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Rio

Maioria das áreas dominadas pela milícia no Rio já tem pontos de venda de drogas

Parceria criminosa vem sendo chamada de narcomilícia, e já foi mapeada pela polícia em 355 favelas, sub-bairros ou bairros do estado
Na primeira comunidade do Rio controlada por uma milícia, um acordo entre paramilitares e traficantes permitiu a instalação de ponto de venda de drogas num trecho às margens da Lagoa da Tijuca, conhecido como Areal Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo
Na primeira comunidade do Rio controlada por uma milícia, um acordo entre paramilitares e traficantes permitiu a instalação de ponto de venda de drogas num trecho às margens da Lagoa da Tijuca, conhecido como Areal Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo

RIO — Morador de Rio das Pedras há mais de cinco décadas, X. viu a milícia nascer na comunidade de Jacarepaguá, em meados dos anos 1990, com um discurso radical contra as drogas. Era o primeiro exemplo do poder paramilitar na cidade. Ele acompanhou o crescimento das construções ilegais mediante pagamento de taxas, sob a vista grossa do poder público. Conviveu ainda com as disputas pelo controle local e por cargos na política, acompanhadas de assassinatos. Agora, se vê diante de um fato novo, na contramão de tudo que sempre acompanhou de perto: um acordo permitiu que o tráfico se instale num trecho às margens da Lagoa da Tijuca, conhecido como Areal. Relatos sobre o ponto de venda de drogas já chegaram ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público estadual.

O subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, delegado Rodrigo Oliveira, afirma que a maioria das milícias tem hoje algum tipo de associação com o tráfico. Para especialistas em segurança, a união dos dois lados já contaminou todas as áreas dominadas por paramilitares, que ocupam 25% do território da cidade do Rio , segundo uma recente pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, do Disque-Denúncia (2253-1177) e das plataformas Fogo Cruzado e Pista News.

Áreas dominadas: Além de cobrar por ‘gatos’, milícia cria taxa para conta regular de luz e já oferece internet

A parceria criminosa, que vem sendo chamada de narcomilícia, se dá de diferentes formas. Em alguns casos, o próprio paramilitar vende a droga. Em Rio das Pedras, berço da milícia, uma determinada área foi arrendada para traficantes. Essa aliança sequer chegou ao radar da Polícia Civil, que fez um relatório com dados até 2018, apontando a atuação da narcomilícia em 355 favelas, sub-bairros ou bairros do estado, onde moram cerca de três milhões de pessoas. Em 2008, quando não se falava nesse tipo união, a CPI das Milícias da Assembleia Legislativa do Rio levantou que paramilitares atuavam em 160 localidades.

— Venderam o Areal para o pessoal da Praça Seca. Lá, tem boca de fumo, com policial dando cobertura. Botam forró nas ruas às sextas e aos sábados e domingos para vender drogas. É muito barulho, e nenhum carro pode passar — reclama X.

Disputa por imóveis: Idosa de 82 anos está entre as vítimas que tiveram imóvel tomado pela milícia na Zona Oeste

Promotora-chefe do Gaeco, Simone Sibilio afirma que “a narcomilícia vem se expandindo rapidamente”:

— Ela visa ao lucro e tem lógica empresarial. Pode ser comparada à máfia, mas sem a questão familiar.

