Rio

PM e ex-PM são presos pelo assassinato de Marielle Franco

Sargento reformado da Polícia Militar Ronnie Lessa teve a prisão preventiva decretada pelo juiz-substituto do 4º Tribunal do Júri
Policiais apreendem um tubo que era usado por Lessa para guardar equipamentos e o levam para a DH Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Policiais apreendem um tubo que era usado por Lessa para guardar equipamentos e o levam para a DH Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

RIO - A Delegacia de Homicídios (DH) da Capital e o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco/MPRJ) prenderam na manhã desta terça-feira o sargento reformado da Polícia Militar Ronnie Lessa, de 48 anos, e o ex-PM Elcio Vieira de Queiroz, de 46 anos, suspeitos de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes. Na quinta-feira, os assassinatos completam um ano. Os dois tiveram prisões preventivas decretadas pelo juiz do 4º Tribunal do Júri Gustavo Kalil após denúncia da promotoria. Segundo a denúncia do Ministério Público (MP) do Rio, Lessa teria atirado nas vítimas, e Elcio era quem dirigia o Cobalt prata usado na emboscada. O segundo acusado foi expulso da corporação.

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Sargento reformado da Polícia Militar, Ronnie Lessa é apontado como um dos suspeitos pela morte de Marielle Franco Foto: Editoria de arte
Sargento reformado da Polícia Militar, Ronnie Lessa é apontado como um dos suspeitos pela morte de Marielle Franco Foto: Editoria de arte

De acordo com a denúncia das promotoras Simone Sibilio e Leticia Emile, o crime foi "meticulosamente" planejado três meses antes. Os denunciados foram presos às 4h desta madrugada. Além das prisões, a operação busca cumprir mandados de busca e apreensão nos endereços dos denunciados para recolher documentos, telefones celulares, computadores, armas, acessórios, munições e outros objetos. Chamou a atenção o pente-fino que a polícia fez dentro da casa de Ronnie Lessa, na Barra da Tijuca.

As equipes comandadas pelo delegado Giniton Lages, titular da Delegacia de Homicídios da capital, vasculharam os dois andares da residência do sargento reformado. Para isso, foram usados até detectores de metais. Os policiais buscaram fundos falsos em todo o terreno da casa, tiraram telhas e usaram uma escada para ter acesso à caixa-d'água, à procura de possíveis esconderijos de armas e munição. De lá foram levados computadores, documentos e um cilindro de plástico. A casa de Élcio Queiroz, no bairro do Engenho de Dentro, também passou por um trabalho minucioso. A polícia também cumpriu 34 mandados de busca e apreensão em outros endereços em busca de informações que podem levar ao mandante do crime, pergunta que ainda está sem resposta.

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Lessa e Elcio foram denunciados pelo assassinato e também pela tentativa de homicídio de Fernanda Chaves, assessora da vereadora que estava no carro e sobreviveu ao ataque. A ação foi batizada de Operação Lume, uma referência ao local no Centro de mesmo nome, na Rua São José, onde Marielle prestava contas à população sobre medidas tomadas em seu mandato. Ali ela também desenvolvia o projeto Lume Feminista.

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As promotoras pedem ainda a suspensão da remuneração e do porte de arma de fogo de Lessa. Também foi requerida uma indenização por danos morais aos familiares das vítimas e a fixação de pensão em favor do filho menor do motorista Anderson até que ele complete 24 anos. Em certo trecho da denúncia, elas ressaltaram: “É inconteste que Marielle Francisco da Silva foi sumariamente executada em razão da atuação política na defesa das causas que defendia. A barbárie praticada na noite de 14 de março de 2018 foi um golpe ao Estado Democrático de Direito".

O ex-PM Elcio Vieira de Queiroz é acusado de ter dirigido o carro usado no crime  Foto: Reprodução
O ex-PM Elcio Vieira de Queiroz é acusado de ter dirigido o carro usado no crime  Foto: Reprodução

O policial Lessa mora no condomínio Vivendas da Barra, na Avenida Lúcio Costa, 3.100, por coincidência, o mesmo do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL). Não há, porém, nenhuma ligação, a não ser o fato de serem vizinhos. O condomínio fica de frente para o mar, com seguranças na portaria.

