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Quem escreve

Para que serve a filosofia? Algumas respostas antigas

Marco Antonio de Avila Zingano - Professor de filosofia antiga na USP

Esta insistente questão – mas, afinal, para que serve a filosofia? –, que tanto fazemos hoje, foi também insistentemente feita na Antiguidade e há boas razões para se crer que continuará a ser feita com a mesma insistência no futuro. Em um diálogo memorável, o próprio Platão a formulou na voz dos que são refratários e mesmo hostis à filosofia. Trata-se do diálogo intitulado Górgias, estruturado em três partes em função das personagens com as quais Sócrates dialoga: Górgias primeiro, o famoso sofista grego; Polo, em sequência; por fim Cálicles, com quem Sócrates tem uma difícil conversa em torno de temas como justiça, poder e hedonismo. (O Górgias foi recentemente traduzido de modo admirável para o português por Daniel Lopes.) É nesta terceira parte que Platão faz com que Cálicles qualifique a filosofia como uma ocupação para adolescentes, cuja inutilidade para a vida real os homens maduros rapidamente descobrem e por isso mesmo a abandonam definitivamente em proveito de outros ofícios, os que trazem benefícios a si próprios e à comunidade.

Platão relata assim, na voz de Cálicles, o bordão que haverá de ser repetido ao longo de séculos e séculos pelos mais diversos adversários da filosofia: ela não serve para nada, é inútil, mal se presta a jogos pueris, que as pessoas maduras hão de abandonar sem pestanejar. A resposta de Platão a esta atitude hostil é complexa; uma parte importante de sua resposta consiste no contraste que estabelece entre supostos sábios, mas de fato embusteiros, os que ele chama de sofistas, e o verdadeiro filósofo, aquele que se dedica com todas as suas forças à descoberta da verdade – não só de parte da verdade, a que pode lhe aprazer, mas de toda a verdade, a verdade inteira, ainda que lhe seja desfavorável. Deixemos de lado a questão de saber se Platão não está ele próprio enaltecendo a verdade que lhe apraz e sendo, do ponto de vista histórico, injusto com os sofistas; de certo modo, a insistência com que se refere a eles, o fato mesmo de nos ter reportado com clareza muitas de suas doutrinas revela que sua relação com os sofistas é igualmente complexa, marcada por rejeições e apropriações. O que nos interessa ressaltar aqui é que, por meio desta estratégia (entre outras), Platão quer dar à filosofia a cidadania que tantos lhe recusam. Suas razões não são somente teóricas, mas também pessoais: Atenas condenou à morte o filósofo Sócrates, o mais sábio e mais justo dentre os homens, segundo Platão. A condenação de Sócrates emerge aqui e ali, em seus diálogos, como a nódoa máxima, a mácula por excelência, aquilo que é estranho a todo pensamento. Neste sentido, convém lembrar que, nesta terceira parte do Górgias, quando Sócrates enfrenta Cálicles, Platão aproveita a ocasião para refletir sobre o que acontece quando um interlocutor não se deixa convencer, quando ele não demonstra interesse em seguir o fio das razões. É o que faz Cálicles, que se cansa do que considera ser a inútil verborragia da parte de Sócrates, que sempre volta a fazer questões e nunca se dá por satisfeito com as respostas. Cálicles simplesmente dá as costas a Sócrates e abandona o diálogo: não está mais interessado no que Sócrates diz e sobre o que argumenta. Aqui Platão toca no ponto frágil do diálogo grego antigo. É crença grega que, se o interlocutor prestar atenção ao que é dito, ele terminará por se convencer, por fazer suas as boas razões que lhe são apresentadas. Ocorre, contudo, que nada garante que o interlocutor tenha a disposição de escutar; se o interlocutor não quiser escutar, o filósofo fica indefeso, desprovido dos seus meios de lutar. A filosofia tem seus próprios defeitos, seus demônios internos, suas idas e voltas, mas seus pés de barro estão no fato que supõe que o outro queira escutar e seguir suas razões – mas por que diabos Cálicles procederia deste modo, Cálicles que quer antes usufruir de sua posição social avantajada, satisfazer seu hedonismo e dar vazão à sua busca de poder? Platão o reconhece claramente: para quem nada quer escutar, razão alguma há de o dissuadir.

