Exclusivo para Assinantes
Rio

Operação Os Intocáveis: conheça os alvos e veja como age a milícia que comanda Rio das Pedras

Prisões preventivas foram autorizadas pela Justiça para deter organização criminosa que pode ter ligação com o assassinato de Marielle Franco
Imagem Foto: Editoria de Arte
Imagem Foto: Editoria de Arte

RIO — Quando a milícia de Rio das Pedras surgiu, em meados do ano 2000, havia a visão romântica de que os paramilitares estavam lá para proteger os 55 mil moradores do lugar. Se, naquela época, a comunidade já ocupava a posição de terceiro maior aglomerado urbano do país, de acordo com o Censo do IBGE de 2010, hoje a favela se agigantou ainda mais. Motivo: a exploração imobiliária ilegal nas mãos de milicianos, imposta pelo terror, eliminando quem atravessa seu caminho. Como donos da região, eles se transformaram na organização criminosa mais temida do estado. De suas vísceras, brotou a mais letal e secreta falange de pistoleiros da cidade. Integrantes de ambas, da milícia e do escritório, são o alvo da operação desencadeada nesta terça-feira pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

Parceria do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-RJ com a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) e a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil , a Operação Os Intocáveis, batizada com esse nome, justamente porque ninguém ousava investigá-la, atinge em cheio o núcleo duro do grupo, que foi revelado pelo GLOBO em reportagem publicada em 19 de agosto do ano passado. Fazem parte da cúpula do grupo o ex-capitão do Batalhão de Operações Especializadas (Bope) Adriano Magalhães da Nóbrega e o major da ativa da Polícia Militar Ronald Paulo Alves Pereira . Os dois estão entre os 13 mandados de prisão preventiva expedidos pela 4º Tribunal do Júri. O major Ronald foi preso na manhã desta terça-feira. Adriano está sendo procurado pela polícia.

ESPECIAL: Pelo menos 19 homicídios ligados à contravenção e ao mundo do samba não foram elucidados pela Delegacia de Homicídios da Capital

Além de explorar atividades no ramo da construção civil e outras típicas da milícia como cobranças de serviços como “gatonet”, transporte alternativo e taxas de proteção, a cúpula do grupo é suspeita de autoria de uma sequência de homicídios ligados a disputas da contravenção cujos inquéritos adormecem em escaninhos da Polícia Civil e da Justiça.

Operação é desdobramento das investigações do Caso Marielle Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Operação é desdobramento das investigações do Caso Marielle Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

O fio da meada para se atingir o coração da milícia mais antiga do Rio foi justamente a investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes . Foi nas imediações da favela, na Estrada do Itanhangá, que uma câmera de trânsito flagrou o Cobalt prata dos assassinos da parlamentar passando pelo local, antes da emboscada, no dia 14 de março do ano passado. Durante a investigação do caso, as promotoras do Gaeco e da 23ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal (PIP) concluíram que estavam diante da mais violenta organização criminosa do estado.

As equipes foram às ruas para cumprir, ao todo, 63 medidas cautelares autorizadas pelo Judiciário, entre as quais as 13 prisões. Além dos chefes do grupo, a lista levada à Justiça pelo Gaeco inclui os cabeças da milícia de Rio das Pedras: o subtenente reformado da PM, Maurício Silva da Costa, o Maurição , e Jorge Alberto Moreth, conhecido como Beto Bomba , dirigente da Associação de Moradores de Rio das Pedras.

Os investigadores estão convencidos de que Rio das Pedras, um dos principais enclaves milicianos da Região Metropolitana, em Jacarepaguá, era usado como quartel-general do Escritório do Crime. É de conhecimento geral de policiais e do submundo do crime que o grupo tinha como atribuição principal matar sob encomenda. Com o aprofundamento das investigações, o MP do Rio descobriu que a organização tinha outras frente de atuação.

As medidas cautelares foram encaminhadas pelo Gaeco à Justiça junto com a denúncia contra os envolvidos. Nela, eles são acusados do homicídio de um cúmplice, Júlio de Araújo , em 2015. A vítima integrava a organização criminosa. Segundo a denúncia, a apuração, corroborada com informações do Disque Denúncia, comprova o domínio da facção na região.

A estrutura da quadrilha era bem segmentada, com funções definidas. Todos os integrantes ocupavam funções estratégicas para o funcionamento da engrenagem da máquina de fazer dinheiro que se transformou as atividades da milícia. Arvorando-se em poder paralelo do Estado, os milicianos se envolveram em grilagem de terras, construção civil, ramo imobiliário com venda e locação ilegal de imóveis, receptação de carga roubada — principalmente de cigarros oriundos do Paraguai —, posse e porte ilegal de arma e extorsão de moradores e comerciantes.

Na denúncia, as promotoras encontraram fortes indícios da prática do crime de lavagem de dinheiro, inclusive ocultando os bens adquiridos dos “intocáveis” “capitão Adriano” — como é chamado na comunidade — e major Ronald, provenientes das atividades ilícitas que comandavam. Para isso, abriam mão de um exército de “laranjas” — pessoas que emprestam seus nomes para esconder a origem do dinheiro obtido de atividades ilegais.

Conversas entre milicianos comprovam o poder da organização

Interceptações telefônicas mostram perversidade da milícia de Rio das Pedras
. Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
. Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Nas interceptações telefônicas autorizadas pelo juiz Gustavo Kalil, da 4ª Vara Criminal — que também é responsável pelo caso Marielle —,  é possível ver o respeito que os milicianos do segundo escalão têm pelo capitão Adriano. Num dos trechos, o contador da quadrilha, Manoel de Brito Batista, o Cabelo , chama o ex-militar de “Patrãozão”.

