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Prefeitura de Niterói usa recursos vinculados à iluminação para custear outras despesas

No total, foram arrecadados R$ 53 milhões no período, contrariando a legislação
Num trecho da Rua G, em Piratininga, não há qualquer ponto de luz. Presidente do Ccron diz que são muitas as reclamações de moradores da Região Oceânica Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo
Num trecho da Rua G, em Piratininga, não há qualquer ponto de luz. Presidente do Ccron diz que são muitas as reclamações de moradores da Região Oceânica Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

NITERÓI — Parte dos recursos arrecadados pela prefeitura para o custeio da iluminação pública da cidade foi aplicada em outras despesas, como mostra levantamento feito pelo GLOBO-Niterói com base nos empenhos de 2015 e 2016 realizados pela Secretaria de Conservação (Seconser), responsável pela aplicação do dinheiro. Ao todo, nos últimos dois anos, R$ 4,3 milhões (ou 12,1%) dos R$ 35,7 milhões já gastos, provenientes da Contribuição para o Custeio do Sistema de Iluminação Pública (Cosip) foram utilizados para outros fins, contrariando a legislação municipal. No total, foram arrecadados R$ 53 milhões no período. A prefeitura nega ter cometido irregularidades, mas especialistas afirmam que o expediente pode configurar improbidade administrativa.

O Código Tributário Municipal diz que o tributo — pago pelos contribuintes na contas de luz — tem receita vinculada ao “custeio dos serviços públicos de iluminação, incluindo instalação, manutenção, melhoramento, operação e fiscalização do sistema de iluminação das vias, logradouros e demais bens públicos”. Através dos dados do Portal da Transparência da prefeitura, foram compilados todos os empenhos dos últimos dois anos (ato administrativo que reserva recursos públicos para o posterior pagamento de despesas) feitos com a contribuição. Os dados de 2014, primeiro ano em que os empenhos foram publicados on-line, não estão estruturados como nos anos posteriores, dificultando a consulta.

Três empenhos, destinados à empresa Translar, somam R$ 4,3 milhões e se referem a gastos com outras áreas: R$ 2,84 milhões foram utilizados na desobstrução e limpeza de ralos e bueiros, enquanto o R$ 1,47 milhão restante foi pago a título de “despesas referentes à renovação do contrato (...) para a atuação em logradouros públicos”.

Para Paulo Corval, professor de direito tributário e financeiro da UFF, a aplicação inadequada da contribuição é uma realidade em todo o país. Ele diz que os pagamentos à Translar violam a lei:

— Quando o tributo é uma contribuição, a lei exige que seja destinado para o fim que foi criado. Se é detectado que os recursos estão sendo usados com uma finalidade distinta, isso configura improbidade administrativa.

Apesar das informações contidas no Portal da Transparência — que, por lei, devem ser autênticas —, a prefeitura afirma que a descrição dos serviços pagos nos três empenhos à Translar é apenas “um resumo do objetivo do contrato”, que engloba diversos serviços de conservação, como manutenção da iluminação pública, demolição, transporte, remoção de entulho, solda e varredura. Diz ainda que no contrato “também estão inclusos serviços relacionados à iluminação pública e portanto os empenhos realizados da fonte 107 (Cosip) estão de acordo com a lei”.

Relator da CPI da Enel (a antiga Ampla, concessionária responsável pelo fornecimento de energia em 62 municípios do estado), o vereador Bruno Lessa (PSDB) se diz surpreso com os pagamentos feitos com recursos da Cosip e reforça que eles são ilegais,

— A lei municipal é muito clara. Não pode usar a Cosip para qualquer outra ação que não seja diretamente vinculada à iluminação pública. Nesse sentido, esses três empenhos são profundamente ilegais. Vou apresentar nos próximos dias uma representação ao Ministério Público por desvio de finalidade no uso desses recursos — afirma.

Corval ressalta que a contratação de empresas privadas, como a Translar, para a execução de serviços públicos dificulta o controle na aplicação de recursos vinculados:

— Todos os serviços estão privatizados. Tanto o fornecimento, a cargo da Enel, quanto obras e serviços de manutenção não são mais executados pelo município. Na prática, nenhuma prefeitura tem condições de fiscalizar isso.

O advogado tributarista Luis Meato, membro do conselho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Niterói, acrescenta que se a denúncia chegar ao Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ) e o órgão detectar irregularidades, ele pode determinar que os gestores devolvam aos cofres públicos os recursos aplicados irregularmente.

