Rio

Livro recupera história sobre a guerra entre sucessores do bicheiro Castor de Andrade

Disputa travada pelos herdeiros do contraventor causou mais de 50 mortes entre 1997 e 2010

O bicheiro Castor de Andrade em desfile da Mocidade, escola da qual foi patrono. A disputa pelo domínio de seu território levou a uma guerra em família
Foto: Cezar Loureiro/11-2-1991
O bicheiro Castor de Andrade em desfile da Mocidade, escola da qual foi patrono. A disputa pelo domínio de seu território levou a uma guerra em família Foto: Cezar Loureiro/11-2-1991

RIO - Era noite de réveillon e o bicheiro Roger, recém saído da prisão, levou o filho adolescente para comemorar a virada a bordo de seu iate em Angra dos Reis. Uma explosão iluminou o balneário fluminense, mas não eram fogos de artifício. O atentado, que tinha como objetivo matar o sobrinho do maior bicheiro de todos os tempos, acabou vitimando o menino, que girou a chave para dar a partida na embarcação.

A cena de ficção descrita acima está no livro “Oeste”, escrito pelo policial federal Alexandre Fraga e lançado pela editora Record no mês passado. Mas em muitos detalhes ela lembra um dos últimos capítulos conhecidos da guerra travada entre os herdeiros do contraventor Castor de Andrade após sua morte. A explosão do carro de Rogério Andrade na Barra da Tijuca, em 2010, que matou seu filho, Diogo, de 17 anos, é apenas um dos muitos episódios reais revisitados na obra. Quatro anos após o atentado que abalou a cúpula do jogo do bicho, a guerra que deixou um rastro de mais de 50 mortes durante 13 anos parece ter entrado em um período de trégua.

A morte de Castor de Andrade, conhecido como o capo da contravenção no Brasil, em 1997, levou a um enredo muito semelhante às histórias de mafiosos italianos. A Zona Oeste do Rio, território dominado por Castor, passou a ser disputada inicialmente entre seu filho, Paulinho, e o sobrinho, Rogério. Os dois entraram em guerra não pelo “escrito”, como é chamado o jogo do bicho, mas pelas máquinas caça-níqueis, novidade que gerava milhões à máfia. No ano seguinte à morte do pai, Paulinho e seu segurança foram assassinados a tiros no início da noite na Avenida das Américas, na Barra da Tijuca. Investigações apontaram que o primo seria o mandante do crime. Rogério chegou a ser condenado 19 anos e dez meses de prisão, mas o julgamento foi anulado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Após a morte de Paulinho, o genro de Castor, Fernando Iggnácio, teria assumido os negócios da família e entrado na disputa com Rogério. A guerra entre os dois ficou marcada como um dos períodos mais sangrentos na história recente do Rio, com assassinatos e atentados que ocorriam à luz do dia — a maioria deles envolvendo policiais e seguranças das empresas de jogos Adult Fifty, controlada por Fernando, e Oeste Rio, de Rogério.


O filho de Castor de Andrade, Paulinho (à esquerda, de azul), e o genro, Fernando Iggnácio, com suas respectivas mulheres, no velório do capo da contravenção
Foto: Gabriel de Paiva/12-4-1997
O filho de Castor de Andrade, Paulinho (à esquerda, de azul), e o genro, Fernando Iggnácio, com suas respectivas mulheres, no velório do capo da contravenção Foto: Gabriel de Paiva/12-4-1997

— No momento em que o Castor desapareceu, os herdeiros tomaram conta das suas áreas de domínio. Primeiro Rogério e Paulinho, e depois Fernando Iggnácio, deram início a um período em que todo o tipo de violência foi cometida — afirma Antônio Carlos Biscaia, chefe da assessoria criminal do Ministério Público do Rio e ex-procurador-geral de Justiça do estado. — Com o passar dos tempos, aqueles bicheiros supostamente inocentes ficaram cada vez mais criminosos. O pai do Castor, Eusébio de Andrade, era aquele bicheiro de subúrbio. Depois o Castor sofisticou suas ações, os herdeiros sofisticaram ainda mais, e assim tem sido sucessivamente.