Aristóteles também se preocupou com a atitude hostil da Cidade com a filosofia. Em um livro de juventude, hoje perdido, mas que pode ser recuperado em parte pelas citações que dele fez Jâmblico, cerca de seis séculos mais tarde, em um livro de mesmo título (Protréptico), Aristóteles argumentou assim: para saber se devemos filosofar ou não, devemos filosofar; portanto, devemos filosofar. Há certamente uma pitada de ironia aqui: ainda que a conclusão seja que não devemos filosofar, devemos filosofar para chegar a tal conclusão... Mais tarde, Aristóteles fará sua exortação à filosofia em outros termos. Na frase com que inicia seu célebre texto que ficou conhecido como Metafísica, Aristóteles escreve que “todos os homens desejam por natureza conhecer”; ora, a figura consumada do conhecedor é justamente o sábio que denominamos de filósofo. A filosofia inscreve-se assim na Cidade porque o homem que a habita tem um pendor natural pelo conhecimento e a forma por excelência de conhecimento é a filosofia. Pode ser que Aristóteles tenha razão em seu argumento: talvez os homens tenham todos um pendor natural pelo conhecimento e, dentre os diferentes tipos de conhecimento, a forma mais elevada seja a filosofia. Contudo, Aristóteles parece supor aquilo que Platão justamente pusera em dúvida: será mesmo que todos os homens desejam conhecer ou bem há alguns – eventualmente muitos – que não estão interessados em desenvolver o conhecimento em suas exigências argumentativas, assim que se sentem satisfeitos com suas crenças e suas situações de vida? Por que buscariam conhecimento, sob o risco de alterar ou mesmo perder o estado de que gozam atualmente? Menos ainda o buscariam na sua forma mais exigente e robusta, a filosofia!

A filosofia conheceu diferentes formas históricas. Do mundo grego à época contemporânea, a filosofia ocupou diferentes papeis, adotou diversas linguagens, realizou variadas funções; ela não está isenta de historicidade, muito pelo contrário. Porém, em todos os seus avatares – e os há, em boa monta –, a filosofia está sempre envolta com a tarefa não somente de conhecer, mas de conhecer o que é o conhecimento; ela está sempre às voltas com a questão não somente de falar diretamente sobre o mundo, mas de discorrer sobre como falamos sobre o mundo. Ela está intrinsecamente ligada a um recuo, a tomar distância das coisas e se perguntar sobre que relação têm as pessoas com as coisas quando lidam diretamente com elas. Sua aparência de inutilidade lhe cola à pele inevitavelmente, pois se afasta deliberadamente de um contato imediato com o mundo para justamente poder contemplar, tanto quanto possível, mesmo que não possa saltar sobre a sua própria sombra, a figura de um Mundo que a nós se oferece de imediato e no qual estamos de pronto inseridos.

Pode passar como uma curiosidade, mas não pode ser puramente acidental que o mundo grego nos legou uma das mais potentes defesas do ato de filosofar. Diógenes Laércio, de quem pouco sabemos, mas que escreveu um livro repleto de informações sobre os primeiros filósofos, as Vitae Philosophorum, nos relata que Pitágoras, na época fundadora da filosofia, já longínqua para os próprios gregos, comparava a atitude do filósofo ao que ocorre em um festival, em um jogo olímpico ou, se você quiser, em uma final de campeonato: algumas pessoas estão lá para competir; outras, para assistir ao evento; outras ainda, para fazer negócios e vender os mais diferentes produtos. Todas estão, de um modo ou outro, atarefadas no mundo, imediatamente inseridas nas formas de vida. O filósofo é quem assiste a tudo isso, sem envolver-se diretamente com nenhuma destas ocupações. Há ainda lugar, nos dias de hoje, a esta posição fora de todo lugar? É o que pretende fazer o filósofo, a despeito das dificuldades que cercam esta sua atitude intelectual, na medida em que se quer situar em ruptura com aquilo mesmo em que está inserido. Ademais, continua ainda hoje a sofrer a hostilidade dos que, imersos nas tarefas da vida, reproduzem o velho embate entre Reflexão e Cidade. Porém, valeria a pena viver uma vida sem refletir sobre ela do modo mais radical? A resposta de Platão é muito clara, quando faz Sócrates dizer, na Apologia, que ho anexetastos bios ou biôtos anthrôpôi, a vida que não passa por um exame – no sentido radical de pôr à prova - não vale a pena para um homem.

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