O advogado do sargento reformado disse que Lessa nega de forma veemente o crime. Fernando Santana informou que ainda não teve acesso ao inquérito e diz que foi surpreendido pela prisão do PM.

- Nós fomos pegos de surpresa, não tivemos acesso a nenhuma página do inquérito policial.

Suspeito acompanhava agenda de Marielle

A principal prova colhida pelos investigadores é fruto da quebra do sigilo de dados digitais de Ronnie Lessa. Ao verificar os arquivos acessados por ele via celular antes do crime, armazenados na “nuvem” (ficam guardados em servidor externo e podem ser vistos remotamente), descobriu-se que o suspeito monitorava o cotidiano de Marielle, inclusive sua agenda de eventos. Um dos locais ligados à vereadora pesquisados foi um antigo endereço dela, quando ainda morava na Rua do Bispo, na Tijuca. Para a polícia, isso é um indício fundamental de que Marielle estava tendo seus passos rastreados. Segundo a investigação, ela participou de pelo menos uma das agendas pesquisadas pelo suspeito.

De acordo com uma fonte que investiga o caso, Lessa usava na época do crime um telefone “bucha” (comprado com o CPF de terceiros, para não ser rastreado). Já o aparelho registrado na operadora telefônica em nome do próprio sargento foi usado no dia do duplo assassinato por uma mulher em um bairro da Zona Sul, longe do local da emboscada, no Estácio. O objetivo do sargento, segundo o investigador, foi confundir a polícia caso os agentes fossem verificar as antenas de telefonia das estações de rádio-base (ERBS) para checar se o celular pessoal dele estava sendo usado nas imediações de onde ocorreram os assassinatos.

Relembre: MP analisa celulares apreendidos durante Operação Os Intocáveis em busca de provas contra a milícia

E foi exatamente o que os agentes fizeram. Para chegar ao celular “bucha” usado pelo PM, os investigadores realmente tiveram que fazer o que eles chamam de triangulação de antenas, ou seja,  levantar as ERBS da região e traçar uma localização mais precisa, refinando assim as buscas pelo celular dos criminosos. O resultado deste levantamento dos telefones ligados na região onde a vereadora passou, da saída da Câmara dos Vereadores até o Estácio, gerou uma extensa lista.  Era como achar uma agulha no palheiro.

O policial teve a prisão preventiva decretada após denúncia Foto: Reprodução
O policial teve a prisão preventiva decretada após denúncia Foto: Reprodução

Durante vários meses, os policiais da área de tecnologia da DH trabalharam na pesquisa, reduzindo os alvos, mas, ainda assim, o número era elevado. Apesar da complexidade, os investigadores, baseados numa imagem registrada por câmeras de segurança da Rua dos Inválidos, no Centro, no dia 14 de março, chegaram aos horários em que um objeto semelhante a um celular aparece aceso dentro do Cobalt prata dos executores. O carro estava estacionado perto da Casa das Pretas, onde Marielle participava de um debate como mediadora.

Com o registro do horário de uso do suposto telefone, foi feita uma nova triagem na lista de celulares já pesquisada. Descobriu-se, então, que um dos aparelhos que nela estavam fez contato com uma pessoa relacionada a Lessa. Daí, a polícia partiu para buscar os dados do policial na nuvem.