Em algumas conversas, sobressai a perversidade da milícia de Rio das Pedras. O mesmo contador dá ordens para um cúmplice mutilar um morador da comunidade: “e você fala pro João que o Aurélio acabou de me falar aqui que ele falou que vai cortar os cabos lá no Pinheiro, se ele cortar, eu vou cortar os dois braços dele e as duas pernas (sic)”.

Conversas revelam poder e violência
do grupo criminoso
Durante a investigação, o Ministério Público do Rio interceptou gravações de conversas telefônicas com autorização judicial, que revelam a hierarquia da quadrilha e o domínio exercido por meio da força e da violência em Rio das Pedras.
Diálogo 1
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 15/11/2018, às 16h57m23s
Outro
integrante
Manoel
Dois integrantes falam sobre os negócios imobiliários em Rio das Pedras com a imposição da força. Um deles manda mutilar uma pessoa que ameaça cortar cabos de luz:
Manoel
Tenho oito apartamentos naquele prédio. O resto é tudo do Adriano e do Maurício, entendeu? Você procura ele (sic) e fala com ele, entendeu? Não adianta ficar me mandando mensagem. E você fala pro João que o Aurélio acabou de me falar aqui que ele falou que vai cortar os cabos lá no Pinheiro.
(....)
Se ele cortar os cabos meu lá (sic), vai ser diferente, porque eu vou cortar as duas pernas dele e os dois braços.
Diálogo 2
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 19/10/2018, às 15h22m52s
Voz
masculina
Julio
O poder do capitão Adriano na organização fica evidenciado na conversa interceptada em telefonema de Júlio Serra, que atua como tesoureiro do grupo:
Voz
masculina
Já resolveu lá já. A gente tá resolvendo, tá? Ele falou pra tu (sic) não me cobrar mais não.
Julio
Tá resolvendo?
Voz
masculina
A gente tá resolvendo, a gente fez uma negociação lá, ele mandou um áudio pra tu (sic) aí dizendo.
Julio
Mandou não.
Voz
masculina
Então não sei. Pode perguntar para ele.
Julio
Qual foi o acordo?
Voz
masculina
O que acontece? Ele vai conversar com o Adriano, que é o Patrãozão, né?
Diálogo 3
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 25/10/2018, às 14h58m47s
Manoel
Pirata
A investigação do MP do Rio constatou a violência de ações do grupo criminoso em várias conversas interceptadas:
Pirata
Oi.
Manoel
Vai lá em frente à loja do João. Lá, tem um carro parado. Tá atrapalhando o caminhão, entendeu? Não tem nem uma saída. Eu tô aqui na Barra. Vai lá. Se o carro tiver lá no meio, leva a empilhadeira e tira ele do meio lá e taca fogo nele.
Pirata
De frente do depósito do?
Manoel
Lá em frente o João da Domini.
Diálogo 4
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 07/11/2018, às 18h34m12s
Manoel
Bruno
Revela que a quadrilha tinha informantes em instituições públicas, que avisavam sobre as ações de fiscalização:
Manoel
Tá sabendo que tem alguma coisa amanhã?
Bruno
Não, não to sabendo não.
Manoel
Acabou de me ligar aqui que vai ter.
Bruno
Onde?
Manoel
Muzema e Rio das Pedras. Falou que não é. É p@%&*, hein.
Bruno
O quê?
Manoel
Falou que é Inea e Prefeitura.
Bruno
Eu não aguento não, mano.
Manoel
Inea e Prefeitura. Falou que os cara são do c@%&*.
Diálogo 5
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 25/10/2018, às 21h38m51s
Voz
masculina
Manoel
Mostra a relação do bando com um deputado, inclusive com a entrega de caixas de uísque como presente de Natal.
Manoel
Mandei um negócio pra você. O Bruno te deu ou desviou no caminho?
Voz
masculina
Me deu, pô.
Manoel
Valeu, eu pensei que ele tinha desviado.
Voz
masculina
Tamo junto (sic), obrigado.
Manoel
Foi um deputado que me deu quatro caixas de uísque. Eu dei uma pro Maurício, dei uma pro Fininho, tem duas aqui.
Fonte: Denúncia do MP-RJ
Conversas revelam
poder e violência
do grupo criminoso
Durante a investigação, o Ministério Público do Rio interceptou gravações de conversas telefônicas com autorização judicial, que revelam a hierarquia da quadrilha e o domínio exercido por meio da força e da violência em Rio das Pedras.
Diálogo 1
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 15/11/2018, às 16h57m23s
Outro
integrante
Manoel
Dois integrantes falam sobre os negócios imobiliários em Rio das Pedras com a imposição da força. Um deles manda mutilar uma pessoa que ameaça cortar cabos de luz:
Manoel
Tenho oito apartamentos naquele prédio. O resto é tudo do Adriano e do Maurício, entendeu? Você procura ele (sic) e fala com ele, entendeu? Não adianta ficar me mandando mensagem. E você fala pro João que o Aurélio acabou de me falar aqui que ele falou que vai cortar os cabos lá no Pinheiro.
(....)
Se ele cortar os cabos meu lá (sic), vai ser diferente, porque eu vou cortar as duas pernas dele e os dois braços.
Diálogo 2
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 19/10/2018, às 15h22m52s
Voz
masculina
Julio
O poder do capitão Adriano na organização fica evidenciado na conversa interceptada em telefonema de Júlio Serra, que atua como tesoureiro do grupo:
Voz
masculina
Já resolveu lá já. A gente tá resolvendo, tá? Ele falou pra tu (sic) não me cobrar mais não.
Julio
Tá resolvendo?
Voz
masculina
A gente tá resolvendo, a gente fez uma negociação lá, ele mandou um áudio pra tu (sic) aí dizendo.
Julio
Mandou não.
Voz
masculina
Então não sei. Pode perguntar para ele.
Julio
Qual foi o acordo?
Voz
masculina
O que acontece? Ele vai conversar com o Adriano, que é o Patrãozão, né?
Diálogo 3
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 25/10/2018, às 14h58m47s
Manoel
Pirata
A investigação do MP do Rio constatou a violência de ações do grupo criminoso em várias conversas interceptadas:
Pirata
Oi.
Manoel
Vai lá em frente à loja do João. Lá, tem um carro parado. Tá atrapalhando o caminhão, entendeu? Não tem nem uma saída. Eu tô aqui na Barra. Vai lá. Se o carro tiver lá no meio, leva a empilhadeira e tira ele do meio lá e taca fogo nele.
Pirata
De frente do depósito do?
Manoel
Lá em frente o João da Domini.
Diálogo 4
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 07/11/2018, às 18h34m12s
Manoel
Bruno
Revela que a quadrilha tinha informantes em instituições públicas, que avisavam sobre as ações de fiscalização:
Manoel
Tá sabendo que tem alguma coisa amanhã?
Bruno
Não, não to sabendo não.
Manoel
Acabou de me ligar aqui que vai ter.
Bruno
Onde?
Manoel
Muzema e Rio das Pedras. Falou que não é. É p@%&*, hein.
Bruno
O quê?
Manoel
Falou que é Inea e Prefeitura.
Bruno
Eu não aguento não, mano.
Manoel
Inea e Prefeitura. Falou que os cara são do c@%&*.
Diálogo 5
GRAVAÇÃO DE CHAMADA
DO DIA 25/10/2018, às 21h38m51s
VOZ
MASCULINA
Manoel
Mostra a relação do bando com um
deputado, inclusive com a entrega de caixas de uísque como presente
de Natal.
Manoel
Mandei um negócio pra você.
O Bruno te deu ou desviou no caminho?
VOZ MASCULINA
Me deu, pô.
Manoel
Valeu, eu pensei que ele tinha desviado
VOZ MASCULINA
Tamo junto (sic), obrigado.
Manoel
Foi um deputado que me deu quatro caixas de uísque. Eu dei uma pro Maurício, dei uma pro Fininho, tem duas aqui.
Fonte: Denúncia do MP-RJ

