas. Levávamos então no colo. A gente se vira nos 30, dá aquele jeitinho brasileiro. Costumo dizer que a gente, em primeiro lugar, é médico, psicólogo, assistente social. Se der um tempinho, a gente dá aula.

Essa proposta da Previdência começou com o ex-prefeito Fernando Haddad, do PT (a versão inicial da reforma previdenciária em São Paulo, o projeto de Lei 621/2016, foi apresentada por Haddad). Fizemos greve de 45 dias e acampamos em frente à prefeitura. Surtiu efeito. Desta vez, decidimos fazer greve a partir do dia 8 de março e programamos manifestação na Câmara Municipal na quarta-feira dia 14. Algumas pessoas acamparam no local. Levei minha barraca e cheguei às 10h30. Para os professores acampados, reservaram 20 senhas de entrada na Câmara. Eu peguei a de número 19. Mas havia outras categorias — e às 11 horas já havia uma fila gigantesca.

A Guarda Civil Metropolitana (gcm) estava organizando a fila quando uma confusão deflagrou. Fecharam o portão e mesmo quem tinha a senha não entrou. Começaram, então, a forçar a entrada. E não tinha mais como negociar. Era sua vida que estava em jogo. Já vínhamos de nove dias de greve. Estávamos cansados. Ninguém faz greve porque quer e acha bonito. Greve não é bacana para ninguém. Você fica sem trabalhar, os alunos sem atendimento. O professor fica com seu lado psicológico destruído.

Luciana Xavier no momento em que entrava na Câmara Municipal de São Paulo ao lado de outros manifestantes para protestar contra a reforma previdenciária proposta por Doria (Foto: Aloisio Mauricio/Fotoarena/Agência O Globo)

Os ânimos foram se acalmando, e decidiram então abrir para 150 pessoas entrarem. O combinado era transmitir, por telão, para os demais. Como eu estava na linha de frente, gritava: “Tenho senha!”. O guarda municipal dava risada: “O problema é seu. Vocês são culpados disso tudo. Senha, agora, não vale, professora”. Fomos entrando de um em um, depois de revistados. O Choque da GCM estava lá nos recebendo. Fiquei dentro da Câmara menos de meia hora. Quando o relator (vereador Caio Miranda, do PSD) começou a ler o PL, gritamos palavras de ordem: “Retira o PL, é nossa vida que está em jogo!”. Tinha um cordão da GCM onde o relator estava. Quando observaram que estávamos muito próximos ao relator, o Choque da GCM entrou por trás, já com o cassetete levantado, mas não havia confusão generalizada. Como professor vai brigar com professor? As outras categorias estavam todas de braços dados. A gente tentava acalmar uns aos outros.

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Desceram o cassetete — e foi direto em mim. Acredito que não fui atingida sem querer. Miraram em meu rosto. Quando você bate no rosto de uma pessoa, mira para acertar. Do contrário, bate no braço, na perna. Não posso afirmar quem foi que desferiu o golpe, mas vi um rosto branco, de óculos e pele rosada. Podiam ter falado que eu estava exaltada, agressiva. Estava exaltada mesmo. Era minha vida em jogo. Que me empurrassem, então. Eles poderiam ter me tirado dali pelo braço. Agora, bater no rosto de uma pessoa? Não estava armada, nem com pedra. Como vou oferecer risco a alguém? Eu tenho 1,60 metro. O agente tinha, no mínimo, 1,80 metro.

Quando viram minha agressão, com minha imagem no telão, a violência deflagrou de vez. Gritavam: “Tem uma professora ensanguentada”. Perdeu-se o controle. Não senti dor na hora. Meu ouvido zumbiu. Só falei: “Arrombaram meu rosto”. Eu tinha certeza, pela quantidade de sangue. Foi um choque para mim. Vinha de 45 dias de greve do governo anterior e não tinha passado por isso. Não estou defendendo o governo anterior. Ele foi horroroso com a gente, mas nunca vi tamanha truculência.

Jamais poderia imaginar que seria agredida. Estava dentro de um espaço público. Eles estavam ali para proteger o patrimônio. E o ser humano, não?

Meu nariz foi fraturado, mas é melhor descartar uma cirurgia porque ela seria muito invasiva. Tive uma boa recuperação. A narina direita está mais entupida, ainda tenho dificuldade para respirar, mas o médico disse que vai passar. Posso ter de 5% a 10% de comprometimento respiratório nessa narina, mas o médico achou que não compensa a agressividade de uma cirurgia. Ele disse que sou dura na queda.