como foi feita a investigação
A Delegacia de Homicídios (DH) investiu no acesso à nuvem dos celulares usados pelos assassinos no dia da morte de Marielle, já que a arma e o carro utilizados no crime nunca foram encontrados
1
Antenas de
telefonia da estação
de rádio-base (ERBS)
Sinais de celulares são captados
por
antenas das estações de
rádio-base (ERBS)
Celular
em uso
2
A polícia rastreou todos os telefones que estavam ligados nos
locais por onde Marielle passou, desde a saída da Câmara
Municipal até o local da emboscada
Servidor que armazena os dados em “nuvem”
Sinais enviados
por celulares
3
Os dados gerados por esses
aparelhos são enviados para
os servidores das operadoras
santo
cristo
e armazenados. Com isso, a
centro
polícia obteve uma lista
R. do Senado
extensa de telefones
CIDADE
NOVA
R. Estácio
de Sá
suspeitos
Av. Salvador
de Sá
ESTÁCIO
Ponto de partida
Rua dos Inválidos
Local do assassinato
Rua João Paulo I
4
Tendo como base o horário em
que uma câmera de segurança
captou a luz de um celular
,
dentro do carro dos assassinos
parado na Rua dos Inválidos,
onde Marielle participava de
um debate, a polícia fez uma
triagem e chegou ao telefone
Luz da tela do celular
acesa dentro do carro
de Ronnie Lessa
5
Após identificar o número do
aparelho, a polícia conseguiu
seus dados de acesso a
aplicativos.
Com uma ordem
, investigadores acionaram
judicial
as empresas responsáveis por
esses programas e obtiveram
informações armazenadas na
nuvem
6
A polícia descobriu que
Lessa monitorava a agenda de Marielle
. Para a investigação, isso deixa claro que ele estava rastreando
Franco
os passos da vereadora
como foi feita
a investigação
A Delegacia de Homicídios (DH) investiu no acesso à nuvem dos celulares usados pelos assassinos no dia da morte de Marielle, já que a arma e o carro utilizados no crime nunca foram encontrados
1
Sinais de celulares são captados
por
antenas das estações de
rádio-base (ERBS)
Antenas de
telefonia da estação
de rádio-base (ERBS)
Celular
em uso
2
A polícia rastreou todos os telefones
que estavam ligados nos locais por
onde Marielle passou, desde a saída
da Câmara Municipal até o local da
emboscada
Servidor que
armazena os
dados em
“nuvem”
Sinais enviados
por celulares
3
Os dados gerados por esses
aparelhos são enviados para os
servidores das operadoras e
armazenados. Com isso, a polícia
obteve uma lista extensa de
telefones suspeitos
santo
cristo
centro
R. do Senado
CIDADE
NOVA
R. Estácio
de Sá
Av. Salvador
de Sá
ESTÁCIO
Local do
assassinato
Rua João Paulo I
Ponto de
partida
Rua dos Inválidos
4
Tendo como base o horário em que
uma câmera de segurança
captou a
luz de um celular dentro do carro
, parado na Rua
dos assassinos
dos Inválidos, onde Marielle
participava de um debate, a polícia
fez uma triagem e chegou ao
telefone de Ronnie Lessa
Luz da tela do celular
acesa dentro do carro
5
Após identificar o número do
aparelho, a polícia conseguiu
seus dados de acesso a aplicativos.
,
Com uma ordem judicial
investigadores acionaram as
empresas responsáveis por esses
programas e obtiveram informações
armazenadas na nuvem
Acesso aos
dados dos
aplicativos
6
A polícia descobriu que
Lessa
monitorava a agenda de Marielle
. Para a investigação, isso
Franco
deixa claro que ele estava
rastreando os passos da vereadora

A operação desta terça, além de estar ancorada na interceptação dos dados digitais do suspeito, também se sustenta num trabalho de inteligência e em depoimentos de informantes, inclusive presos no sistema carcerário. Para não perder mais tempo, após quase 12 meses de investigação, a polícia e o Ministério Público do Rio concordaram em desmembrar o inquérito em duas partes: uma, transformada em denúncia, identificando os atiradores. E outra, ainda em andamento, para chegar aos mandantes. O que os investigadores têm certeza é de que havia três pessoas dentro do veículo.

O atentado sofrido pelo PM reformado no dia 27 de abril, no mês seguinte aos homicídios da vereadora e do motorista, também chamou a atenção dos investigadores. Ele e um amigo bombeiro foram baleados no Quebra-Mar, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio. Um homem de motocicleta teria abordado o carro onde estavam, mas os dois reagiram e também balearam o criminoso, que, mesmo ferido, fugiu.