Numa outra passagem, ele mandar retirar, com uma retroescavadeira um veículo que está impedindo a passagem de carros numa via da comunidade: “Vai lá em frente a loja do João lá, tem um carro parado tá atrapalhando o caminhão entendeu, não tem nem uma saída, eu tô aqui na Barra, vai lá se o carro tiver lá no meio, leva a empilhadeira e tira ele do meio lá e taca fogo nele”.

Neste esquema perverso, a lei é a intimidação que exercem sob os moradores, que ainda têm que aceitar as regras do bando e pagar pelos serviços imposto por eles. São obrigados a pagar até uma taxa de proteção. Este “serviço” chegou a render um jargão no poder paralelo: “ Eu te protejo de mim mesmo ”.

Falsificação de documentos públicos, agiotagem, pagamento de propina a agentes públicos, utilização de ligações clandestinas de energia e água — neste caso, para garantir os serviços dos imóveis negociados pela quadrilha — também fazem parte do rol de ilícitos praticados pela organização criminosa. Há planilhas em anexo, na denúncia, que demonstram o rateio da arrecadação dos criminosos.

Em certo trecho da denúncia, as promotoras explicam o por quê da necessidade em prendê-los: “No mesmo giro, é razoável concluir que se os denunciados não forem presos, continuarão com o domínio territorial e utilização da Associação de Moradores como curral criminoso dos interesses da malta, divisão de dinheiro espúrio e demonstração de força e poder”.

A promotoria ainda ressalta que “a organização criminosa está enraizada de tal maneira na comunidade, que estendeu seus tentáculos à Muzema , sendo certo que conta, ainda, com informações privilegiadas de futuras ações policiais”.

Execução de desafetos serviu de base para a investigação

Assassinato encomendado por Maurício Silva da Costa, o Maurição, em Rio das Pedras, motivou início da investigação
Maurício Silva da Costa, o Maurição Foto: Fábio Guimarães / Agência O GLOBO
Maurício Silva da Costa, o Maurição Foto: Fábio Guimarães / Agência O GLOBO

Para reforçar o pedido de prisão contra a quadrilha, o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) reabriu o inquérito sobre um dos muitos crimes cometidos na comunidade sob o manto da impunidade. Na tarde de 24 de setembro de 2015,  Júlio de Araújo, morador local e integrante do bando, foi morto em casa.

Passados mais de três anos, as novas investigações do Gaeco concluíram que a ordem para matar Júlio partiu do líder da quadrilha local, Maurício Silva da Costa, o Maurição. Um típico caso de queima de arquivo. Preocupado com possíveis rastros deixados por Araújo, que havia assassinado, na madrugada do mesmo dia, outro morador de Rio das Pedras, chamado Jerre Adriano, a mando da organização, Maurição decidiu que o executor também deveria ser eliminado.