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O secretário municipal de Educação (Alexandre Schneider) ligou para meu celular para saber se podia me ver e pediu desculpas. Disse: “Me desculpa, agradeço sua preocupação em me ver, mas não tenho condições psicológicas de estar perto de alguém que seja do governo”. Ele é da Educação. Acredito que ainda tenha algum sentimento pela gente. O ser humano ainda tem cura. Talvez o Doria, não.

Ainda não fui ao Instituto Médico Legal (iml) fazer corpo de delito. Mas tenho 30 dias para isso, além de boletim médico. Minha ficha ainda não caiu. Pessoas perguntam sobre minha indignação. Eu respondo que estou focada na recuperação. Não consigo ainda fazer um diagnóstico de tudo isso, até porque estou evitando pensar sobre. Sou uma professora com saúde mental ainda estruturada. Daqui para a frente, não sei como vai ficar. As pessoas têm formas diferentes de lidar com problemas. Agradeço o apoio de muitos amigos e da família.

As pessoas costumam dizer que ser professor ou médico é uma missão. Sou trabalhadora como qualquer outro e quero receber por isso. Prestei concurso com 220 mil pessoas e consegui uma vaga. Quero ser recompensada. Meu salário-base está entre R$ 3,5 mil e R$ 4 mil. Trabalho 30 horas por semana. O professor estuda a vida inteira, está cuidando e educando pessoas de zero a 17 anos. Qual o problema em ganharmos bem?

Sou de família humilde. Meus pais são nordestinos, da Paraíba e de Pernambuco, mas nasci em São Paulo, na Vila Mariana (Zona Sul). Minha história é como a de muitas famílias nordestinas que vieram para São Paulo em busca de oportunidade. Meu pai nos sustentava com trabalho de pedreiro e pintor. Ele só estudou até a 4a série. Minha mãe nem fez o primário. Era do lar. Então eu só tinha condições de estudar em escola pública. Eles tentavam fazer de tudo para oferecer cursos paralelos, como de inglês, e manter o material intacto. Meu pai encapava todos os cadernos e livros.

Rosto ensanguentado, depois de ser atingida por um cassetete (Foto: Aloisio Mauricio/Fotoarena/Agência O Globo)

Em 1996, eu me formei no magistério. Tenho uma graduação, além de outros cursos paralelos. Sempre dei aula para a educação infantil. Tenho formação para o ensino médio e para direção, mas meu foco é no infantil porque é lá que os hormônios estão em ebulição, a criança tem um repertório aberto, não está engessada pelo sistema. Não tem esse negócio de que criança é tábula rasa. Elas nascem meio prontas, predispostas a aprender.

Entro na sala de aula com a mesma paixão de sempre. Meus pequeninos precisam disso. Se eu não estiver bem psicologicamente, eles não estarão. Tenho de oferecer o melhor. A criança já chega com uma estrutura social arrebentada. Se eu for embrutecer, esse ser humano também irá. Aí estará tudo perdido.

Ser professor acabou se tornando uma profissão compensatória. Os alunos estão indo para a escola não para receber formação, mas com carência social e afetiva. A sociedade está desestruturada e desemboca na escola. O que a criança não tem dentro de casa, eu preciso compensar e, se der tempo, ser professora.

Ainda vale ser professora. Queria muito que os jovens não desistissem. Só que educar custa caro. Quem tem educação pública de qualidade vai reivindicar seus direitos. Educação incomoda. Acredito que a demanda da repressão é de acordo com a força do movimento. Se recebi essa cassetada é porque o movimento está forte e os professores estão incomodando. Não vamos recuar.Doria mandou bater no nariz errado.
 

Outro lado

A Secretaria de Segurança Pública disse que a intervenção da Polícia Militar, do lado de fora da Câmara Municipal, foi necessária devido ao tumulto. A assessoria de imprensa da presidência da Câmara Municipal de São Paulo disse que a confusão começou após os manifestantes avançarem contra os vereadores e jogarem garrafas d’água contra os parlamentares, com o objetivo de “impedir à força a leitura do relatório sobre o PL 621”. De acordo com a Câmara Municipal, o inquérito policial vai apurar o ocorrido e os danos causados pelos manifestantes ao patrimônio público. O prefeito João Doria lamentou o incidente e criticou a violência dos dois lados. Afirmou que a Guarda Civil Metropolitana instaurou inquérito para apurar os fatos.








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