Na época, a Polícia Civil informou que não descartava qualquer hipótese para o crime, mas que havia grande possibilidade de ter sido uma tentativa de assalto. Lessa foi levado ao Hospital Municipal Lourenço Jorge, na Barra, mas teria deixado logo a unidade sem prestar esclarecimentos. Os investigadores ainda apuram as circunstâncias do crime.

Não foi a primeira vez que o nome do PM reformado apareceu no noticiário. Em 2009, Lessa foi vítima de um atentado, em Bento Ribeiro, quando uma bomba explodiu dentro da Toyota Hillux blindada que dirigia. Ele escapou da morte, mas perdeu uma das pernas, sendo obrigado desde então a usar uma prótese.

AS REVIRAVOLTAS DO CASO
Em um ano, há três frentes de investigação que já passaram pelas mãos de três delegados, três promotores e uma procuradora da República
2018
A Delegacia de Homicídios (DH) e o Ministério Público do Rio (MPRJ) começam a investigar o caso
14 de março
Assassinato de Marielle e Anderson
9 de maio
Um policial ligado a uma milícia diz a investigadores que ouviu Curicica e Siciliano falarem em "dar um jeito em Marielle". Ambos negaram, e Curicica foi transferido para um presídio no Rio Grande do Norte
Orlando Curicica
Miliciano preso
Marcelo Siciliano
Vereador
19 de agosto
O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPRJ começa uma investigação paralela sobre a morte de Marielle, devido à suspeita de envolvimento de uma milícia no crime
20 de setembro
Orlando de Curicica afirmou ter sido coagido pela DH para assumir o crime. E em novo depoimento ao Ministério Público Federal, ele atribuiu a autoria
do assassinato a uma quadrilha especializada em matar por encomenda, que contaria com a proteção da polícia
1 de novembro
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu à Polícia Federal que investigue as denúncias de Curicica contra a DH, o que passa a ser chamado de "a investigação da investigação"
Raquel Dodge
Procuradora-geral
da República
19 de dezembro
O MPRJ e a DH romperam relações por divergências na condução do caso: cada um passou a seguir uma linha de investigação
2019
22 de janeiro
A operação Os Intocáveis, realizada pelo Gaeco com o apoio da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil prende milicianos da comunidade de Rio das Pedras; inclusive suspeitos de integrar o grupo de matadores de aluguel denunciado por Curicica
12 de março
O Gaeco chega a Ronnie Lessa
AS REVIRAVOLTAS DO CASO
Em um ano, há três frentes de investigação que já passaram pelas mãos de três delegados, três promotores e uma procuradora da República
2018
14 de março
Assassinato de Marielle e Anderson
A Delegacia de Homicídios (DH) e o Ministério Público do Rio (MPRJ) começam a investigar o caso
Orlando Curicica
Miliciano preso
Marcelo Siciliano
Vereador
9 de maio
Um policial ligado a uma milícia diz a investigadores que ouviu Curicica e Siciliano falarem em "dar um jeito em Marielle". Ambos negaram, e Curicica foi transferido para um presídio no Rio Grande do Norte
19 de agosto
O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPRJ começa uma investigação paralela sobre a morte de Marielle, devido à suspeita de envolvimento de uma milícia no crime
20 de setembro
Orlando de Curicica afirmou ter sido coagido pela DH para assumir o crime. E em novo depoimento ao Ministério Público Federal, ele atribuiu a autoria do assassinato a uma quadrilha especializada em matar por encomenda, que contaria com a proteção da polícia
Raquel Dodge
Procuradora-geral
da República
1 de novembro
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu à Polícia Federal que investigue as denúncias de Curicica contra a DH, o que passa a ser chamado de "a investigação da investigação"
19 de dezembro
O MPRJ e a DH romperam relações por divergências na condução do caso: cada um passou a seguir uma linha de investigação
2019
22 de janeiro
A operação Os Intocáveis, realizada pelo Gaeco com o apoio da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil prende milicianos da comunidade de Rio das Pedras; inclusive suspeitos de integrar o grupo de matadores de aluguel denunciado por Curicica
12 de março
O Gaeco chega a Ronnie Lessa