A confiança no chefe foi o erro de Araújo. Maurição mandou que seu subordinado voltasse para casa, após a morte de Jerre Adriano , e aguardasse por uma conversa. Enquanto esperava deitado na cama, ele foi surpreendido e morto por três homens chefiados por Fabiano Cordeiro Ferreira, o " Mágico" , um tenente de Maurição.

Depois de adormecer em algum escaninho da Polícia Civil, a morte de Araújo foi parar no centro da Operação Os intocáveis, servindo como um dos trunfos apresentados pelo Ministério Público estadual para obter da Justiça sinal verde para as prisões. Ao reabrir um caso que tinha tudo para cair no esquecimento, as investigações colheram evidências de que Maurição foi o mandante do crime.

Para os investigadores, Araújo morreu porque expôs a quadrilha ao cometer erros na execução de Jerre Adriano. A arma de fogo que usava falhou, obrigando Araújo a abater a vítima a facadas, o que desagradou Maurição. “O crime foi praticado por motivo torpe, como forma de demonstração de força e poder paralelo da organização criminosa atuante na comunidade de Rio das Pedras”, sustenta a denúncia. O crime foi praticado para assegurar, afirma o MP do Rio, a impunidade de Maurição e Mágico em relação ao crime de homicídio de Jerre Adriano, sendo certo que a  Araújo “foi executado na modalidade típica de queima de arquivo”.

Matar sem deixar rastros é justamente a marca registrada desse grupo.

‘Caveira’ temido pela própria polícia fluminense

Adriano Magalhães da Nóbrega
. Foto: Arquivo
. Foto: Arquivo

Ainda jovem, com 17 anos, Adriano Magalhães da Nóbrega nem sonhava em ser um dos homens mais temidos do Rio de Janeiro. Nem tampouco ser o chefe desse grupo, especializado em matar por encomenda. Franzino, morador de uma comunidade no Sampaio, ele ficou frente a frente com policiais do Batalhão de Operações Policiais ( Bope ) numa operação na favela onde morava. Não era bandido, apenas um adolescente curioso, que espiava a incursão da PM por trás de uma cortina. Dali em diante, ele fez sua escolha: queria ser um deles, um "caveira". Assim são chamados os integrantes da tropa de elite, cujo símbolo é uma caveira com um punhal cravado.

Obstinado, anos depois, em 1995, Adriano fez  o concurso para oficiais e ingressou como cadete na Academia de Polícia Militar D. João VI. Começava ali uma carreira militar de sucesso, se não fosse a ganância. Depois dos três anos do curso inicial, não demorou muito para fazer o curso de operações especiais e passar entre os primeiros colocados no Bope. Rotina puxada, de treinamento intenso, que ficou conhecida nas telas do cinema no filme “ Tropa de Elite ”.

Foi no Bope que surgiu a fama de ser um dos mais qualificados que passaram pela fileira. Um colega de turma conta que, como instrutor, fazia a vida dos alunos um inferno. Com outros professores, simulava situações de humilhação ao extremo dos alunos, vigiando-os 24 horas, sem deixá-los dormir.

— Fazia parte da rotina mantermos guarda na madrugada. Ele aparecia do nada na mata, sem fazer um barulho sequer. Parecia um fantasma. Se divertia com os sustos que dava — lembra um de seus alunos, que chegou a sofrer com as “pegadinhas” de Adriano.

Bastou pouco tempo na corporação para que o jovem magro virasse adquirisse músculos talhados, numa rotina de exercícios ao extremo e uma dieta à base de proteína e anabolizantes, o que lhe rendeu o apelido de Urso Polar. Adriano chegou ao posto de capitão e ganhou a admiração, até hoje, por suas qualidades militares, como progredir em campos de difícil acesso, principalmente montanhosos e arenosos, carregando muitos quilos no corpo. Mas é a sua habilidade com armas que chama mais atenção. Ele é exímio atirador.

— Lembro de quando o Bope recebeu caixas com fuzis M16 desmontados. O urso polar foi o primeiro a abrir uma e, em minutos, montou a arma, sem ler manual, só na intuição. Ele é muito inteligente e, por isso, tão perigoso — relembrou um outro colega.

Mas foi a partir da aproximação com o mundo da contravenção que Adriano acabou perdendo o respeito dos colegas. A admiração apenas por ser um soldado completo, porém, que usa suas habilidade para o mal. Passou a aplicar suas destrezas na segurança de bicheiros e na execução dos inimigos deles. Para isso, arrastou consigo vários colegas de turma.

Embora receba as “encomendas” de qualquer um que lhe pague bem, seu principal cliente sempre foi a contravenção, em especial um dos bicheiros considerados mais perigoso por não ser da velha guarda da cúpula do bicho. As ligações perigosas com os bicheiros lhe renderam um conselho de justificação da Polícia Militar — procedimento investigatório para exclusão de oficiais.

Adriano foi demitido pela Secretaria de Segurança em 2014. O motivo: o envolvimento do então capitão e do tenente João André Ferreira Martins na segurança de José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal , conhecido contraventor da máfia dos caça-níqueis , assassinado em um centro espírita de Praça Seca, em Jacarepaguá, na noite de 16 de setembro de 2011. A defesa do ex-oficial chegou a ingressar com vários recursos na Justiça para tentar a reintegração à Polícia Militar, mas não obteve êxito.

