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Artigo: Racismo e urbanismo nos EUA e no Brasil

Com métodos distintos, os dois países separaram a população negra nas cidades, perpetuando a segregação
Cartaz em Los Angeles onde se lê "Sem Justiça, Sem Paz", durante protesto contra o racismo nos EUA Foto: MARIO TAMA / AFP
Cartaz em Los Angeles onde se lê "Sem Justiça, Sem Paz", durante protesto contra o racismo nos EUA Foto: MARIO TAMA / AFP

No Brasil, há uma ideia repetida de que a segregação é fruto da pobreza, ou seja, uma “expressão” da diferença de classes, e não uma consequência do racismo. Não é bem assim.

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Separar a população negra na cidade foi um modo histórico, mas muito atual, de perpetuar a segregação, gerando apartheids sutis para brancos porém mortais para pretos e pardos. Nesse sentido, EUA e Brasil são muitos distintos no método, mas obtêm resultados similares, com maior violência na realidade brasileira.

Os EUA oficialmente segregaram usando raça como critério para financiamento da casa própria, do zoneamento urbano e da instalação de infraestrutura, como as vias expressas. O chamado redlining (traçar com linha vermelha) é um modo de marcar nos mapas das prefeituras e dos bancos os bairros onde os negros deveriam morar.

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Era política pública e oficial, que buscava tentar igualar as condições de infraestrutura, mas manter separadas as raças. As remoções de slums , nomenclatura inglesa genérica para locais com moradias precárias, levaram populações a serem transferidas para conjuntos habitacionais verticais, os projects , que foram a face social do movimento de remodelação das áreas centrais urbanas nos anos 1950–1960, criando o modelo do distrito central de negócios, com concentração de empregos.

A construção de vias expressas teve função de separar fisicamente os bairros negros, e ao mesmo tempo servir para o deslocamento rápido por transporte individual dos moradores dos novos subúrbios, outra invenção americana, nos seus trajetos cotidianos a esses centros.

Essa engrenagem de racismo, construção civil, mercado imobiliário e industrialização implicou a piora de vida e o empobrecimento da população negra, que obtivera ganhos sociais na primeira metade do século XX, especialmente ao migrar do Sul segregado para o Norte dos EUA.

O movimento dos direitos civis dos anos 1960 foi também fruto desses fenômenos urbanos, e sua vitória política levou a melhorias urbanísticas, nunca consolidadas. Os negros dos EUA ainda têm os piores salários e a maior mortalidade, apesar das conquistas.

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No Brasil, não houve segregação oficial, mas houve total omissão do Estado, nunca tentando integrar, mesmo que paradoxalmente tenhamos uma percepção positiva sobre a condição de “povo mestiço”.

Tal omissão implicou também em segregação, mais brutal até do que a americana, pois até hoje não há infraestrutura nem política habitacional para a população negra.

A origem das favelas, por exemplo, tem origem na ação do Estado brasileiro, no caso a República recém-nascida, ao não oferecer condições às populações libertas da escravidão para se integrarem à vida coletiva com terra, casa e moradia. A partir daí, as favelas se converteram em modo único e exclusivo dos pobres e trabalhadores terem algum acesso à urbanidade. Ampliaram-se, viraram complexos, já receberam investimentos e políticas públicas, mas nunca deixaram de ser estigmatizadas ou foram integradas, pois nunca perderam sua condição original de gueto racial.

Ao mesmo tempo, a República se esforçou em atrair imigrantes europeus pobres, e brancos, com promessa de oferta de terra, casa e prosperidade. Para estes, veio com o tempo a oferecer políticas habitacionais. Na medida em que se convertiam na classe trabalhadora brasileira, foram também o padrão de formulação de políticas urbanas. Nem Brasília (1960) e nem a Barra da Tijuca (1969) tiveram preocupação com habitação social ou transporte público em seus planos urbanísticos.

O contexto brasileiro é ainda mais complexo, pois, ao abraçar a modernidade como modo de inserção no espaço geopolítico mundial, incorporamos também o pensamento eugenista dominante na primeira metade do século 20. No Brasil, devido à abordagem não aberta sobre o racismo, a eugenia influenciou até artistas e intelectuais, que viam no embranquecimento da população um caminho para o progresso.

O racismo talvez pareça mais evidente nos EUA pois atua na esfera pública, com tensão, violência, mas também com debate franco e honesto. No Brasil, a estratégia envergonhada não oferece espaços de diálogo e portanto de enfrentamento do problema, o que também é conveniente e confortável para manter o status quo, para continuar gerando guetos e para tornar invisível a população negra e parda e suas justas reivindicações.

Em ambos os casos, não há como reparar esta chaga americana sem promover integração nas cidades.

*Washington Fajardo é arquiteto e urbanista ARTIGO_RACISMO_05/06