Mercado do crime
Como as quadrilhas se associaram
Nas áreas dominadas pela milícia
ou
Espaços em seus territórios são vendidos ou alugados para o tráfico vender drogas. O acordo acontece com apenas uma determinada facção
Traficantes são contratados por milicianos para vender drogas em suas áreas ou para fazer cobrança de inadimplentes.
Nas áreas sob o domínio do tráfico
ou
A maior facção do Rio atua, na maioria das favelas que controla, apenas na venda de drogas. Mas algumas como Rocinha e Vidigal já exploram serviços e exigem taxas de comerciantes, como faz a milícia.
Os bandidos adotam práticas da milícia, como a cobrança de taxa de comerciantes.
Os muitos braços da narcomilícia
Tudo começou com a cobrança da “taxa” para proteger a comunidade dos roubos e do tráfico. Hoje qualquer atividade é explorada.
Taxa de segurança de comerciantes e moradores
Controle do transporte alternativo
Exploração da venda de botijão de gás e água mineral
Taxa sobre transações imobiliárias
Fornecimento de TV a cabo clandestina e internet
Cobrança de taxa de moradores que têm imóvel alugado
Invasão de áreas públicas e construção de imóveis para venda ou aluguel
Venda de cestas básicas
Expulsão de moradores para vender os imóveis
Distribuição de energia furtada da Light
Cobrança de taxa sobre o fornecimento de água da Cedae
A divisão de poder
Milícias controlam 57,5% do território do município e onde moram mais de 2 milhões de cariocas, o equivalente a uma área de 686,75 quilômetros quadrados
O tráfico comanda 15,4% da área total, ou seja cerca de 185 quilômetros quadrados
57,5%
15,4%
O avanço
Em 2018, de acordo com o relatório
da CPI das Milícias, esses grupos dominavam
160 localidades
(bairros, sub-bairros ou comunidades)
Crescimento de
120%
Estudo da Secretaria de Polícia Civil mostra
que a narcomilícia avançou até 2018 para
355 localidades
Fonte: “Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro”, feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos
(Geni) da UFF, o datalab Fogo Cruzado, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, a plataforma
digital Pista News e o Disque-Denúncia.
Mercado do crime
Como as quadrilhas de associaram
Nas áreas dominadas pela milícia
Espaços em seus territórios são vendidos ou alugados para o tráfico vender drogas. O acordo acontece com apenas uma determinada facção
ou
Traficantes são contratados por milicianos para vender drogas em suas áreas ou para fazer cobrança de inadimplentes.
Nas áreas sob o domínio do tráfico
Os bandidos adotam práticas da milícia, como a cobrança de taxa de comerciantes.
ou
A maior facção do Rio atua, na maioria das favelas que controla, apenas na venda de drogas. Mas algumas como Rocinha e Vidigal já exploram serviços e exigem taxas de comerciantes, como faz a milícia.
Os muitos braços da narcomilícia
Tudo começou com a cobrança da “taxa” para proteger a comunidade dos roubos e do tráfico. Hoje qualquer atividade é explorada.
Taxa de segurança de comerciantes e moradores
Controle do transporte alternativo
Exploração da venda de botijão de gás e água mineral
Fornecimento de TV a cabo clandestina e internet
Cobrança de taxa de moradores que têm imóvel alugado
Taxa sobre transações imobiliárias
Invasão de áreas públicas e construção de imóveis para venda ou aluguel
Expulsão de moradores para vender os imóveis
Venda de cestas básicas
Cobrança de taxa sobre o fornecimento de água da Cedae
Distribuição de energia furtada da Light
A divisão de poder
Milícias controlam 57,5% do território do município e onde moram mais de 2 milhões de cariocas, o equivalente a uma área de 686,75 quilômetros quadrados
57,5%
O tráfico comanda 15,4% da área total, ou seja cerca de 185 quilômetros quadrados
15,4%
O avanço
Em 2018, de acordo com o relatório
da CPI das Milícias, esses grupos dominavam
160 localidades
(bairros, sub-bairros ou comunidades)
Estudo da Secretaria de Polícia Civil mostra
que a narcomilícia avançou até 2018 para
355 localidades
120%
Crescimento de
Fonte: “Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro”, feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos
(Geni) da UFF, o datalab Fogo Cruzado, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, a plataforma
digital Pista News e o Disque-Denúncia.

Conceito do passado

Rodrigo Oliveira destaca que ficou no passado “a visão quase romântica de que a milícia existe para prover segurança e impedir a existência do tráfico de drogas”:

— Essa ideia se perdeu. O principal interesse dessas quadrilhas é o financeiro.

O levantamento da Polícia Civil diz que a narcomilícia já assumiu Campo Grande, Santa Cruz, Jacarepaguá, Sepetiba, Guaratiba, Taquara, Cascadura, Praça Seca e Bangu. Na Zona Oeste, só Barra e Joá ainda não estão sob o controle dessa associação. A aliança acontece também em Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, Maricá, Rio Bonito, Mangaratiba, Conceição de Jacareí, Angra dos Reis, Tinguá e nos 13 municípios da Baixada.

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Esse avanço sempre deixa um rastro de violência. Em 2017, teve início uma guerra em que a milícia se uniu a uma facção para tomar as favelas da Praça Seca. Em meio a frequentes tiroteios, moradores da região viram os preços de seus imóveis desabarem. Hoje, a narcomilícia toma conta das 13 comunidades da área e cobra todo tipo de taxa.

— Tem dia que é difícil sair de casa. No mês passado, os conflitos diminuíram um pouco, assim como os assaltos. Mas a trégua vai até quando? — indaga um morador de um conjunto habitacional vizinho ao Morro São José Operário.

A rotina de um comerciante da Rua Cândido Benício, a principal do bairro, é cruel:

— Todas as quintas-feiras, entre 14h e 17h, um homem, se passando por cliente, entra na loja e diz: “Boa tarde, chefe, vim buscar a taxa de segurança”.

Formas de lucro: Milícia da Baixada cobra até pela cesta básica que moradores da região compram

Quem mora na região tem que pagar água em dobro: para a Cedae e para a narcomilícia.

— Se a gente não pagar, cortam o cano — conta uma moradora.

Tanta insatisfação começou a provocar um aumento de relatos feitos ao Disque-Denúncia sobre a narcomilícia. Foram 279 , de janeiro a setembro de 2018, contra, em igual período, 393 em 2019 e 394 este ano. Na capital, Campo Grande, Santa Cruz, Recreio, Taquara e Praça Seca estão no topo da lista com mais registros.