Os dois militares também tinham contra eles um mandado de prisão desde 2011, como consequência da Operação Tempestade no Deserto. A operação desarticulou uma quadrilha suspeita de envolvimento em homicídios e outros crimes relacionados a uma disputa de poder pelo patrimônio do contraventor Waldomiro Paes Garcia, o Maninho .

Agora, além de ser o chefe da organização criminosa mais especializada em matar, o que faz com que a polícia fluminense tenha temor, inclusive evitando pronunciar seu nome,  Adriano também dirige o esquema da construção civil ilegal de Rio das Pedras e Muzema, na Zona Oeste. O MP do Rio não tem dúvidas da participação dele, que nas interceptações também aparece com o codinome de “ Gordinho ”. O fato é que o ex-capitão do Bope, “capitão Adriano”, “Gordinho” ou “urso polar” está na mira da promotoria pela primeira vez, suspeito de dezenas de crimes.

Depoimento de Curicica rende investigação na PF

Depoimento de Orlando, de dentro da cadeia no Rio Grande do Norte, mudou rumos da investigação da morte de Marielle Franco
Ex-chefe da milícia de Curicica, na Zona Oeste, Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando de Curicica, em depoimento colhido pelo Ministério Público Federal (MPF), no Presídio Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, disse que Marielle teria sido assassinada pelo
Ex-chefe da milícia de Curicica, na Zona Oeste, Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando de Curicica, em depoimento colhido pelo Ministério Público Federal (MPF), no Presídio Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, disse que Marielle teria sido assassinada pelo "Escritório do crime" Foto: Reprodução

O interesse do MP do Rio na associação dos matadores de aluguel com os milicianos de Rio das Pedras ganhou corpo em agosto passado, quando o ex-chefe da milícia de Curicica, na Zona Oeste, Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica , em depoimento colhido pelo Ministério Público Federal ( MPF ), na Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, disse que Marielle teria sido assassinada pelo “Escritório do crime”.

Revelado com exclusividade pelo GLOBO, em novembro do ano passado, o depoimento de Orlando sustenta ainda que a polícia não movia uma palha para investigar porque os maiores clientes dos matadores seriam os contraventores do jogo do bicho , que pagariam propina para agir livremente. Orlando também é apontado pela Delegacia de Homicídios da Capital ( DH ) como um dos suspeitos da morte de Marielle.

Além das investigações do MP do Rio e da DH Capital no caso Marielle, a Polícia Federal apura as denúncias feitas por Curicica contra a cúpula da especializada. O miliciano  acusa o titular da DH, delegado Giniton Lages — mantido nas investigações pelo atual governo de Wilson Witzel (PSC) — de tê-lo coagido a assumir o crime.

Já contra o ex-chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa , Curicica afirma que ele recebia uma “mesada” de contraventores para não elucidar homicídios praticados a mando deles. O miliciano fez a acusação ao responder a perguntas que O GLOBO lhe fez, autorizadas pela direção do presídio federal.

Barbosa nega veemente a acusação. Por meio de sua assessoria de imprensa, à época, o ex-chefe de Polícia Civil disse que repudia a tentativa de um miliciano altamente perigoso de colocar em risco a investigação.

"O chefe de Polícia Civil, delegado Rivaldo Barbosa, repudia a tentativa de um miliciano altamente perigoso, que responde a 12 homicídios, de colocar em risco uma investigação que está sendo conduzida com dedicação e seriedade. Ao acusado foram dadas amplas oportunidades pela Polícia Civil para que pudesse colaborar com as investigações do duplo homicídio dentro do estrito cumprimento da lei", diz um trecho da nota divulgada em novembro do ano passado.

Como o 'Escritório do crime' prepara seus assassinatos

As ações são compartimentadas, um grupo não sabe o que o outro está fazendo. Só os chefes agregam todas as informações, mantendo em segredo as etapas
Munição usada no assassinato de Marielle e Anderson, UZZ-18, foi a mesma empregada em pelo menos outros três casos ligados aos matadores da organização criminosa Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Munição usada no assassinato de Marielle e Anderson, UZZ-18, foi a mesma empregada em pelo menos outros três casos ligados aos matadores da organização criminosa Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

As revelações de Orlando motivaram ainda o Gaeco a requisitar e reabrir investigações inconclusas, que estavam engavetadas pela Polícia Civil, todas relacionadas a sangrentas disputas territoriais entre contraventores, que envolvem também o mundo do samba, área de entretenimento cobiçada pelos banqueiros do bicho. Pelo conteúdo de poucas páginas e providências mínimas apresentadas em inquéritos e processos, os promotores passaram a suspeitar que o desinteresse na elucidação dessas mortes não foi obra do acaso ou da incompetência policial.