— A verba é carimbada, não pode ser usada para cobrir outras despesas. Caso haja irregularidades, (a prática) pode ser configurada como crime de responsabilidade e improbidade administrativa — explica o advogado.

GASTOS SECUNDÁRIOS

Corval explica que é comum que prefeituras adotem uma interpretação mais flexível no uso da Cosip. Em vez de aplicá-la apenas nas atividades principais — como despesas com energia elétrica, manutenção e ampliação da rede de iluminação —, passam a destinar a verba também para gastos secundários. No caso de Niterói, um dos maiores montantes do tributo despendidos pela Seconser (R$ 8 milhões do total de R$ 35,7 milhões gastos nos últimos dois anos) tem essa característica. Trata-se do contrato com a empresa Perfil X, que executa, entre outros serviços, podas de árvores. Ela recebeu R$ 3,1 milhões entre 2015 e 2016. Apesar de o contrato justificar a aplicação de recursos da Cosip pela necessidade de “guarnecer a rede de distribuição de energia elétrica, bem como o sistema de iluminação pública”, os serviços também são aplicados para liberar sinais e placas de trânsito. Segundo a prefeitura, em 2015 a Perfil X realizou cerca de 1.850 serviços de poda; no ano passado foram 1.960.

800 NOVOS PONTOS DE LUZ

Também chama a atenção o volume de recursos movimentados através da Cosip. A prefeitura afirma que cerca de 60% dos R$ 97,2 milhões que entraram nos cofres públicos desde 2013 foram repassados à Enel pela energia usada nas áreas públicas da cidade. Ainda segundo informações da Secretaria municipal de Conservação, neste período a rede de iluminação pública foi ampliada em 800 pontos de luz. O número, diz a pasta, é suficiente para atender à demanda criada com o crescimento da cidade. O vereador Bruno Lessa considera o número baixo:

— É pouco para a demanda da cidade. A gente sabe que a iluminação interfere em áreas importantes, como a segurança. É uma arrecadação muito elevada, e o serviço prestado ao munícipe está muito aquém da expectativa gerada. É um valor extremamente alto, principalmente com o que a gente vê de serviços de iluminação no município.

Para o presidente do Conselho Comunitário da Região Oceânica (Ccron), Gonzalo Peres, o discurso oficial sobre a iluminação difere do cenário que é visto nas ruas:

— A prefeitura tem feito uma propaganda grande sobre como a iluminação na Região Oceânica é boa, mas nós temos recebido muitas reclamações de problemas com iluminação, assim como da necessidade de podas em árvores, que acabam escondendo os pontos de luz.

Uma das áreas que têm problemas na Região Oceânica é o entorno da Praça Espanha, em Piratininga. Perto dali, a Rua G tem um longo trecho sem qualquer ponto de luz funcionando, transformando a área num breu. A prefeitura afirma que fará uma vistoria para melhorar a iluminação no local.

MINISTÉRIO PÚBLICO INVESTIGA EMPRESA

A Translar, empresa beneficiária de pagamentos feitos pela Secretaria municipal de Conservação (Seconser) com recursos da Contribuição para o Custeio do Sistema de Iluminação Pública (Cosip), é investigada pelo Ministério Público (MP) por supostamente comandar um esquema de fraudes em licitações na prefeitura de Niterói na última década.

Como O GLOBO-Niterói mostrou em agosto de 2015, o promotor Rubem Vianna, da Coordenadoria de Combate à Sonegação Fiscal, comanda investigação que acusa o empresário Ronaldo Abdala, um dos sócios da Translar, de montar um esquema para manipular concorrências para prestação de serviços na Empresa Municipal de Moradia, Urbanização e Saneamento (Emusa). No total, o contrato investigado, firmado em 2007, e seus aditivos movimentaram mais de R$ 371 milhões. Para vencer as licitações, a Translar atuava em conluio com servidores e agentes públicos. Outras empresas também teriam participado das fraudes. Segundo o MP, mesmo sem comprovar capacidade técnica, elas entravam nas concorrências para perder, forjando uma disputa leal e beneficiando a Translar.

Apesar dos indícios apontados pelo MP, uma sindicância da prefeitura não encontrou irregularidades nos contratos da Translar e da Arkitec, empresa que também pertenceria a Abdala, mantendo ativos os vínculos com ambas. Em maio, a Seconser firmou três aditivos com a Translar, que somam R$ 15,1 milhões.


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