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Por Leonardo Miranda

Acervo Estadão

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A desclassificação da seleção sub-20 ao Mundial deu voz a uma ideia comum no Brasil em derrotas no futebol: o clamor pelo passado. Frases como "não há mais talentos como antigamente”, “ninguém mais sabe driblar" e “o futebol moderno destruiu os craques” tecem uma rede de clichês de raciocínio simples: o futebol brasileiro é gigante por natureza e era melhor no passado.

Craques desfilavam em campo, estádios estavam sempre lotados e o jogo era belo e artístico. Se tudo era melhor antigamente, basta podar aquilo que se apresenta como moderno para retomar a vitória: menos ciência, mais empirismo. Menos estudiosos, mais boleiros. Menos tática, mais alegria. Conservar ao invés de progredir. Voltar às origens.

Um rápido resgate mostra que essa visão mal-humorada, crítica e agressiva com o futebol é uma constante há pelo menos 70 anos. A seleção já não agradava a ninguém em 1970, ano do tri-campeonato mundial no México. O teor das críticas antes da Copa eram as mesmas de hoje: não há time titular, o treinador escala errado, convoca errado….

Seleção de 1970 | Revista Placar — Foto: Leonardo Miranda

E o futebol moderno, que robotiza os jogadores e deixa o jogo chato? Já aprontava das suas em 1973, quando essa reportagem denunciava: a retranca vai acabar com o jogo! O discurso é o mesmo: a tática aprisiona o talento, deixa o jogo quadrado, tira a arte e a beleza. Não fazia nem 3 anos que o Brasil chegara em seu auge e já se reclamava...

Reclamação sobre retranca | Revista Placar — Foto: Leonardo Miranda

E aqui, três anos antes da primeira conquista mundial de 1958, que a Folha de São Paulo relata que o futebol europeu estava progredindo mais que o sulamericano?

Acervo Folha em 1955 — Foto: Leonardo Miranda

Se o Brasil é realmente o país do futebol e o passado era muito melhor que o presente, porque os relatos desse mesmo passado soam exatamente como hoje?

Porque a ideia de que o futebol brasileiro é o melhor do mundo, na prática, nunca existiu. O futebol romântico e talentoso como imaginamos é uma construção. O país passava por mudanças na década de 1930. Oligarquias perderam o poder no governo Vargas. A escravidão havia terminado há 40 anos. O país era pobre, desestruturado e desigual. Era preciso criar um sendo de unidade. Algo positivo, que justificasse a desestrutura da sociedade e amenizasse tensões raciais num momento onde imigrantes da Europa e negros, filhos de ex-escravos, estavam à margem da sociedade.

O futebol cai como uma luva nesse propósito na Copa de 1938. Foi o sociológo Gilberto Freyre, no artigo “Football Mulato”, que descreve o “jeito brasileiro de jogar” como alegre e artístico. O “mulato malandro”, vindo das ruas, seria capaz de superar a estrutura do europeu. Ele era alegre, ousado, criativo. Ele “driblava as adversidades” , termo que importamos para o cotidiano. Nasce daí a ideia que o talento e o individual superam tudo num país desestruturado e profundamente desigual.

A romantização da esculhambação

A pior mazela do futebol brasileiro é a romantização da esculhambação. Se o talento e a malandragem resolvem problemas complexos, não há a necessidade de processos e estruturas no futebol. Treinar pra quê, se o craque faz tudo? Tempo para montar a equipe pra quê, se basta ter qualidade técnica. Estrutura na base? Moleque tem é que sofrer, jogar como se estivesse na rua, "sentir o jogo". Não! Meninos de base precisam de salário em dia, estrutura, estudo. Precisam de processo, com início, meio e fim. Precisam sentir o jogo dentro de campo, não sentir fome fora dele.

Ao criar uma suposta superioridade frente ao europeu por questões genéticas e raciais, a ideia de Freyre também estabeleceu uma régua impossível de ser atingida: a de que o futebol brasileiro sempre é favorito. Tudo que não for vitória é zebra. Toda Libertadores ou Estadual é a mesma coisa. Nasce daí o clientelismo do torcedor, que vai ao estádio não para apoiar o time, mas em troca unicamente da vitória. As direções reprisam o comportamento: demitem sem critério e contratam sem convicção esperando o encaixe ou a boa fase. O brasileiro nunca acreditou em processo porque sempre achou que as coisas acontecem por vontade divina (caem do céu) ou são feitos individuais (a ideia do sebastianismo).

Até as próprias iniciativas de inovação que o Brasil teve - e foram muitas! - ficaram em segundo plano por essa cultura. A principal aconteceu em 1968, quando João Saldanha reuniu técnicos e preparadores para pensar o futebol brasileiro e preparar terreno para mais conquistas após o vexame na Copa de 1966. O diagnóstico era o mesmo de hoje: faltava estrutura nos clubes, profissionalismo e formação de base. Falcão foi chamado para a seleção em 1990 com o mesmo intuito. Mano Menezes também, em 2010. Todos demitidos.

O futebol brasileiro não precisa de menos ciência. Não precisa de menos tática. O Barcelona não meteu 4 a 0 no Santos e a Alemanha não fez 7 a 1 porque driblaram mais. Mas sim porque confiaram em processos, na ciência e num mínimo de razão. Precisamos de mais estrutura, mais investimento na base, mais pedagogia de rua. Mais pessoas com coragem de mudar ideias antigas. Porque achar que tudo era melhor antigamente impede de nos ver o que importa: o futuro.

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