matadores especializados
Conhecido como Escritório do Crime, o grupo é especializado em execuções por encomenda. Seus integrantes são policiais e ex-policiais, entre eles um major da ativa e um ex-oficial do Bope.
a organização escritório do crimE
O grupo de matadores, embora receba “encomendas” de qualquer um que pague bem, tem como principal cliente a contravenção, em especial os bicheiros. Segundo os investigadores, dois homens, ambos ligados à polícia, são suspeitos de integrar a cúpula da organização criminosa:
Ronald Paulo
Alves Pereira
Adriano Magalhães
da Nóbrega
ex-capitão do Bope
major da PM
Logística
Operação
Oficial de 43 anos atuaria, segundo a investigação, na logística do grupo, para que os crimes ocorram sem vestígios.
Ex-policial de 41 anos é apontado pelos investigadores como chefe e um dos criadores do Escritório do Crime.
O grupo
É formado por PMs, ex-PMs e civis.
Área de atuação
A ligação de integrantes do Escritório do Crime com a milícia de Rio das Pedras seria estreita, segundo a investigação. Eles receberiam parte do dinheiro arrecadado com a construção civil ilegal. Muzema também seria um dos locais de atuação.
praça seca
grajaú
freguesia
(jacarepaguá)
flamengo
tijuca
cidade
de deus
botafogo
RIO DE JANEIRO
Rio das
pedras
jardim
botânico
alto da
boa vista
copacabana
Muzema
rocinha
itanhangá
vidigal
são
conrado
BARRA DA
TIJUCA
JOá
Fonte: Denúncia do MP-RJ
matadores
especializados
Conhecido como Escritório do Crime, o grupo é especializado em execuções por encomenda. Seus integrantes são policiais e ex-policiais, entre eles um major da ativa e um ex-oficial do Bope.
a organização
escritório do crimE
O grupo de matadores, embora receba “encomendas” de qualquer um que pague bem, tem como principal cliente a contravenção, em especial os bicheiros. Segundo os investigadores, dois homens, ambos ligados à polícia, são suspeitos de integrar a cúpula da organização criminosa:
Ronald Paulo
Alves Pereira
major da PM
Logística
Oficial de 43 anos atuaria, segundo a investigação, na logística do grupo, para que os crimes ocorram sem vestígios.
Adriano Magalhães
da Nóbrega
ex-capitão do Bope
Operação
Ex-policial de 41 anos é apontado pelos investigadores como chefe e um dos criadores do Escritório do Crime.
Adriano Magalhães
da Nóbrega
Ronald Paulo
Alves Pereira
O grupo
É formado por PMs, ex-PMs e civis.
Área de atuação
A ligação de integrantes do Escritório do Crime com a milícia de Rio das Pedras seria estreita, segundo a investigação. Eles receberiam parte do dinheiro arrecadado com a construção civil ilegal. Muzema também seria um dos locais de atuação.
praça seca
grajaú
freguesia
(jacarepaguá)
RIO DE
JANEIRO
cidade
de deus
Rio das
pedras
alto da
boa vista
Muzema
itanhangá
são
conrado
BARRA DA
TIJUCA
JOá
Fonte: Denúncia do MP-RJ

Alguns casos chamam atenção pelo profissionalismo do grupo de assassinos. As ações são compartimentadas, um grupo não sabe o que o outro está fazendo. Só os chefes agregam todas as informações, mantendo em segredo as etapas, como se fizessem parte de uma irmandade.

Um exemplo disso é a escolha dos carros usados para a empreitada criminosa. Uma parte da quadrilha sabe exatamente quem procurar para fazer a encomenda dos veículos, geralmente adquiridos de ladrões de carro que roubam para o tráfico de morros como Pedreira e Chapadão , na Zona Norte do Rio.

Com o veículo na mão, é a hora de modificá-lo, mudando suas características para confundir a polícia, como, por exemplo, instalar uma lanterna de um ano diferente do carro original. Enquanto isso, outros integrantes do bando escolhem um automóvel semelhante para clonar a placa, checando se ele não tem qualquer tipo de irregularidade. É o que os bandidos chamam de “carro limpo”.

Todas essas etapas precisam ser cumpridas, antes de passar para a terceira fase: estudo da rotina da vítima e de seu trajeto. Um outro grupo pesquisa qual o melhor local e horário para “abater” o alvo, que deve ter pontos cegos de câmeras de vigilância,  menos gente circulando, além de  rotas de fugas eficazes. A escolha da arma adequada para o serviço fica por conta do matador, mas ele avalia as condições do local escolhido. A polícia e a promotoria que atuam no Caso Marielle acreditam que o assassinato da vereadora teve todo este planejamento.

No dia da execução da vítima, tudo deve estar levantado para os assassinos de aluguel. Altamente preparados, alguns de forças de elite da Polícia Militar do Rio, eles estão dispostos a passar horas dentro do carro esperando sua caça. Suportam as altas temperaturas do Rio — no dia do assassinato de Marielle e Anderson, o calor estava insuportável — e não saem do veículo nem para urinar, usando mesmo garrafas para isso. A polícia do Rio, numa investigação recente de um homicídio no Recreio, chegou a encontrar um frasco cheio de urina no veículo de um suspeito de participar de um tiroteio.

Carro dos matadores de Marielle teria saído de Rio das Pedras

Cobalt prata, com placa clonada, teria partido da comunidade da Zona Oeste
. Foto: Reprodução
. Foto: Reprodução

Rio das Pedras, principal foco da operação desta terça-feira, é justamente a região em que as investigações do Caso Marielle comprovaram, por meio de imagens do circuito de segurança de vias e estabelecimentos comerciais, que o carro usado na execução da vereadora e do motorista passou por lá. O Cobalt prata , com placa clonada, teria partido de Rio das Pedras, passando depois pelo Quebra-Mar, na Barra, antes de acessar a Estrada do Itanhangá e seguir pelo Alto da Boa Vista até a Tijuca.

