Coluna
Francisco Bosco O colunista escreve às quartas-feiras

O que é a elite branca?

Diante da controvérsia causada por Lula ao usar a expressão, é necessário deslindar os fios para entender o que ela significa

Desde que Lula afirmou terem partido da “elite branca” os xingamentos à presidenta Dilma no Itaquerão, a expressão não parou de circular intensamente, mobilizando paixões, arrazoados e controvérsias. O ministro Gilberto Carvalho discordou de Lula quanto à origem dos insultos, observando que “não tinha só elite branca” no estádio. Seja como for, o que me interessa aqui é me deter sobre a própria expressão. Pois não faltaram os que, compreensivelmente, questionaram a pertinência de seu sentido e suspeitaram de uma contradição entre ela e seu emprego por pessoas brancas de classe média ou alta. Diante do imbróglio, é necessário deslindar os fios.

Odicionário Houaiss consigna, para o verbete “elite”, os seguintes principais significados: 1. “o que há de mais valorizado e de melhor qualidade, especialmente em um grupo social”; 2. “minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social.” Etimologicamente, segundo o mesmo Houaiss, a palavra “elite” significa “o que há de melhor”, e vem do francês élire , “escolher, eleger”. No contexto da tradição histórico-social do Brasil, o significado 2., suprimida a palavra “prestígio”, é muito mais forte e pregnante do que o 1. Na formação e no desenvolvimento de nossa sociedade, os donos do poder agiram muito mais no sentido de manter seu domínio sobre o conjunto social do que se provaram um grupo “de melhor qualidade” (a origem dessa dominação não é a excelência, que, medida em contexto democrático, chama-se meritocracia). Tendo origem nada democrática, numa sociedade que se inicia como filial da monarquia portuguesa e teve por séculos sua base produtiva na escravidão, muito menos se pode dizer que se trata de uma elite eleita, seja em que sentido for. Assim, podemos restringir os significados de elite, nesse contexto, a um só: grupo social dominador. É seguramente esse o significado da palavra na expressão “elite branca”.

Mas a outra palavra da expressão não é menos problemática. Pois “branca” é um termo que mobiliza ao mesmo tempo duas dimensões diversas, uma simbólica, outra literal, fenotípica. Na sociedade brasileira, onde a cor da pele tem implicações sociais, branco é uma palavra equívoca. Um indivíduo pode não ser fenotipicamente branco — e sim mestiço de pele —, mas ser branco simbólico , isto é, socialmente identificado como pertencente ao grupo social privilegiado, não discriminado. É esse o significado em jogo na expressão “elite branca”.

Assim, “elite branca” designa, a princípio, o grupo social privilegiado ou dominador (essa é outra ambiguidade a ser desfeita adiante), de cor simbólica branca. Se pararmos aqui, a expressão, considerando sua carga depreciativa e acusatória embutida, seria uma generalização injusta. Afinal, muitas das pessoas que participam das classes médias e altas, e são brancas simbólicas, não podem ser acusadas de colaborar, aberta ou disfarçadamente, com a perpetuação das nossas desigualdades estruturais (é essa a acusação embutida). Justamente, devemos fazer ainda uma outra distinção. O que a expressão “elite branca” pretende caracterizar não é a situação excessiva ou relativamente privilegiada em que se encontra um grupo social, mas o modo como esse grupo se posiciona diante das desigualdades estruturais do país . Pertencem à “elite branca” aqueles que pensam e agem no sentido da manutenção dessas desigualdades e, consequentemente, de seus privilégios, atuando como um grupo dominador. Não pertencem a essa “elite branca” (que, portanto, é uma categoria mais política e moral do que econômica e fenotípica) aqueles que, situando-se em um grupo social privilegiado, pensam e agem no sentido do combate às desigualdades, renunciando a privilégios em benefício da justiça social.

Por todo esse caráter equívoco, não estou certo de que a expressão, em si, produza efeitos de esclarecimento crítico (algo análogo — mas de equivocidade ainda maior — se passa quando Marilena Chauí se refere à classe média). Mas é preciso, concreto e verdadeiro aquilo que ela deseja designar. Fazem parte da “elite branca” todos os sujeitos de grupos sociais privilegiados que denunciam difusamente as desigualdades do Brasil mas repudiam qualquer ato político real que as combata; todos os sujeitos incapazes de pensar e agir coletivamente, sempre colocando em primeiro, senão único lugar as suas vantagens pessoais; todos os sujeitos que, para dar um exemplo entre inúmeros possíveis, não apoiaram a greve dos vigilantes, que reivindicavam um piso salarial de pouco mais de R$ 1 mil (e R$ 20 de vale-refeição), diante dos bilhões de reais que os bancos lucraram no ano passado.

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