Uma das denúncias diz que, numa choperia em Campo Grande, “são promovidos eventos de comemoração da aliança da milícia que atua na localidade com a facção que controla o tráfico”. Outro registro informa que, em Cordovil, onde há traficantes, milicianos “extorquem dinheiro de comerciantes, motoristas de aplicativo e taxistas”, além de realizarem bailes funk “com música em volume altíssimo” e de invadirem terrenos. Em Santa Cruz, numa lanchonete de Antares, acontece de sexta-feira a domingo um baile funk, “com a presença de traficantes e milicianos da tropa do Rodo, fortemente armados, comercializando drogas”.

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Ao longo de mais de duas décadas, a milícia foi mudando de cara. Inicialmente formada por policiais, bombeiros e agentes penitenciários, hoje tem em seus quadros ex-traficantes, como Wellington da Silva Braga, o Ecko, que, a partir de 2017, abocanhou áreas na Zona Oeste e na Baixada.

— Como o tráfico e a milícia, a narcomilícia se instala em áreas abandonadas pelo poder público, onde os serviços deixaram de entrar — diz o ex-comandante da PM Ubiratan Angelo.

Para o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL), que presidiu a CPI das Milícias, não existe, de fato, uma união:

— A milícia cresceu. Passou a dominar lugares do tráfico. É conquista, não é composição. Hoje, um setor do tráfico bate cabeça para a milícia. O crime é uma atividade econômica. O cara pula para a milícia porque é mais rentável, tem menos conflitos e mais acordos. E onde há milícia, tem tráfico.

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O sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da UFRRJ e estudioso das milícias, não usa o termo “narcomilícia”, prefere “consórcio”:

— O tráfico não atua como milícia, mas faz relações com ela. E o Ecko só está solto porque tem informações privilegiadas.

Candidatos são alvos

Já o antropólogo Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado Maior da PM, enfatiza que a comercialização de drogas em todas as áreas de milícia era algo previsível:

— Estamos falando de um mercado altamente lucrativo. A commodity mais rentável do mundo é o grama da cocaína.

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Esquecida nos últimos anos pelas grandes operações, a milícia virou alvo, na semana passada, de uma força-tarefa criada pela Polícia Civil. O subsecretário Rodrigo Oliveira promete mais ações daqui para frente. Segundo ele, a investigação já chegou a candidatos das próximas eleições que teriam acesso exclusivo a áreas da milícia. Pelo menos seis devem ser intimados a depor. Líderes comunitários também serão ouvidos.

A mudança de perfil em 25 anos

  • 1995

A organização da milícia de Rio das Pedras dá os primeiros passos. Nas localidades de São Bento e Pilar, em Caxias, uma quadrilha de paramilitares começa a atuar na venda de terrenos. Em Campo Grande, outro grupo militar passa a controlar o transporte alternativo. Com a participação de agentes de segurança, todos tinham um discurso antitráfico ao cobrar taxa de proteção.

  • No início dos anos 2000

A milícia da Zona Oeste se espalha sob o comando de policiais e políticos. Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, vereador por duas legislaturas, é preso em 2008 acusado de chefiar o grupo. O irmão dele, Natalino José Guimarães, que conquistou uma vaga de deputado estadual em 2006, também vai para a cadeia. Os dois foram soltos em 2018.

  • 2005

O termo milícia ganha força, e os grupos se fortalecem com a exploração do transporte alternativo, o que levou ao crescimento das cooperativas de vans. Outros serviços entram na lista, como a TV a cabo clandestina, e civis passam a integrar as quadrilhas.

Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio Pedras, assume como vereador. Antes, presidia a associação de moradores local. Chegou a ser acusado de ter mandado matar um policial que chefiava a milícia da favela. Ele foi assassinado em junho de 2009.

  • 2015

Uma união mais efetiva entre a milícia e uma facção do tráfico começa a ser costurada quando o então traficante Carlos Alexandre Braga, o Carlinhos Três Pontes, passa a chefiar o maior grupo paramilitar em Campo Grande. Ele morreu em abril de 2017 em uma operação policial. Três Pontes foi substituído por seu irmão, Wellington da Silva Braga, conhecido como Ecko. Os consórcios e as investidas de seu grupo contra a maior facção do tráfico se intensificaram.

  • 2017

Milicianos aliados a uma facção criminosa tomam os morros da Praça Seca. Desde então, iniciam-se confrontos pela retomada dos territórios. Edmilson Gomes Menezes, o Macaquinho, chefia o tráfico local, segundo a polícia. Ele seria ligado ao Ecko.

  • 2017 e 2018

Milícia da Zona Oeste avança sobre a Baixada Fluminense, já sob o comando de Ecko.

  • 2020

Polícia Civil e do Ministério Público do estado apontam que há 355 comunidades e bairros dominados por narcomilícias no estado.