Lessa era 'ficha-limpa'

Policial nunca foi investigado e vivia de forma discreta
. Foto: Editoria de arte
. Foto: Editoria de arte

Até a operação desta terça-feira, Ronnie Lessa era considerado ficha-limpa:  não era alvo de qualquer investigação. Nos bastidores da polícia, no entanto, o nome do sargento reformado, de 48 anos, é associado a crimes sob encomenda. Sua fama é de eficiência no gatilho e frieza na ação. Egresso dos quadros do Exército, Lessa foi incorporado à Polícia Militar do Rio em 1992, atuando principalmente no 9º BPM (Rocha Miranda). Depois foi adido (cedido) na Polícia Civil, trabalhando na extinta Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (DRAE) - atual Desarme -, na Delegacia de Repressão a Roubo de Cargas (DRFC) e na extinta Divisão de Capturas da Polinter Sul.

A experiência na Polícia Civil foi o motor da carreira mercenária de Lessa. A prática de cessão de PMs para a Polícia Civil começou no início dos anos 2000, quando o Rio ainda enfrentava uma onda de sequestros irrompida na década anterior. A primeira leva, transferida para a Divisão Anti-Sequestro (DAS), forjou outros nomes que posteriormente fariam fama no mundo do crime, como o do sargento da reserva da PM Geraldo Antônio Pereira, o Pereira; e o sargento Marcos Vieira de Souza, o Falcon, ex-presidente da Portela - ambos foram assassinados em 2016.

O próprio Orlando de Oliveira Araújo, o Orlando da Curicica, apontado inicialmente como principal suspeito da morte da vereadora, é oriundo da DAS. No caso dele, como já havia sido expulso pela Polícia Militar, atuava como informante da delegacia. Andava em viaturas da polícia, além de portar armas, inclusive fuzis.

Lessa, como outros cedidos, conhecia mais das ruas do que qualquer policial civil. Logo, destacou-se e ganhou respeito pela agilidade e pela coragem na solução dos casos. Essa fama, comenta-se nos bastidores da polícia, chegou aos ouvidos do contraventor Rogério Andrade, na época cada vez mais empenhando em fortalecer o seu exército numa sangrenta disputa territorial com o também contraventor Fernando Iggnácio de Miranda. Em jogo, o legado do bicheiro Castor de Andrade, morto em 1997.

Arregimentado por Andrade, Lessa não demorou a crescer na organização e a ocupar o destacado posto de homem de confiança do chefe.  Até que, em abril de 2010, a explosão de uma bomba no carro do bicheiro não apenas matou o filho dele, Diogo Andrade, de 17 anos, como fulminou a credibilidade de Lessa junto ao chefe, por não conseguir protegê-lo, assim como sua família.

Chama a atenção que o método de detonação da bomba usada no atentado que matou o filho do contraventor, segundo peritos da época, foi o mesmo usado no atentado ao sargento da PM, em 2 de outubro de 2009, quando ele perdeu a perna.  Um laudo do Esquadrão Antibombas da Polícia Civil revelou que para explodir o Toyota Corolla blindado de Andrade foi usado um dispositivo acionado à distância por meio de um telefone celular.

Com a sua reforma por invalidez, Lessa acabou deixando de ser adido, mas ainda frequentava as delegacias da Polícia Civil, principalmente a antiga Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (DRAE). Até que, em 2011, ciente da migração dos adidos para as fileiras do crime, a Secretaria de Segurança do Estado vetou em definitivo a cessão de quadros da PM para a Polícia Civil e acabou com a DRAE. A medida foi resultado da Operação Guilhotina da Polícia Federal, que investigou a corrupção policial envolvendo policiais civis e os adidos, além de integrantes da cúpula da instituição.

