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Política

Declaração de Bolsonaro sobre a fome no país é rebatida por dados e especialistas

Em café da manhã com jornalistas estrangeiros no Planalto o presidente afirmou ser uma “mentira” dizer que existe fome no Brasil.
Thiago de Lima Martins Pereira, de 33 anos vive com a esposa e dois filhos e vive do que consegue catar para reciclar. Nem sempre o dinheiro consegue arcar com as despesas da familia e ele precisa catar comida nas lixeiras Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Thiago de Lima Martins Pereira, de 33 anos vive com a esposa e dois filhos e vive do que consegue catar para reciclar. Nem sempre o dinheiro consegue arcar com as despesas da familia e ele precisa catar comida nas lixeiras Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

RIO e BRASÍLIA — Durante café da manhã com jornalistas estrangeiros no Palácio do Planalto o presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta sexta-feira ser uma “mentira” dizer que existe fome no Brasil . Para o presidente, há um exagero em se dizer que a fome seja um problema crônico no país. Bolsonaro disse que “não se vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético” e criticou o que chamou de “discurso populista”.

A declaração foi em resposta a um repórter do jornal espanhol “El País” sobre planos do governo federal para conter o aumento da pobreza e da fome no país.

— Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países por aí pelo mundo — disse Bolsonaro.

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A declaração do presidente é rebatida por estatísticas recentes de instituições como a ONU, o IBGE e o Ipea, e foi criticada por especialistas em economia e evolução de índices sociais no país.

Relatório do Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e Caribe 2018, divulgado em novembro pela ONU, mostrou o crescimento da fome no Brasil. O estudo estimou que a desnutrição alcançou até 5,2 milhões de brasileiros entre 2015 e 2017, ante os 5,1 milhões calculados para os triênios 2014-2016 e 2013-2015. No triênio 2000-2002, 18,8 milhões de brasileiros sofriam com a fome.

LEIA : 'A fome é um Holocausto silencioso que não gera debate', diz cientista

Depois do encontro com correspondentes no Planalto, Bolsonaro se irritou ao ser questionado por outros jornalistas a respeito das declarações sobre a fome. Ele recuou e reconheceu que “alguns passam fome”:

— Olha, o brasileiro come mal. Alguns passam fome. Agora, é inaceitável num país tão rico como o nosso, com terras agricultáveis, e água em abundância.

Questionado se estava voltando atrás na declaração de mais cedo, Bolsonaro ameaçou encerrar a entrevista:

— Ah, pelo amor de Deus, se for pra entrar em detalhe, em filigrana, eu vou embora. Eu não tô vendo nenhum magro aqui, tá certo? Temos problemas alimentares no Brasil? Temos, não é culpa minha, vem de trás, estamos tentando resolver.

Segundo o IBGE, em números relativos a 2017, há 54,8 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza, dos quais 25,5 milhões (45%) estavam no Nordeste. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que a proporção de miseráveis no país subiu de 6,6% para 7,4% de 2016 para 2017. O Ipea classifica como miseráveis os que vivem com um rendimento médio domiciliar per capita de até um quarto do salário mínimo.

O economista e diretor da FGV Social, Marcelo Neri, afirma que estudos revelam aumento também na percepção de pobreza.

— Os dados mostram que, ano passado, 30% dos brasileiros diziam que não tinham dinheiro para comprar alimentos necessários a si e sua família — cita. — Extrema pobreza é não ter dinheiro para atender despesas alimentares. Há uma piora social nos últimos anos. Isso se relaciona com a recessão, o congelamento do Bolsa Família em 2015 e a maior inflação no mesmo ano.

Vulnerabilidade

Para o coordenador executivo da Ação da Cidadania, Kiko Afonso, a fala de Bolsonaro demonstra que ele não conhece o Brasil:

— O presidente mostra desconhecimento sobre o que é fome e insegurança alimentar, porque a pessoa não precisa estar esquelética para estar nessa condição.

