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Pelo menos 30 estudos sobre tratamentos contra o coronavírus aguardam na fila da Comissão de Ética do governo

Cientistas reclamam de burocracia e morosidade do órgão do Ministério da Saúde responsável por avaliar protocolos de pesquisa em humanos
Mulher observa aviso sobre atendimento médico a pacientes com Covid-19 em Fortaleza: análise ética de pesquisas sobre a doença preocupa governo federal Foto: Mateus Dantas/Zimel Press/17-4-2020
Mulher observa aviso sobre atendimento médico a pacientes com Covid-19 em Fortaleza: análise ética de pesquisas sobre a doença preocupa governo federal Foto: Mateus Dantas/Zimel Press/17-4-2020

RIO — O Ministério da Saúde tenta recuperar a força de uma frente de trabalho montada para agilizar a avaliação de estudos que podem resultar em medicamentos e vacinas contra o coronavírus. Cerca de 30 projetos aguardam o aval da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa ( Conep ), um colegiado apontado por algumas associações científicas como lento e burocrático.

A Conep recebe estudos de áreas temáticas, como genética e reprodução humana, encaminhados pelos 846 comitês de ética (CEPs) espalhados pelo Brasil, presentes em instituições como hospitais, clínicas e universidades. Estas comissões são responsáveis pela avaliação ética de pesquisas em seres humanos.

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No início do ano, porém, a Conep resolveu expandir seu leque. Em um informe encaminhado aos CEPs, determinou que seria o único órgão responsável por analisar todos os protocolos sobre Covid-19.

A Conep indicou agilidade, concluindo a análise ética de protocolos de pesquisa em 24 horas. Mas a enxurrada de projetos recebidos foi tamanha que, em abril, o colegiado recuou e, em novo informe, voltou a destinar algumas funções aos CEPs. Ainda assim, monopoliza a análise ética de estudos de assuntos como desenvolvimento de testes sorológicos , uso de plasma para terapias e saúde mental de pacientes e profissionais de saúde.

— Fizemos a resolução do início do ano para provocar celeridade nos estudos científicos, mas de repente estávamos com 700 projetos para analisar, e aí a situação ficou complicada — admite Jorge Venâncio, coordenador da Conep. — No começo, tínhamos apenas uma câmara técnica fazendo as análises sobre a Covid-19. Depois, aumentamos para quatro, mas não havia jeito. O volume continuava muito maior do que nossa capacidade individual.

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Desde o início da pandemia, a Conep aprovou 347 pesquisas sobre a Covid-19. Pelo menos 85 aguardam seu parecer. Aproximadamente 30 estão voltadas à área biomédica.

— Estamos recuperando terreno (em relação ao ritmo de trabalho inicial). Hoje, demoramos entre 48 e 72 horas para cumprir a análise de cada projeto — explica Venâncio.

Abaixo-assinado contra burocracia

As informações, porém, são contestadas pela Aliança Pesquisa Clínica Brasil (APCB), órgão que idealizou recentemente um abaixo-assinado contra a burocracia da Conep.

A APCB reconhece que a força de trabalho da Conep contra o coronavírus teve bons resultados iniciais, mas, segundo ela, o ritmo arrefeceu significativamente. Agora, segundo a entidade, alguns grupos demoram de um a dois meses até ganhar o aval para conduzir seus estudos.

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O oncologista Fábio Frank, presidente da APCB, avalia que a burocracia governamental é a principal responsável pela dificuldade de inclusão de cientistas do país em pesquisas internacionais sobre o coronavírus.

— A análise ética dos estudos é lenta e, por isso, os cientistas brasileiros não conseguem estabelecer prazos para entrega de suas pesquisas. Por isso, não somos convidados por grupos de trabalho estrangeiros para participar, por exemplo, do desenvolvimento de medicamentos experimentais — explica. — Trata-se de mais um revés ao país, que já está com a imagem desgastada no exterior quando o assunto é o coronavírus.

Frank destaca que a Conep é composta de apenas 35 integrantes, e que precisa avaliar todas as pesquisas clínicas com participação de seres humanos, e não apenas as relacionadas à Covid-19. Portanto, as “incontáveis pendências e exigências”, como destaca no abaixo-assinado, são cotidianas há anos no conselho.

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No início do mês, 185 protocolos de pesquisa relacionados ao coronavírus aguardavam emendas e notificações na Conep. Jorge Venâncio revela que alguns estudos tiveram de ser analisados mais de quatro vezes, devido a problemas como a falta de esclarecimentos ou a necessidade de atualizações.

— Há situações como projetos aprovados e que, depois, encaminham alguma emenda. Ou, então, da morte de um pesquisador envolvido no trabalho, e aí nós precisamos fazer pareceres — explica.

Os pesquisadores clínicos reivindicam que o trabalho da Conep seja descentralizado. Desta forma, os CEPs seriam os responsáveis por toda a análise ética de uma pesquisa científica, incluindo a de estudos que poderiam colaborar para a geração de novos fármacos. Este é o modelo adotado em diversos países, como os Estados Unidos.

Entre os defensores da mudança dos conselhos de ética está Luis Augusto Russo, pesquisador clínico da Academia Nacional de Ciências Farmacêuticas:

— Temos instituições de excelência, como a Fiocruz, e hospitais de primeira linha, como o Samaritano, o Sírio-Libanês e o Albert Einstein, todos com bons comitês de ética. Eles podem analisar este aspecto de suas pesquisas e, depois, encaminhar os resultados à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o órgão responsável pela parte técnica do estudo científico. Se os resultados forem positivos, teríamos um caminho para a criação de um novo medicamento.

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Os cientistas indicam, também, que a Conep não pode ser ágil apenas em pesquisas relacionadas à Covid-19. Segundo seus críticos, o colegiado demora até oito meses para concluir análises éticas sobre pesquisas de outros assuntos. Nos Estados Unidos e na Europa, este trabalho é concluído em um prazo de 45 a 60 dias.

A Conep rebate a acusação, assegurando que realiza toda a sua atividade em apenas 25 dias, desde que os cientistas apresentem todo o detalhamento necessário de seus protocolos.

De acordo com a APCB, o Brasil participa de menos de 2% dos estudos clínicos. Sem a burocracia envolvida na análise ética das pesquisas, este índice poderia quadruplicar.

— Usamos medicamentos importados dos Estados Unidos e da Europa, desenvolvidos através de estudos de uma população diferente da nossa, que é miscigenada. Então, um remédio testado aqui pode não ter a mesma taxa de sucesso entre pacientes do que a vista em seu país de origem — explica Frank. — Se o Brasil participasse mais da produção científica internacional, teria chance de conhecer melhor as características genéticas de sua própria população.