Por Lívia Machado, G1 São Paulo


Com dois livros lançados, e diversos prêmios, Mel Duarte vive da arte que propaga

Com dois livros lançados, e diversos prêmios, Mel Duarte vive da arte que propaga

O cartório da Avenida Paulista, em São Paulo, demorou dois meses para aceitar que a menina recem-nascida fosse registrada com o nome que também é sinônimo de um alimento. Até os 18 anos, Mel Duarte portava um documento que a permitia solicitar alteração em seu nome em caso de constrangimento. Filha única crescida entre os extremos da cidade, nas zonas Norte e Sul, a resistência de origem virou ofício.

No aniversário de São Paulo, o G1 apresenta as histórias de cinco mulheres que fazem a vida na cidade e ajudam, de alguma forma, a transformar a realidade de quem vive nela. Conheça os perfis.

Aos 28 anos, após prêmios e projeção nacional, ela é a resposta da própria pergunta: “Quem que ganha dinheiro com poesia, como isso acontece na vida de alguém?”, brinca.

Desde setembro de 2016, Mel passou a se bancar da arte que propaga. Com dois livros lançados, atuando em diversos coletivos, sendo um deles só de mulheres, ela deseja que sua forma de expressão possa despertar senso crítico e ser metodologia de ensino.

Mel Duarte dispara os versos de sua poesia no Centro Cultural do Jabaquara, local onde cresceu e lançou seu segundo livro — Foto: Flávio Moraes/G1

“Meu sonho é só trabalhar em escola fazendo poesia. Quando eu faço um sarau numa classe que [os alunos] têm dez anos de idade, ou numa faculdade, é muito doido. Você vai abrindo mentes, literalmente. Quebrando paradigmas."

Radialista de formação, ela deixou o emprego fixo em uma ONG há cinco meses para dar conta dos projetos paralelos e atividades que começaram a se multiplicar. Em novembro, venceu o Rio Poetry Slam, campeonato de poesia falada que aconteceu na Flupp (Festa Literária das Periferias), no Rio de Janeiro. À época, garantiu à mãe: “Ou eu tento agora ou não tento. Se eu tiver trabalhando não tenho disponibilidade para fazer as coisas com a poesia que eu quero”.

Com dez mil seguidores em seu perfil pessoal no Facebook e mais do que o dobro na fan page, Mel virou referência na literatura feminina paulista falando sobre machismo, racismo, transição capilar, intolerâncias. A postura segura, o gingado envolvente e agilidade verbal fazem calar de adolescentes do ensino fundamental a deputados federais.

“Se você quer conversar com uma turma de jovens, meninos e meninas, sobre estupro, você fala a palavra 'buceta' eles começam a rir. É difícil, e é um tema pesado. Se eu quiser fazer uma palestra de duas horas para tentar colocar na cabeça deles o que é isso, eles não vão me ouvir. Mas vou escrever uma poesia sobre isso, e vou vir com todo ímpeto e raiva, e tudo que eu quiser e vou trazer isso para dentro desse espaço. E de repente em três minutos faço uma turma inteira ficar quieta, todo mundo me ouvir e os meninos virarem e pedir desculpa. 'O que você falou mexeu comigo'.”

Mel cresceu acompanhando o pai artista plástico e grafiteiro em incursões pelas "quebradas" na capital paulista. Aos oito anos, a arte ganhou forma cursiva. Conheceu a poesia na escola, e passou a utiliza-la como passatempo e alternativa à solidão.

O lugar preferido de Mel na cidade é o Centro Cultural do Jabaquara. O local tem uma biblioteca especializada em literatura africana, além de um parque. — Foto: Flávio Moraes/G1

“Não tinha insumo, não sabia o que procurar. Lia o que a escola acabava pedindo. Quando eu parava para ler um Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, achava lindo, mas algumas coisas não faziam sentido, eu não entendia. Comecei a me questionar: será que existem pessoas que escrevem coisas que têm a ver com a minha realidade? Não conhecia mulheres que escreviam. Cecilia Meireles, Clarice Lispector, Florbela Espanca e parava por ali. Não tinha referência de mulheres escritoras, mulheres que estavam vivas, muito menos mulheres negras. Isso demorou muito para chegar na minha vida.”

Dez anos depois, conseguiu emprego em uma livraria e amplificou sua relação com a literatura. Descobriu os saraus em 2006, graças a um colega de trabalho que morava na Brasilândia, na Zona Norte, e participava do movimento. Foi amor ao primeiro verso falado. “Nem sabia que existia isso. Quando eu fui eu me apaixonei e falei: 'Quero fazer parte disso'.", recorda.

Superou o medo da exposição e foi percebendo a importância de sua figura feminina em espaços predominantemente masculinos. “Ao mesmo tempo que eu sentia muito envergonhada de falar, porque muitos eventos que eu ia só tinha homem e eu era a única mulher. As meninas iam assistir, mas não falavam. Com o tempo eu fui entendendo que era necessário. E você vai puxando as pessoas aos poucos.”

E foi participando, fincando seu espaço nos saraus, que encontrou sua identidade, e deu sentido às inquietações. “É um lugar muito democrático. As pessoas vão, colocam suas angústias, seus amores, seus ódios. Isso foi me ajudando muito a me conhecer, entender meus processos, me perguntar o que eu quero falar, para quem eu quero falar.”

Ao longo do tempo, viu a presença feminina se multiplicar nas competições de poesia, e passou a questionar os entraves que ali existiam. Em março de 2016, fundou, com mais três parceiras, o coletivo Slam das Minas – SP para aumentar a rede de apoio, combater o sexismo nesses espaços e conseguir que uma mulher seja escolhida para representar o Brasil em competições internacionais.

“Foi incrível porque a gente percebeu o quanto as meninas precisavam de um espaço só delas, para colocar o que sentiam. (...) E criamos para garantir que uma mulher chegue numa final, garantir que uma mulher vá para a França, porque há cinco anos que o Brasil compete e nenhuma mulher foi.”

Mel posa ao lado de uma ilustração da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, uma de suas referências literárias — Foto: Flávio Moraes/G1

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