Carreira
Group CopyGroup 5 CopyGroup 13 CopyGroup 5 Copy 2Group 6 Copy
PUBLICIDADE

Por Lucy Kellaway


Segunda-feira, 16 de março. Na minha frente, há 30 crianças de 14 anos vestindo impecáveis paletós cinzas, com as cabeças curvadas sobre seus trabalhos. É quase Páscoa e esta é sua avaliação da primavera.

Há silêncio na sala, quebrado apenas pela fricção dos lápis. Olho para meus alunos e sinto um pouco o que costumava sentir quando meus próprios filhos estavam sonolentos. Há algo doce neles quando estão em silêncio. Uma garota estudiosa levanta a mão. “Senhorita, devo fazer o gráfico a lápis ou a caneta?” “Xiu”, digo. “Sem perguntas depois de iniciada a prova.” Tudo está normal, e é meu trabalho garantir que tudo continue assim. A escola nos disse que, além de encorajar a desinfecção das mãos, tudo deve ficar como sempre.

Mas a situação não está como sempre. Olho para a prova, com perguntas econômicas que faziam sentido há um mês. Quais das seguintes alternativas causaria um deslocamento para a esquerda na curva da demanda por refeições de restaurante: 1. Um aumento na renda. 2. Um aumento no preço das refeições. 3. Uma queda no preço das entregas. E não tem opção 4) Coronavírus - que está acabando com os restaurantes tão rapidamente quanto com idosos e enfermos.

Tirando as aulas, a situação começa a desmoronar. De manhã, um colega tossiu duas vezes enquanto ligava o computador. Dois outros professores no minúsculo escritório que dividimos disseram a ele que fosse para casa. Dez minutos depois, ele estava em sua bicicleta; não o veremos por um bom tempo.

O mundo está se dividindo em dois, não apenas entre os que se autoisolam e os mais relaxados, mas entre os ansiosos e os fleumáticos. A ansiedade parece mais desenfreada entre os jovens. Alguns amigos dos meus filhos na faixa dos 20 anos têm estocado alimentos há semanas e esterilizado tomadas a cada vez que passam por elas.

Um jovem colega professor está compreensivelmente preocupado com a mãe, que tem câncer, enquanto ela continua a trabalhar e a entrar e sair de lojas. Em sua maioria, os professores estão calmos (mais ou menos). Não há nada mais tranquilizador do que fazer o normal. Ficar em casa pode restringir a disseminação do vírus, mas tem causado uma epidemia de ansiedade - que transborda quando alguém se aventura a ver o que se fala on-line.

Quanto a mim, tenho sido teimosamente fleumática. Constitucionalmente e por criação, reajo pouco a qualquer alerta de saúde pública e, embora desta vez esteja ficando cada dia mais difícil, continuo tentando. Na segunda-feira anterior (que agora parece outro mundo), eu disse a esta mesma turma que a reação do mundo ao coronavírus seria vista como o maior exemplo de mau gerenciamento econômico ao longo de suas vidas e que os pobres seriam os que mais sofreriam. Mostrei-lhes as terríveis notícias de jornal: falta de papel higiênico, ações em queda livre, empresas aéreas colapsando. Naquela altura, o vírus havia matado 3,8 mil pessoas no mundo, enquanto a gripe mata 650 mil pessoas por ano e, só no Reino Unido, a má qualidade do ar provoca a morte precoce de cerca de 30 mil.

“Senhorita”, protestou um de meus alunos mais brilhantes, “ouvi que 80% da população vai contraí-lo”. Eu o interrompi. “Não, não vai. O assessor médico chefe disse que esse era o pior cenário. E, mesmo ele, não tem certeza disso e, portanto, não deveria estar assustando a todos.”

O 9º ano parece ter engolido. O fato de que não sou epidemiologista e tirei C em biologia na universidade não conta. Para eles, sou a professora, suma autoridade em qualquer coisa de economia, um oráculo para tudo. Na mesma noite, encontrei uma amiga que parece não me ver assim. Expus meu argumento e ela destacou que a única pessoa que via a situação do mesmo jeito era Donald Trump. Infelizmente, dois dias depois ele cedeu. Proibiu todos os voos da Europa - o que me deixou meio exposta.

Naquela noite, me ligaram do programa “Today” para saber se gostaria de ir à rádio falar sobre o trabalho remoto para o professor. “Não”, disse. Gostaria de falar sobre como é dever do professor estar na escola educando seus pupilos. Quando ouvi que Boris Johnson manteria as escolas abertas, comemorei. Fiquei impressionada por sua ousadia, embora isso significasse certo custo pessoal para mim.