Fraga faz questão de ressaltar que muitas cenas e personagens do livro são obra de sua imaginação, mas o próprio autor tem participação na história real do bicho. Em 2006, um policial que trabalhava com ele na Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal foi assassinado. As investigações revelaram que o sargento do Corpo de Bombeiros Antônio Carlos Macedo, então braço direito de Rogério Andrade, teria mandado matar um policial aposentado com quem tinha desavenças. O colega de Fraga tinha as mesmas características da vítima e acabou assassinado por engano. O escritor e policial estava na operação que prendeu o bicheiro, então foragido há três anos, na Rodovia Washington Luís, que liga o Rio a Petrópolis, na Região Serrana do estado. Anos mais tarde, o mesmo Macedo seria assassinado, supostamente a mando de Rogério.

— Eu investiguei os caras, e depois que você faz algo assim, é natural que muita gente que tem algum contato com eles te conte algo. Terminei a investigação em 2007. Até 2014, quanta gente não me falou sobre esse tema? Assim fui montando aquele quebra-cabeça — explica Fraga, que pretende levar a história aos cinemas no ano que vem, e já tem outro livro sobre o jogo do bicho nos planos, agora sobre a contravenção durante a Ditadura Militar.

Vinte e quatro dias após a prisão de Rogério, seu rival, Fernando Iggnácio, foi detido em operação da Polícia Civil. Presos em Bangu 8, os dois protagonizaram uma cena emblemática: saíram no tapa, por meia hora, durante o banho de sol, em pleno pátio da casa de detenção — testemunhas relatam que ninguém interveio, e os herdeiros de Castor só pararam a briga quando já estavam ambos repletos de hematomas. A guerra também teria continuado fora das grades, onde os bicheiros mantinham uma rede de proteção com 86 homens, entre policiais e bombeiros.


O carro de Rogério de Andrade destruído após a explosão que matou seu filho, Diogo, de 17 anos, na Barra da Tijuca, em 2010
Foto: Gabriel de Paiva/ 8-4-2010
O carro de Rogério de Andrade destruído após a explosão que matou seu filho, Diogo, de 17 anos, na Barra da Tijuca, em 2010 Foto: Gabriel de Paiva/ 8-4-2010

Soltos em 2009, Rogério e Fernando teriam estabelecido uma trégua. No ano seguinte, a explosão cinematográfica na Barra da Tijuca reacendeu o temor de que a guerra do bicho não havia acabado. Tudo indicava que o alvo fosse o sobrinho de Castor, mas Diogo, que não tinha carteira de habilitação, resolvera dirigir o Corolla preto do pai naquele dia. As investigações nunca levaram aos responsáveis pelo atentado. O bicheiro, porém, teria feito justiça com as próprias mãos. Sete meses depois, o bombeiro Macedo foi encontrado morto a tiros de fuzil na Praia da Reserva, na Zona Oeste do Rio. Uma das suspeitas é que o ex-braço direito de Rogério, que tomara conta de seus negócios durante a temporada na prisão, tentara tomar o posto do chefe.

Desde então, os herdeiros de Castor de Andrade têm adotado posturas mais discretas. Rogério voltou a comandar a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, da qual seu tio também foi patrono. Segundo o advogado Luiz Carlos Silva Neto, Rogério não tem mais dívidas com a Justiça e já superou a guerra travada com Fernando Iggnácio. O genro de Castor, por sua vez, responde a processo por formação de quadrilha e corrupção. Seu advogado, o ex-senador João Costa Ribeiro Filho, não foi localizado.

— De uma coisa eu tenho certeza: eles estão em trégua. Agora, enquanto as pessoas continuarem jogando, o bicho não vai parar de funcionar. É uma herança de pai para filho. O que parou foi que os caras chegaram à conclusão de que essa guerra não leva a nada — sugere Fraga.

Antônio Carlos Biscaia concorda:

— A loteria que mais tem apostas é a Sena. Depois dela, é o jogo do bicho. Joga-se muito e você vê, não há repressão alguma. No Centro, na Zona Sul, as figuras são conhecidas. O mesmo acontece com os caça-níqueis. E a cidade continua dividida por áreas de domínio.

*Reportagem publicada na revista digital O Globo a Mais