Blog do Helio Gurovitz

Por Helio Gurovitz

Diretor de redação da revista Época por 9 anos, tem um olhar único sobre o noticiário. Vai ajudar você a entender melhor o Brasil e o mundo. Sem provincianismo


Cientistas trabalham em laboratório de nível 4 de biossegurança em Wuhan, na China, em imagem de 2017 — Foto: Johannes Eisele/AFP

Numa conversa por vídeo dias atrás, o infectologista Esper Kallás, da Faculdade de Medicina da USP, soltou uma pergunta provocativa aos participantes: “Se tivessem US$ 1 bilhão para investir no combate à Covid-19, onde apostariam?”. Resposta dele: numa vacina. Reuniria os responsáveis pelas melhores pesquisas em andamento para, em conjunto, resolverem o problema o mais rápido possível. Uma vacina rápida não só salvaria vidas. Permitiria também reabrir a economia sem risco. Seria a vitória do ser humano contra o novo coronavírus.

Por coincidência, US$ 1 bilhão foi quanto a empresa americana Moderna decidiu levantar no mercado acionário poucas horas depois de anunciar resultados promissores na primeira fase de testes com humanos da sua vacina experimental contra o coronavírus Sars-CoV2. Em vez de publicar os resultados numa revista científica, como manda a melhor prática acadêmica, a Moderna soltou na última segunda-feira um comunicado à imprensa, sem dados nem tabelas, afirmando apenas que 8 dos 45 participantes haviam desenvolvido no teste um tipo essencial de anticorpo (o neutralizador).

As ações da Moderna valorizaram mais de 30% – até que, no dia seguinte, a voz da razão se fez ouvir. "Onde estavam os dados do estudo?", perguntaram os cientistas. Como descreveu Helen Branswell em reportagem no site especializado Stat: “Se você pedir a cientistas para ler um artigo, eles vasculharão as tabelas de dados, não os anúncios corporativos. Em ciência, números falam bem mais alto que palavras”. Oito pessoas entre 45 é motivo mais para dúvida que celebração.

Na última sexta-feira, os principais rivais da Moderna na corrida pela vacina – os chineses ligados à empresa CanSino – publicaram na revista médica britânica The Lancet os resultados de seus primeiros testes de segurança e dosagem. Não foi um comunicado à imprensa. Foi um artigo científico revisto por pares, repleto de números e tabelas. Dos 108 participantes na cidade chinesa de Wuhan, 63 desenvolveram os tais anticorpos neutralizadores em níveis considerados promissores. Mas 87% também sofreram algum tipo de efeito colateral (a maioria deles, apenas dor ou vermelhidão).

É verdade, portanto, que os chineses largaram na frente na corrida bilionária pela vacina. Mas isso ainda significa pouco a esta altura. Das cerca de 120 candidatas a vacina registradas na base da Organização Mundial da Saúde (OMS), dez já chegaram à primeira fase de testes clínicos, entre elas as da Moderna e da CanSino. As apostas se dividem em mais de sete técnicas diferentes, cada uma delas com suas vantagens e desvantagens.

Os chineses embutiram o gene responsável por codificar a protuberância na superfície do Sars-CoV2 na estrutura de outro vírus, chamado “adenovírus-5” (Ad5). É uma plataforma já testada. Outras vacinas já foram aprovadas com essa tecnologia, a mais recente contra o Ebola em 2017. Fábricas para produzi-la já estariam em tese até prontas. Mas a técnica já apresentou problemas. Numa vacina contra o HIV, os testes tiveram de ser interrompidos porque a vacina fortalecia o vírus.

A Moderna aposta numa técnica jamais aprovada, chamada “RNA-mensageiro”. A vacina age como se fosse o vírus: embute o próprio código genético em células para despertar a reação imunológica. A principal vantagem é que ela permitiria imunizar milhões de pessoas com a produção de apenas alguns gramas. Mas não há fábrica pronta – um dos motivos para a empresa precisar de US$ 1 biilhão.

Outras vacinas em desenvolvimento usam toda sorte de descoberta da engenharia genética. Das vacinas de DNA que também já demonstraram bons resultados em animais às mais exóticas, com nomes como “sub-unidade de proteína” ou “vetor viral replicante”. Há até as clássicas vacinas de vírus inativado ou atenuado, parecidas com as aplicadas contra a poliomielite.

A pesquisa se beneficia da resposta recentes às crises provocadas por vírus como H1N1, ebola, zika ou chicungunha. No caso da Moderna, a plataforma usada vem de pesquisas contra a sars. O ritual consagrado de aprovação de vacinas costuma ser lento. Leva anos para uma vacina sair dos laboratórios, passar pelas três fases de testes em humanos (segurança, eficácia e viabilidade) e alcançar a produção industrial. Mesmo a vacina contra o ebola, submetida a regras mais rápidas de aprovação, levou cinco anos – e está longe de ser 100% eficaz.

No caso da Covid-19, em que várias tecnologias novas estão em estudo, a ideia é trabalhar em paralelo, realizando testes simultâneos em animais e humanos, ou construindo as linhas de produção simultaneamente aos testes, ainda que não se saiba se eles darão certo.

“Não é certo que as novas plataformas tenham escala ou que a capacidade existente possa produzir vacina em quantidade e rapidez suficientes”, escrevem no New England Journal of Medicine cientistas ligados à Coalizão para Inovações para o Preparo Epidêmico (Cepi), principal grupo internacional de apoio à pesquisa em vacinas. “É, portanto, crítico que também sejam desenvolvidas vacinas usando métodos comprovados, mesmo que possam levar mais tempo até os testes clínicos ou resultar em mais doses.”

Um risco comum no teste de vacinas, em especial nas que mantêm ativo o próprio vírus, é elas piorarem a doença, fenômeno conhecido como “reforço dependente de anticorpos”, já verificado em testes contra dengue, ebola, HIV e um tipo de coronavírus que ataca felinos. Um dos maiores fracassos na história das vacinas ocorreu em 1966, quando uma vacina experimental contra o vírus respiratório sincicial foi ligada à morte de duas crianças que participavam dos testes.

Desenvolver uma vacina em “velocidade pandêmica”, como quer a Cepi, exige sem dúvida criatividade e recursos. Mas é preciso tomar cuidado para que os riscos não superem o benefício. Em artigo sobre o tema na Science, o imunologista Douglas Green resume a questão com uma frase do biólogo Charles Sherr sobre a pesquisa experimental: “Rápido é devagar, e devagar é rápido”. “É uma máxima que deve ser aplicada ao desenvolvimento da vacina para a Covid-19”, diz Green.

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