Na quinta-feira é dia de aulas de educação pessoal, social e de saúde, na qual os alunos aprendem sobre crime, dinheiro e seus corpos - e temo precisar mostrar aos alunos como se coloca um preservativo em uma banana. Seria capaz de extremos para fugir disso - mas nada como fechar as escolas.

É hora do almoço na segunda-feira e vou até a padaria Gail’s para me animar com um doce de preço abusivo. O local está lotado; os profissionais têm trabalhado em casa para não infectar o escritório e, em vez disso, estão infectando-se na Gail’s. Não seria assim por muito mais tempo. Por volta das 17h, estamos assistindo a entrevista coletiva diária dos líderes governamentais e, desta vez, não comemoro. Boris Johnson diz para evitarmos pubs, clubes e salas de cinema e teatro - uma mensagem nada animadora para os professores. Tudo bem que lecionemos em salas lotadas, tocando corrimões pelos quais 800 crianças passaram as mãos, mas não está bem ir a um pub vazio depois do trabalho?

Terça-feira, 17 de março. A atmosfera na escola mudou. As reuniões agora são diárias. Nesta manhã, 11 professores estão fora. Somos instruídos a preparar lições para duas semanas para os alunos, no caso de precisarmos fechar. Começo a trabalhar na tarefa com o coração pesado. As crianças com pais zelosos vão fazer qualquer coisa que eu pedir, mas os mais relaxados não vão fazer nada.

Posteriormente, em minha turma do 11º ano, quatro deixaram de fazer a lição de casa. Por um momento, me pergunto se há sentido em deixá-los de castigo depois da aula quando as notícias da manhã informavam que 250 mil pessoas no Reino Unido podem estar para morrer. A resposta: sim, faz sentido. Aplicar retenções nunca foi tão reconfortante. A caminho da impressora, encontro com o diretor, que tem uns 20 anos a menos que eu. “Legal de sua parte ter vindo”, diz. Olho para ele sem entender e ele explica que estou na categoria de alto risco em razão da idade. Começo a protestar dizendo que as estatísticas de mortalidade para pessoas na faixa de 60 anos em boas condições de saúde são excelentes, mas ele começa a rir. Se meu chefe faz piada, então talvez tudo venha a ficar bem.

Quarta-feira, 18 de março. A escola ainda está aberta, mas agora são 17 professores fora. Mais de 30% dos alunos também não apareceram - os que vieram parecem estar no piloto automático. Um anúncio sairia às 17h e nos reunimos para saber. Eu paro de dar notas às provas, já que não vejo sentido. A ansiedade, enfim, chegou a mim; meu fôlego repentinamente parece curto e eu tusso. Às 17h19, chega a notícia: as escolas fecharão na sexta-feira. Não há nenhum lado bom na situação. E ainda há o risco dos preservativos e bananas amanhã.

Lucy Kellaway é editora colaboradora do "Financial Times" e cofundadora da Now Teach

Mais recente Próxima Call centers não conseguem oferecer trabalho remoto para todos

Agora o Valor Econômico está no WhatsApp!

Siga nosso canal e receba as notícias mais importantes do dia!

Mais de Carreira

Carreira

Hábitos rotineiros e até alimentação podem influenciar qualidade do sono

8 dicas para acordar mais disposto para trabalhar

Carreira

Estudo aponta oito tendências para o Brasil, incluindo um foco maior na gestão de pessoas

O que os conselhos devem olhar de perto em 2024

Carreira

Confira as movimentações executivas da semana

Huawei tem novo CEO no Brasil

Carreira

O colunista Claudio Garcia afirma que agilidade e produtividade não aumentam quando realizamos ‘multitarefas’

O que de significativo você faz em 47 segundos?

Carreira

A primeira razão é pelo desenvolvimento na carreira, que surge antes da questão financeira

Um em cada quatro profissionais quer trabalhar em outro país

Carreira

Pesquisa exclusiva com 4,6 mil executivos no Brasil mostra demanda por postos na área de finanças

Os cargos de diretoria mais procurados em 2024

Carreira

"Horário nobre" de desempenho varia de pessoa para pessoa, mas é possível treinar o corpo e a mente para produzir mais

Qual é o melhor horário para trabalhar? Especialistas respondem

Carreira

Regulamentado em março, texto deve impulsionar ações para que os ambientes organizacionais sejam menos tóxicos, mas critérios ainda são vagos e requerem maturação

Nova lei da saúde mental: entenda como vai funcionar

Carreira

CLT garante direitos diferentes para cada tipo de desligamento

O que recebo se eu pedir demissão? Veja quais são os direitos dos trabalhadores