Política

Castor de Andrade: de preso a aliado dos militares

Negócios Metalúrgica de bicheiro, endividada, foi adquirida pelo grupo Coroa-Brastel por pressão do governo militar

RIO - Em dezembro de 1968, logo que foi baixado o AI5, uma ofensiva liderada pelo general Luís de França Oliveira, então secretário de Segurança da Guanabara, deu ao país a sensação de que o regime militar jogaria duro com a contravenção. Na mais forte campanha contra os bicheiros desde os tempos do então coronel Alcides Gonçalves Etchegoyen, chefe de Polícia do Distrito Federal no Estado Novo (1942-43), 40 banqueiros do jogo, entre os quais Castor de Andrade e Natalino Nascimento, o Natal, foram presos por enriquecimento ilícito. No dia seguinte, desembarcavam sorridentes na Penitenciária Cândido Mendes, na Ilha Grande, sem acreditar que a mão de ferro da ditadura seria capaz de atingi-los.

E não foi mesmo. Quatro meses depois, parte deles já estava de volta às ruas, favorecida pelas mesmas manobras judiciais que, ainda hoje, mantêm os donos da banca livres das grades. Castor de Andrade foi mais ousado. Precisou de pouco mais de uma década para virar o jogo. De perseguido por vender “a ilusão do ganho fácil”, como acusava o general França Oliveira, o chefão de Bangu se tornou parceiro e protegido. Sua empresa, a Metalúrgica Castor, viraria, entre 1980 e 1981, fornecedora do Exército de produtos de aço e metal, como camas, fogões, armários e marmitas. Quando entrou em decadência, foi adquirida pelo Grupo Coroa-Brastel em operação apadrinhada pelo regime militar.

Sócio era sogro de Johnny Figueiredo

Obtido pelo GLOBO junto ao Arquivo Nacional, o “Infão 691 - CIE”, documento secreto de 24 de junho de 1982 informa que a Metalúrgica Castor Indústria e Comércio Ltda (Rua Otávio Paulino 10, bairro Três Corações, Nova Iguaçu), que tinha como sócios Castor Gonçalves de Andrade, Osório Pais Lopes da Costa e Antônio Osório Lopes da Costa, era fornecedora da Diretoria de Material de Intendência (DMI) do Ministério do Exército. Quando o negócio foi descoberto, o SNI chegou a investigar o endividamento da empresa junto à rede bancária. Nada, contudo, que tirasse o sono do bicheiro.

Osório Pais Lopes da Costa, sócio do chefão na metalúrgica, era sogro de Johnny Figueiredo, filho mais velho do então presidente da República, general João Baptista Figueiredo. Em 1982, quando a metalúrgica ia mal das pernas, acumulando dívidas e limitada praticamente às encomendas militares, uma obscura operação a salvou da degola. Pressionado pelo governo, o empresário Assis Paim Cunha, sócio majoritário do grupo Coroa Brastel, desembolsou Cr$ 400 milhões por ela. Em troca, Paim deveria ser compensado com a generosidade da área de financiamentos do Banco do Brasil.

Mas o socorro público não foi capaz de garantir a sobrevivência do grupo. Em junho de 1983, uma intervenção do Banco Central decretaria o fim do Coroa Brastel naquele que foi um dos maiores escândalos financeiros do país, com mais de 34 mil investidores lesados. Assim Paim, jurando que não iria para a cadeia sozinho, resolveu abrir o verbo. Em depoimento à CPI do Senado que investigava crimes financeiros, disse que recebera do economista Álvaro Armando Leal, consultor do grupo, a promessa de que seria recompensado pelo regime militar se comprasse a falida Metalúrgica Castor.

Álvaro Leal, que esteve no Senado semanas depois, não negou a história. Ex-sócio do então secretário executivo do Ministério do Planejamento, José Flávio Pécora, Álvaro declarou que sofreu pressões para que se examinasse nomes de empresários interessados, eventualmente, na compra da Metalúrgica Castor.

A essa altura, indiferente ao escândalo, Castor de Andrade, presidente de honra do Bangu Atlético Clube, fazia os últimos ajustes no time que chegaria ao vice-campeonato brasileiro de 1985. A sua escola de samba, a Mocidade Independente de Padre Miguel, campeã pela primeira vez em 1979, com “O Descobrimento do Brasil” (“Brasill, Brasil, Avante meu Brasil”, cantava o samba), repetiria o feito em 1985, com “Ziriguidum 2001, Carnaval nas Estrelas”. Castor foi o primeiro presidente da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), em 1984-85.

Entre a prisão da Ilha Grande e o apogeu nos anos 1980, Castor de Andrade atravessou o regime com fama de intocável. Mesmo atrás das grades por quatro meses, não perdeu a pose. Enquanto os demais presos do AI-5 ficaram em cubículos de dois por quatro metros, cada qual com capacidade para duas pessoas, ele, por ser advogado, gozou de prisão especial. Sua “cela” era uma residência fora dos paredões da penitenciária, num prédio mobiliado, com oito quartos, cozinheiro e um bom quintal.

— Ninguém quase o via. Até a comida era diferenciada. A qualquer hora, visitas chegavam de lancha. Diariamente, ele saia para passear com o temido Zaqueu, o chefe dos inspetores — recorda-se um preso político que conviveu com Castor na ilha.

Castor ia a irmandade dos militares

Não havia contato com os demais presos (cerca de 600) e nem a obrigação de usar uniformes. Ele e outros chefões tinham duas horas do dia destinadas ao banho de mar (de 8h às 10h). A certeza da impunidade era tamanha que Castor tentou organizar uma equipe de futebol entre os colegas de cadeia. Definitivamente, vivia ali a experiência da prisão/colônia de férias. Seu maior incômodo era o ataque sem tréguas dos borrachudos. Os bicheiros matavam o tempo jogando dominó e damas. Castor teria até feito uma música, a “A ilha”, com o compositor Carlos Imperial, também alcançado pelo AI5 por dar mau exemplo à sociedade.

Castor teve, é bem verdade, um momento de dúvida quanto às intenções do regime. Solto em abril de 1969, por força de um habeas corpus concedido pela Justiça fluminense, ele foi novamente preso, quanto saia de um helicóptero do governo estadual, sendo levado a bordo de outra aeronave, desta vez da Marinha. Nos dias seguintes, acusado de contrabando, experimentaria o isolamento total em cela na base naval da Ilha das Flores.

Lá, era vizinho de um preso político, cujo nome nunca soube, que conseguiu quebrar a incomunicabilidade mandando-lhe um bilhete pela tomada de parede: "Meu prezado amigo Castor de Andrade. Neste dia memorável, que inauguramos a telecomunicação, via tomada, entre subversópolis e corruptópolis, quero parabenizá-lo". Nos anos 1980, Castor ainda carregava a carta no bolso, como revelou numa entrevista.

Mas, a essa altura, os tempos duros do regime eram apenas um registro na memória.

Castor frenquentou a Irmandade Santa Cruz dos Militares, que abrigou como irmãos militares envolvidos na repressão política. Numa comemoração, o bicheiro enviou flores à Irmandade, o que deixou alguns deles constrangidos. Além disso, segundo afirma o ex-delegado Cláudio Guerra, no livro “Memórias de uma guerra suja”, “a relação entre Castor e as Forças Armadas era tão próxima que ele tinha até uma credencial do Cenimar (Centro de Informações da Marinha)”, que usava para se dizer agente.