Cultura

BaianaSystem é um dos maiores acontecimentos da música brasileira recente

Banda baiana cria um mundo que rima mágico e trágico em 'O futuro não demora'
Capa do novo disco do BaianaSystem 'O futuro não demora' Foto: Divulgação/Filipe Cartaxo / Reprodução
Capa do novo disco do BaianaSystem 'O futuro não demora' Foto: Divulgação/Filipe Cartaxo / Reprodução

RIO — As primeiras notas ouvidas em “O futuro não demora” anunciam uma atmosfera futurista que cresce épica e logo se dilui na ancestralidade de agogôs e caxixis. São poucos segundos, mas nesse caminho sutil se revela a ideia central do disco — dividido em duas partes elementais, “água” e “fogo”. No álbum, em som e poética, o BaianaSystem queima e flutua entre passado e futuro, traçando sua linhagem, inventando sua tradição real e expondo a consciência quente e molhada do presente — driblando ceticismo, de um lado, e ingenuidade, de outro.

Nesse contexto, o verso “você tem poder para mudar o mundo” soa mais contundente do que pode parecer isoladamente. Afinal, o chamado à ação aparece em meio à afirmação de que “não tem diferença do homem moderno pro Homem de Neanderthal” e que “a fila anda mas quem manda no navio tá na proa/ a fila anda mas quem manda no Brasil tá de boa/ a fila anda mas quem manda manda”. Desde sempre. “Mágico” rima com “trágico” quando se fala desse mundo retratado pela banda.

A força de tudo o que se canta e toca ali, portanto, não se apoia numa suspensão descolada do presente, mas numa percepção aguda dele. Seja pela concretude da iminente crise de escassez de água (“Água”) e dos recentes escândalos na política brasileira (“Arapuca”), seja na compreensão “mântrica”, mais funda, do ordenamento do mundo (“Melô do centro da Terra”) e da legitimidade da fome simbólica para além da fome física (“Sambaqui”, dos versos “comendo com a boca/ comendo com o olho/ surra de cansanção/ surra de canção”). Quase sempre tudo exposto em versos-pedras, fragmentos de sentido que se prestam a ser ora parte de um grande mosaico, ora munição contra os escudos transparentes e capacetes do status quo.

Todo o lamento, toda a afirmação de poder, toda a convocação ao real das letras se sustenta no chão sonoro tão potente quanto o de “Duas cidades” (álbum anterior da banda), mas dotado de mais camadas. Há pistas da linhagem do grupo no verso “Zulu Nation, Nação Zumbi, Ilê Ayê, Rumpilezz”, mas o encontro de água e fogo ferve ainda em dub, pagode baiano, cumbia, carimbó e outros sons da periferia global — centro do mundo, fundo do mar.

Os diálogos que a banda estabelece na fervura, nos muitos “feat.” do disco, enriquecem o caldo: a exuberância da Orquestra Afrosinfônica; o berimbau e o canto de Lourimbau, enraizados no mar; a clandestinidade essencial da dicção de Manu Chao; a elegância harmônica de Antônio Carlos e Jocafi; a diáspora que deságua em funk no negro BNegão e no branco Curumin; o rap (os raps) de Edgar e Vandal, que dizem dos jeitos de falar do Brasil contemporâneo para além do que o Planalto sinaliza.

Um dos maiores acontecimento da música brasileira recente, a banda segue firme em “O futuro não demora” — título que é promessa e ameaça, dependendo de quem ouve.

Cotação: Ótimo