Com as portas fechadas na polícia, o ambiente mafioso tornou-se um caminho sem volta para Lessa. A mira certeira, decisiva para a expansão territorial de Rogério Andrade, foi também o passaporte do ex-sargento para a organização criminosa formada por matadores de aluguel, considerada mais temida e eficiente do Rio. Num cenário em que o dinheiro da corrupção garantia a impunidade destes mercenários, Lessa nem sequer se dava ao trabalho de agir às sombras. Para agenciá-lo, bastava dar uma passada no bar onde o ex-adido fazia ponto no Quebra-Mar, na Barra da Tijuca.

Uma opinião unânime assombra os que conheceram Lessa pessoalmente. Há quem diga que ele é capaz de tudo para cumprir as empreitadas criminosas, sem medir as consequências. Hábil no manejo principalmente de fuzis, é conhecido por gostar de atirar sentado, embora uma prótese moderna disfarce bem o problema físico quando em pé. Jamais volta para a base sem ter cumprido o que fora acertado com o contratante.

É esse homem que, agora, a polícia pretende levar para o banco dos réus como o principal acusado da morte de Marielle e Anderson.

Homenagem pelos 'bons serviços prestados'

Lessa recebeu moção do deputado estadual Pedro Fernandes, avô do atual Secretário estadual de Educação
'Militar discreto, mas eficaz', diz moção dada pelo deputado Pedro Fernandes Foto: Editoria de arte
'Militar discreto, mas eficaz', diz moção dada pelo deputado Pedro Fernandes Foto: Editoria de arte

Extremamente operacional, Ronnie Lessa encontrou no 9º BPM (Rocha Miranda) a unidade perfeita para o seu perfil. Afinal, o batalhão,  nos idos de 1992, tinha fama de ser violento, aparecendo com frequência nas manchetes de jornal. Não é à toa que os policiais que davam serviço naquela época eram conhecidos como “Cavalos Corredores”. Foi da unidade de Rocha Miranda que saíram os PM condenados pela chacina de Vigário Geral, em 1993, quando 21 pessoas — oito delas evangélicos de uma mesma família — foram executadas.

Na época, o batalhão tinha praticamente todo o seu efetivo com casos de auto de resistência, situação que ganhou o holofote justamente por causa do massacre. Ronnie Lessa ainda era soldado e se integrava aos colegas. Sua guarnição era uma das campeãs de louvores da corporação pelas operações que incluíam a apreensão de armas e drogas, o estouro de locais de endolação de drogas e prisões. O chefe do grupo era um capitão que inclusive ainda é lembrado nos dias de hoje como um dos três oficiais mais operacionais que passaram pelo Batalhão de Operações Especiais (Bope): Cláudio Luiz Silva de Oliveira. Do público em geral, hoje ele é conhecido como o tenente-coronel Cláudio, condenado a 36 anos de prisão como mandante do assassinato da juíza Patrícia Acioli, em 2011. Ele cumpre pena na Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte.

Suspeito recebia muitos elogios
Ronnie Lessa e sua guarnição, quase sempre formada pelos mesmos integrantes, eram parabenizados duas vezes por mês, em média
Relação com
o caso Patrícia Acioli
O tenente coronel Claudio Oliveira foi condenado a 36 anos de prisão pelo assassinato da juíza em 2011
Suspeito recebia
muitos elogios
Ronnie Lessa e sua guarnição, quase sempre formada pelos mesmos integrantes, eram parabenizados duas vezes por mês, em média
Relação com o caso
Patrícia Acioli
O tenente coronel Claudio Oliveira foi condenado a 36 anos de prisão pelo assassinato da juíza em 2011

Era um louvor por mês, sendo que, em 1997, no mês de março houve duas menções. Mas a PM não havia mais espaço para Lessa que junto com outros colegas da mesma guarnição passaram a dar serviço nas delegacia especializadas do Rio, como as que cuidavam de roubos de cargas - justamente porque a maioria dos alvos era de favelas da área do quartel de Rocha Miranda, que a guarnição conhecia bem -, de capturas de presos (Polinter) e para coibir os sequestros.