Outra evidência que demonstra a participação deles no crime é que o celular bucha (telefone cujo número está registrado com o CPF de terceiros) de um dos suspeitos foi detectado no raio de abrangência de uma das antenas próximas ao local onde a parlamentar foi assassinada. Marielle e Anderson foram executados numa emboscada, no dia 14 de março, no Estácio, na Zona Norte do Rio.

Para o Ministério Público há fortes indícios de que a vereadora Marielle Franco atravessou o caminho dos milicianos, o que acabou resultando em sua morte. A questão fundiária na região, incluindo o projeto de verticalização da comunidade pode estar por trás do crime.

A pretexto de que alargaria ruas e acabaria com as enchentes em Rio das Pedras, a prefeitura chegou a cogitar pôr em prática um plano em que construtoras fariam o saneamento básico do lugar e, em troca, seriam erguidos prédios de até 12 andares. Haveria emissão de Cepacs (Certificados de Potencial Adicional de Construção), o que possibilitaria o aumento do gabarito de construção. Mas a área afetada pela medida seria muito maior: iria do Itanhangá até o início da Avenida Embaixador Abelardo Bueno, passando pelo Anil.  Os moradores se insurgiram contra o projeto, por serem contra as desapropriações no local.

Embora Marielle não tenha ido ao local pessoalmente, seus assessores foram em Rio das Pedras dar apoio aos moradores. A parlamentar estaria, desta forma, “presente”, sem pôr os pés por lá. Uma liderança comunitária de Rio das Pedras chegou a procurar a vereadora em seu gabinete na Câmara dos Vereadores para pedir apoio na luta, por saber que uma das bandeiras do mandato de Marielle era justamente a de ser contrária às remoções de famílias que vivem há anos no mesmo terreno, sem ter o título da terra.

— Era uma característica da “mandata” (como Marielle chamava ser mandato, no gênero feminino) manter as portas do gabinete abertas. Marielle achava que assim as pessoas que a procurassem se sentiriam mais à vontade para entrar e reivindicarem seus direitos. Uma líder comunitária de Rio das Pedras chegou a nos procurar —  contou um integrante da equipe de Marielle ao GLOBO.

Há informações de que a milícia de Rio das Pedras e adjacências teria amargado prejuízos com a decisão da prefeitura em abandonar o projeto em decorrência da pressão de parlamentares, principalmente, de assessores de Marielle. Os paramilitares teriam investido pesado em empreendimentos, incluindo na construção de condomínios de prédios e até de shoppings, em outra área vizinha, a Muzema, justamente para abrigar os moradores que recebessem as indenizações pelas desapropriações.

Outra prova importante que liga o Escritório do Crime ao caso Marielle é que a munição usada no duplo assassinato, UZZ-18 , foi a mesma empregada em pelo menos outros três casos ligados aos matadores da organização criminosa.

Apesar das novas prisões, a promotoria e a Delegacia de Homicídios da Capital (DH) não descartam a possibilidade da participação do miliciano Orlando de Oliveira Araújo, o Orlando Curicica, e do vereador Marcello Siciliano , nas mortes de  Marielle e Anderson. De acordo com as investigações, o parlamentar ainda figura como suspeito de ser o mandante e Curicica, por estar preso na época do crime, pode ter feito o contato com o “Escritório do Crime” para executar a vereadora, o verdadeiro alvo.

O GLOBO levantou os crimes ligados, supostamente, à contravenção, e descobriu que, pelo menos 19 deles ocorridos de 2004 — quando o contraventor Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, foi assassinado — para cá, não foram elucidados.

Nome da operação tem referência cinematográfica

Filme de 1987 inspirou nome da ação
Filme 'Os intocáveis' Foto: Divulgação
Filme 'Os intocáveis' Foto: Divulgação

A atuação articulada, impiedosa e praticamente invisível destes criminosos também remete a tramas de grande sucesso, com conspirações que muitos acreditam ser possível apenas na ficção. Mas não são.

Em 1987, o cinema americano apresentava ao mundo a história do chefão da máfia italiana, Al Capone, através do filme "Os intocáveis". A película se passa numa Chicago dos anos 20, onde a Lei Seca — que proibia o comércio de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos — impulsionava a ação de grupos mafiosos que contrabandeavam e dominavam territórios, na calada da noite.

No longa-metragem, o agente federal Eliot Ness (Kevin Costner), precisa superar a corrupção na polícia de Chicago, que intoxicava os mais altos escalões da corporação, para conseguir deter o intocável Al Capone (Robert De Niro), que, com sua gangue, mandava e desmandava na cidade, matando violentamente e sem deixar rastros todos que entravam em seu caminho. E é neste raciocínio de "intocável", que o personagem de Costner monta uma força-tarefa, apenas com agentes de confiança, incorruptíveis, intocáveis. Assim, ele consegue penetrar o mundo obscuro da máfia de Capone. Tal universo não soa peculiar. Assim como tais práticas, também não deixam de ser familiares no Rio de Janeiro do século XXI.

Rio das Pedras: berço das milícias

História dos paramilitares na comunidade começa quando comerciantes nordestinos decidem pagar pistoleiros para impedirem entrada de traficantes na região
Rio das Pedras, na Zona Oeste, é dominada pela milícia; investigadores acreditam qe área é quartel-general do
Rio das Pedras, na Zona Oeste, é dominada pela milícia; investigadores acreditam qe área é quartel-general do "Escritório do crime" Foto: Marcelo Régua / Agência O Globo

O que hoje é conhecido popularmente como milícia no Rio de Janeiro, pode-se dizer que teve seu início na favela do Rio das Pedras, ainda nos anos 1970, quando, na ainda bucólica região da Zona Oeste, o nome referia-se mais a um córrego que cortava a área. Povoada por migrantes nordestinos, que acabaram se organizando para impedir a entrada de traficantes, a comunidade se tornou refém da segurança privada que eles próprios tanto buscavam.

