Brasil Coronavírus

Autores de estudo sobre cloroquina que usou dados questionados se retratam, diz revista

Texto publicado na 'Lancet' apontava ineficácia e risco do uso da droga contra a Covid-19, mas dados que o embasaram tinham falhas
Autores de estudo sobre hidroxicloroquina se retratam sobre a qualidade da pesquisa. Foto: Agência O Globo
Autores de estudo sobre hidroxicloroquina se retratam sobre a qualidade da pesquisa. Foto: Agência O Globo

Rio — Três dos quatro autores de um artigo sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 publicado na revista médica britânica "The Lancet" em 22 de maio emitiram nesta quinta-feira uma retratação, após os dados que usaram no trabalho terem sido questionados.

O estudo, agora retirado pelos autores, analisava a eficácia da hidroxicloroquina e da cloroquina no tratamento da Covid-19 a partir de dados de "quase 96 mil pacientes" internados em "671 hospitais de seis continentes" entre 20 de dezembro e 14 de abril, com teste laboratorial positivo para Sars-CoV-2.

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Estes dados, fornecidos pela empresa americana Surgisphere, foram questionados posteriormente por outros cientistas e por uma investigação do jornal britânico "The Guardian".

A reportagem mostrou que a Surgisphere é uma empresa com pouca presença on-line e sem histórico relevante na área, com não mais do que seis funcionários, entre eles um escritor de ficção científica (apresentado como editor de ciência) e uma modelo de conteúdo adulto (listada como executiva de marketing).

Um dos quatro autores do estudo publicado na "Lancet" é o médico Sapan Desai, executivo-chefe da Surgisphere. Segundo o "Guardian", ele já foi citado em três ações judiciais de más práticas médicas, e afirmou que as acusações eram "fantasiosas".

Além das dúvidas sobre seu histórico, a empresa não explicou adequadamente a discrepância entre os dados que forneceu e os que o "Guardian" apurou em sua investigação — por exemplo, o número de mortos apurados pela Surgisphere em cinco hospitais australianos era maior do que o que o jornal encontrou, e os hospitais negaram ter fornecido dados à empresa.

Confrontada com os questionamentos sobre a base de dados da Surgisphere, a "Lancet" publicou inicialmente um alerta, na última terça-feira, avisando que o estudo estava sendo questionado e havia sido submetido a uma auditoria externa.

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Nesta quinta, a revista publicou a retratação dos três outros autores que assinaram o artigo com Desai — Mandeep Mehra, Frank Ruschitzka e Amit Patel. Eles disseram que a Surgisphere não forneceu aos revisores independentes o conjunto de dados completo para uma análise externa, admitindo que "não se pode mais garantir a veracidade das fontes de dados primárias".

A mesma base de dados da Surgisphere foi usada em outro estudo que listava Sapan Desai entre os autores, publicado no igualmente prestigioso "New England Journal of Medicine".

Os autores deste artigo também pediram à publicação que o retirasse do ar, por "não termos tido acesso aos dados brutos, que também não foram submetidos a uma auditoria externa".

Estudo levou OMS a suspender pesquisa

A eficácia da cloroquina/hidroxicloroquina no combate à Covid-19 vem sendo alvo de disputa há meses, com presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro endossando seu uso, mesmo sem evidências científicas claras.

A publicação do estudo na "Lancet", uma das mais importantes revistas científicas do mundo, repercutiu imediatamente, dado o escopo da base de dados e a conclusão de que as drogas aumentavam a mortalidade de pacientes hospitalizados.

Em 25 de maio, três dias após a publicação, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a paralisação temporária dos testes com cloroquina em pesquisas coordenadas pela instituição com cientistas estrangeiros.

Na última quarta-feira, no entanto, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesu, afirmou que a instituição seguirá com os estudos suspensos na semana passada.

— O grupo executivo Solidariedade fez uma pausa temporária nos testes com hidroxicloroquina por conta das preocupações com relação à segurança do medicamento. Essa decisão foi tomada por precaução. Com base nos dados de mortalidade disponíveis, os membros do comitê concluíram que não há motivos para alterar o protocolo de testes. Nosso grupo executivo vai se comunicar com os principais pesquisadores para retomar os testes sobre a hidroxicloroquina — disse Ghebreyesus.

No Brasil, a pedido de Bolsonaro, a cloroquina passou a constar do procotolo do Ministério da Saúde para tratamento de pacientes de Covid-19 no Sistema Único de Saúde, mesmo em casos leves da doença.

O único estudo clínico randomizado concluído até agora para avaliar a eficácia da hidroxicloroquina contra o Sars-CoV-2, o vírus causador da Covid-19, concluiu que ela não é eficaz.

A pesquisa foi realizada pela Universidade de Minnesota com 821 pacientes dos EUA e Canadá, e divulgada inicialmente pelo jornal "The New York Times" na última quarta-feira.

Num estudo clínico randomizado, pacientes são escolhidos aleatoriamente e parte deles recebe a droga que se quer testar, enquanto outra parte recebe um placebo. Essa é considerada a maneira mais confiável de confirmar se um remédio funciona.

— A mensagem para o público em geral é que, se você é exposto a alguém com Covid-19, a hidroxicloroquina não é uma terapia preventiva ou de pós-exposição eficaz — apontou David Boulware, professor da Universidade de Minnesota e um dos autores da pesquisa, ao jornal americano.