Entre os colegas que seguiram com Lessa estão: Roberto Oliveira Dias, conhecido como Beto Cachorro; e os irmãos Ivan Jorge Evangelista de Araújo e Floriano Jorge Evangelista Araújo.Todos foram investigados na Operação Guilhotina, deflagrada pela Polícia Federal que apurava a corrupção policial na Polícia Civil. Lessa conseguiu não foi indiciado na época.

discreto mas eficaz
O então deputado estadual Pedro Fernandes (PSD), avô do secretário estadual de educação, de mesmo nome, homenageou Lessa por ser um "brilhante exemplo" para a corporação
discreto mas eficaz
O então deputado estadual Pedro Fernandes (PSD), avô do secretário estadual de educação, de mesmo nome, homenageou Lessa por ser um "brilhante exemplo" para a corporação
“Solicito à Mesa Diretora, nos termos regimentais, MOÇÃO DE CONGRATULAÇÕES, APLAUSOS E DE LOUVOR ao 3º Sargento PM RONNIE LESSA[...]”

Lessa também recebeu moção do deputado estadual Pedro Fernandes (PSD), em 23 de novembro de 1998, avô do atual secretário de Educação Pedro Fernandes. Fernandes destacou na época: “a maneira como vem pautando sua vida profissional como policial-militar do 9º BPM. Sem nenhum constrangimento posso afirmar que o referido militar é digno desta homenagem por honrar, permanentemente, com suas posturas, atitudes e desempenho profissional, a sua condição humana e de militar discreto mas eficaz.

Constituindo-se, deste modo, em brilhante exemplo àqueles com quem convive e com àqueles que passam a conhecê-lo. Por tudo isto, sinto-me orgulhoso e honrado ao propor esta moção de louvor”.

Acesso à nuvem: um grampo moderno

Entenda como é feita a obtenção dos dados
. Foto: Editoria de arte
. Foto: Editoria de arte

Empresas provedoras de sites de busca ou redes sociais, como Google, Apple, Whatsapp e Facebook, entre outras, hoje são extremamente importantes no auxílio a investigações complexas como esta, em que a polícia precisa agir de forma silenciosa e sequer tem acesso físico ao celular dos suspeitos. Ao descobrir o login de acesso do investigado a determinado aplicativo, a polícia, com uma ordem judicial, tenta junto à empresa recuperar os dados de atividade e possíveis backups salvos em nuvem - ambiente totalmente digital e on-line. Uma busca minuciosa por descuidos - normalmente raros.

— Hoje para você utilizar seu celular você precisa entrar com uma conta, um login de acesso. E é o backup desta conta que permite que dados, mesmo apagados, possam ser recuperados na nuvem, como históricos de navegação, fotos, e, dependendo do aplicativo, até localização — conta um especialista em computação forense, que prefere não se identificar.

O método é eficaz para encontrar rastros, como os obtidos de Ronnie Lessa, e essa relação entre a polícia e estes provedores tem se estreitado nos últimos anos, de acordo com o técnico. Principalmente porque, cada vez menos, a ligação telefônica tradicional é utilizada - sobretudo por criminosos. No entanto, não há garantia de que todas as informações serão recuperadas, visto que por diversas vezes, usuários optam por não salvar os dados em nuvem ou utilizam um modo de navegação privativa, o que dificulta, ou até impossibilita, esta decupagem.

— É um recurso que ajuda bastante em qualquer investigação. A primeira opção, que permite maior recuperação de dados, sempre é o backup físico, através da custódia do aparelho, mas, não tendo esta condição, esse é o caminho. Costumo dizer que, se a pessoa não quer falar, os dados falam por ela — conclui.