— Essa base de comerciantes migrantes vindos do nordeste criou uma espécie de enclave que acabou financiando esta espécie de prática, que resultou, mais tarde, na ação da milícia — conta José Cláudio Souza Alves, professor de sociologia da Universidade Federal Rural do Rio (UFRRJ).

Anos depois, toma-se conhecimento da presença de policiais e bombeiros entre estes criminosos. Principalmente, em meados de 2007, com os casos dos assassinatos do inspetor da Polícia Civil, Félix Tostes, o Félix de Rio das Pedras, com mais de 30 tiros, e do vereador Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras. Ambos disputavam o comando do mecanismo na área. O que difere estes bandidos dos grupos de extermínio, é, sobretudo, o controle exercido sobre o território e o envolvimento com atividades comerciais que extrapolam a venda do serviço de segurança.

— Quando a milícia se consolida em Rio das Pedras, eles passam a controlar, não só a ação dos comerciantes, como também a distribuição de terras, imóveis, e até de votos durante as eleições. Há essa prática muito forte. Além, é claro, da cobrança de água, gatonet, estacionamento... Esta milícia se consolidou muito rapidamente neste perfil — diz  José Cláudio.

O controle sobre o território, que passa a ser dominado militarmente, talvez seja a característica mais importante do fenômeno das milícias no Rio, visto que os grupos de extermínio, também compostos por policiais, e que existiam, principalmente, na Região Metropolitana, cobravam apenas de comerciantes locais e matavam por encomenda, sendo mais próximos de pistoleiros.

— A ação destes criminosos é baseada na demanda por habitação que há naquela área. Rio das Pedras fica numa região quem tem um tipo de solo muito instável, então a demanda por áreas estáveis é muito grande, e eles se aproveitam disto para delimitá-las e controlá-las. É algo determinante por lá — acrescenta o professor.

Além disto, esses milicianos passaram a conseguir ocupar espaços maiores no meio político, nos poderes Legislativo e Executivo do município e do estado, construindo redes invisíveis no interior do poder público. Fato é que, hoje, o poder paralelo destes bandidos implacáveis, que agem por trás dos holofotes, é cada vez maior e se expande para uma área cada vez mais ampla, principalmente, da Zona Oeste da cidade.

Máfia italiana também tinha grupo de matadores

'Escritório do crime' age de forma parecida com antigas organizações criminosas italianas
Um dos chefões da máfia italiana, Leoluca Barella era conhecido como o
Um dos chefões da máfia italiana, Leoluca Barella era conhecido como o "ministro da guerra" Foto: Letizia Battaglia / 1979 / Divulgação

O “Escritório do crime” não é uma experiência inédita no mundo do crime. A “Cosa Nostra” siciliana, sob o comando dos Corleoneses (naturais da cidade de Corleone, que rendeu mais chefes mafiosos), criou, de 1983 a 1993, o maior núcleo de matadores da história da máfia italiana.  A falange contava até com um “ministro da guerra”, Leoluca Bagarella (cunhado do “chefe dos chefes”, Salvatore Riina (Totó Riina). Ele organizava os ataques. Usou, em muitos casos (até na eliminação do chefe anterior de Riina) motoqueiros com garupeiro que atirava e todos com capacetes para esconder o rosto. A ação não se limitava no metralhamento. Tinha que conferir o resultado. E era recomendado uma rajada final na cabeça.

A onda de execuções foi inaugurada com Boris Giuliano, chefe da polícia “Esquadra Mivel” de Palermo. Na sequência, os capitães carabineiros antimafia Emanuele Basile e Mário D’ Aleo.  O procurador-geral de Palermo Gaetano Costa e o magistrado Rocco Chinici, chefe do pool antimafia. Depois, o deputado comunista, siciliano e autor do projeto do tipo penal de associação criminosa de matriz mafiosa, Pio La Torre.  Aí, veio a eliminação do governador da Sicília, Píer Santi Matarella ( é irmão do presidente da Itália, Sérgio Matarella.

Dada a matança, para a Sicília, foi mandado o general Carlo Alberto Dalla Chiesa, que havia acabado com o terrorismo das Brigadas Vermelhas e Nere (de ultra direita). Acabou assassinado em 3 de setembro de 1982. Na estação de 1992, é metralhado o eurodeputado siciliano Salvo Lima (fazia a ligação da Máfia com o primeiro-ministro Giuglio Andreotti, em 14 de março de 1992. Depois, foram dinamitados em maio e julho os magistrados Giovanni Falcone e Paolo Borsellino.

O “chefe dos chefes”, Totó Riina, se tornou o membro mais poderoso da organização criminosa no início de 1980, após a prisão de Liggio. Mafiosos companheiros o apelidaram de "A Besta" (La Belva), devido à sua natureza violenta, ou às vezes o chamavam de "O Curto" (U curtu), mas nunca em sua presença, devido à sua baixa estatura de 1,58 cm. Durante a sua carreira ao longo da vida no crime se acredita que ele, pessoalmente, matou cerca de 40 a 70 pessoas, e de ter ordenado a morte de centenas de outras.