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Francisco Menezes explica a relação entre o aumento da pobreza no país e o aumento da fome:

— A gente associa a questão da fome a uma situação de vulnerabilidade a essa condição. Não significa que as pessoas estão permanentemente em estado de fome, mas elas buscam as mais diversas formas para sanar essa carência.

A declaração de Bolsonaro repercutiu também no mundo político. O senador Otto Alencar, líder do PSD, se disse “estarrecido”:

— Ele não sabe o que se passa no interior do Brasil. Será que ele não entende a miséria da periferia do Rio? Não sabe que tem 15 milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza? É um disparate.

Líder do PSL no Senado, Major Olímpio (PSL) minimizou as palavras:

— Vejo como uma força de expressão dele. Não foi baseada em dados científicos. Ele quis dizer que, com abundância do Brasil, com a capacidade de produzir alimentos, é raro morrer de fome.

Brasília: fome a 5km do Palácio do Planalto

A baiana Ivania Sousa Santos, de 36 anos, aquece o que sobrou do feijao para que ele não azede. Ela e sua família nao possuem geladeira, onde vivem não há energia elétrica. Moradora do Cerrado CCBB, um pedaço de terra com cerca de 25 familias ao lado do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), local usado para a transição do governo, Ivania sobrevive de doações e reciclagem, mas muitas vezes precisa recorrer ao lixo em busca de alimentos. Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
A baiana Ivania Sousa Santos, de 36 anos, aquece o que sobrou do feijao para que ele não azede. Ela e sua família nao possuem geladeira, onde vivem não há energia elétrica. Moradora do Cerrado CCBB, um pedaço de terra com cerca de 25 familias ao lado do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), local usado para a transição do governo, Ivania sobrevive de doações e reciclagem, mas muitas vezes precisa recorrer ao lixo em busca de alimentos. Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Gabriel Shinohara

Aos 50 anos, Cícero Bitu conta que passou fome. A última vez que se viu desamparado, ao lado da mulher, Ivânia Santos (foto), e dos três filhos, foi ano passado. “Eu não tinha o que nós (sic) comer. Meu sobrinho fez uma feirinha e me deu”. Eles vivem em uma espécie de acampamento a 5 km do Palácio do Planalto, local de trabalho de Bolsonaro. O dinheiro do Bolsa Família não é suficiente para todo o mês. A família precisa recorrer a doações e restos do lixo.

Rio: divisão da comida com o coração

Maxsuel cozinha na calçada para os filhos, em Cobrex, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo
Maxsuel cozinha na calçada para os filhos, em Cobrex, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

Carolina Heringer

Para manter os quatro filhos minimamente alimentados, Maxuel Rismo, de 29 anos, precisa abrir mão de algumas refeições na casa humilde no bairro Codex, em Nova Iguaçu. O cardápio inclui, na maioria das vezes, arroz e feijão. Quando sobra um pouco mais de dinheiro, o rapaz compra ovos. “Esta semana ganhamos um bolo, e foi o café da manhã de meus filhos e da minha esposa. Às vezes ficamos sem comer para dar comida para eles. Digo que é uma escolha feita com o coração”.

Bahia: nem todos têm dinheiro para comer

Paloma de Jesus, de 18 anos, mora no bairro de Fazenda Coutos, em Salvador: "Nem me lembro mais do dia em que cozinhamos e comemos uma boa refeição”. Foto: Regina Bochicchio / Agência O Globo
Paloma de Jesus, de 18 anos, mora no bairro de Fazenda Coutos, em Salvador: "Nem me lembro mais do dia em que cozinhamos e comemos uma boa refeição”. Foto: Regina Bochicchio / Agência O Globo

Regina Bochicchio

“Nem me lembro mais do dia em que cozinhamos e comemos uma boa refeição”, conta Paloma de Jesus, 18 anos, mãe solteira de dois filhos. Diariamente, ela sai do bairro popular Fazenda Coutos para pedir dinheiro numa avenida movimentada de Salvador. Quando consegue R$ 30, é boa quantia. Ontem, alguém lhe pagou um lanche. O menino comeu mingau, que a vizinha deu.“Nem todo mundo tem trabalho, nem todo mundo tem dinheiro para comprar comida”, diz, sobre a frase de Bolsonaro.

Piauí: ‘Vivemos da misericórdia alheia’

A dona de casa Francisca das Chagas Silva, de 43 anos, mora no povoado Bom Sossego, zona rural de Teresina. Diabética, vive na casa da nora com outras oito pessoas. Na última quarta, desmaiou após tomar um dos oito remédios diários porque não tinha comido antes. Foto: Efrem Ribeiro / Agência O Globo
A dona de casa Francisca das Chagas Silva, de 43 anos, mora no povoado Bom Sossego, zona rural de Teresina. Diabética, vive na casa da nora com outras oito pessoas. Na última quarta, desmaiou após tomar um dos oito remédios diários porque não tinha comido antes. Foto: Efrem Ribeiro / Agência O Globo

Efrem Ribeiro

A dona de casa Francisca das Chagas Silva, de 43 anos, mora no povoado Bom Sossego, zona rural de Teresina. Diabética, vive na casa da nora com outras oito pessoas. Na última quarta, desmaiou após tomar um dos oito remédios diários porque não tinha comido antes. “De manhã, a gente toma café com farinha, quando tem”. Na sexta, o almoço teve arroz, feijão e um pedaço de banana. “Não tem nada nas prateleiras e na geladeira tem duas salsichas e duas maçãs”, diz ela, que ganha R$ 130 do Bolsa Família.

Rio: garimpo de recicláveis para viver

Wilian Jorge dos Santos, de 38 anos, vive nas ruas do Centro do Rio há três anos. Para sobreviver, trabalha garimpando produtos recicláveis que são posteriormente vendidos por ele a ferros velhos. Consegue lucrar, por dia, de R$ 12 a R$ 20. Ele conta que, para se alimentar, depende de doações. Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo
Wilian Jorge dos Santos, de 38 anos, vive nas ruas do Centro do Rio há três anos. Para sobreviver, trabalha garimpando produtos recicláveis que são posteriormente vendidos por ele a ferros velhos. Consegue lucrar, por dia, de R$ 12 a R$ 20. Ele conta que, para se alimentar, depende de doações. Foto: Marcelo Regua / Agência O Globo

Carolina Heringer

Wilian Jorge dos Santos, de 38 anos, vive nas ruas do Centro do Rio há três anos. Para sobreviver, trabalha garimpando produtos recicláveis que são posteriormente vendidos por ele a ferros velhos. Consegue lucrar, por dia, de R$ 12 a R$ 20. Ele conta que, para se alimentar, depende de doações. “Com esse dinheiro, consigo comprar algumas coisas para comer, mas contamos sempre com a ajuda das pessoas que passam por aqui. Muitos nos dão comida. Passamos por muitas dificuldades”.

Maranhão: ‘A gente leva como Deus quer’

Tajaçuaba, bairro da zona rural de São Luís, tem um menores IDHs da região. Maria Helena Pereira, de 47 anos, esperava, no fim da tarde de ontem, a hora de dar um punhado de farinha com café para o neto Miguel. No almoço, teve arroz, também com farinha, e um enlatado como “mistura” Foto: Clodoaldo Corrêa / Agência O Globo
Tajaçuaba, bairro da zona rural de São Luís, tem um menores IDHs da região. Maria Helena Pereira, de 47 anos, esperava, no fim da tarde de ontem, a hora de dar um punhado de farinha com café para o neto Miguel. No almoço, teve arroz, também com farinha, e um enlatado como “mistura” Foto: Clodoaldo Corrêa / Agência O Globo

Clodoaldo Corrêa

Tajaçuaba, bairro da zona rural de São Luís, tem um menores IDHs da região. Maria Helena Pereira, de 47 anos, esperava, no fim da tarde de ontem, a hora de dar um punhado de farinha com café para o neto Miguel. No almoço, teve arroz, também com farinha, e um enlatado como “mistura”. Viúva, sem rendimentos, vive com ajuda da filha que trabalha e não consegue se alimentar corretamente todos os dias. “A gente leva como Deus quer”, conta, resignada.