Grupo de matadores por encomenda

Quadrilha ligada à milícia foi apontada por Orlando da Curicica como responsável pela morte de Marielle; na Operação Os Intocáveis, deflagrada em janeiro, foram alvos o major da PM, Ronald Pereira Alves (esq.), então preso, e o ex-capitão do Bope, Adriano Magalhães, que está foragido
Major da PM, Ronald Pereira Alves, preso em janeiro (esq.) e ex-capitão do Bope, Adriano Magalhães da Nóbrega, foragido, foram alvos da Operação Os Intocáveis em janeiro; ambos são suspeitos de chefiar grupo de pistoleiros Foto: Editoria de arte
Major da PM, Ronald Pereira Alves, preso em janeiro (esq.) e ex-capitão do Bope, Adriano Magalhães da Nóbrega, foragido, foram alvos da Operação Os Intocáveis em janeiro; ambos são suspeitos de chefiar grupo de pistoleiros Foto: Editoria de arte

Uma linha imaginária divide o Rio em áreas distribuídas entre os contraventores. Alguns deles, mais ousados, cedem em troca de um aluguel (o que eles denominam “pagar o chão”) acertado por determinada milícia ou tráfico. Para manter seu espaço, os contraventores investem pesado em segurança especializada, geralmente, ex-policiais militares, alguns do Bope. É o caso do ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-integrante da tropa de elite da PM que, depois de expulso da corporação, criou o grupo de mercenários para matar por vultosas quantias.

SAIBA: Operação Os Intocáveis: conheça os alvos e veja como age a milícia que comanda Rio das Pedras

Embora tenham clientes vips na contravenção, a fama de executarem assassinatos quase perfeitos lhes renderam outros fregueses: políticos. As mortes por encomenda passaram a ser frequentes, sem a necessidade de chamar pistoleiros de fora, como acontecia no passado.

Foi a partir da revelação feita ao GLOBO por Orlando de Oliveira Araújo, o Orlando da Curicica - que já foi apontado pela polícia como o assassino de Marielle e Anderson - sobre a existência da organização criminosa, que houve uma reviravolta no caso. Os crimes praticados pela organização criminosa, principalmente a mando da contravenção, seriam encobertos por alguns integrantes da DH Capital em troca de propina.

Curicica afirmou, por meio de uma carta que escreveu de dentro do Penitenciária Federal de Mossoró (RN), que a DH recebia R$ 200 mil por mês, principalmente na época em que o ex-chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, era diretor da Divisão de Homicídios. É o que o miliciano apelidou de “folha do fixo”, sistema no qual os funcionários seriam alguns investigadores da Polícia Civil, incluindo Rivaldo Barbosa. O valor, no entanto, poderia ser maior, quando eles negociavam uma imagem que poderia identificar os assassinos, servindo de prova nos inquéritos.

A informação de Curicica é reforçada pelos inquéritos e processos envolvendo a contravenção. Quase sempre nunca chegam a autoria. O GLOBO teve acesso aos inquéritos dos homicídios do presidente da Portela, Marcos Vieira de Souza, o Falcon; do policial militar Geraldo Antônio Pereira, ambos assassinados em 2016; e da execução, em 2011, de José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, genro do bicheiro Valdomiro Paes Garcia, o Maninho. O contraventor também foi assassinado. Em todos eles, além de a polícia não chegar à autoria,  chama atenção o fato de os inquéritos terem poucas páginas de investigação num único volume.

Para investigar as denúncias de Curicica, que chegaram à Procuradora Geral da República Raquel Dodge, uma força-tarefa da Polícia Federal foi designada. O grupo é formado por agentes e delegados de vários estados. Nos bastidores, comenta-se que fazem “a investigação da investigação”.

Eleita vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL em 2016, com 46 mil votos (a quinta candidata mais bem votada do município), Marielle Franco teve o mandato interrompido por 13 tiros na noite de 14 de março de 2018, num atentado que vitimou também seu motorista Anderson Gomes Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Eleita vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL em 2016, com 46 mil votos (a quinta candidata mais bem votada do município), Marielle Franco teve o mandato interrompido por 13 tiros na noite de 14 de março de 2018, num atentado que vitimou também seu motorista Anderson Gomes Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo