Cultura

Festa Literária das UPPs promete levar autores e grandes editoras ao Morro dos Prazeres

RIO - Na vitrola de ficha da favela ouve-se um audiobook em vez de música; o carro de som sobe e desce as ruas do morro e, no lugar de anúncio de baile, textos de Lima Barreto saem das caixas; a TV do botequim transmite debates entre autores. Cenas como essas serão realidade entre 15 e 18 de novembro de 2012, quando acontecerá no Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, a primeira Festa Literária Internacional das UPPs, a Flupp. A sigla é, ao mesmo tempo, uma provocação à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e uma declaração de que vem dali sua maior inspiração. Parafraseando Caetano Veloso, Paraty é aqui, Paraty não é aqui.

Com curadoria do jornalista e escritor Toni Marques, o evento tem a ambição de marcar lugar no calendário literário mundial - com autores consagrados e a participação de grandes editoras, como na Flip - enquanto afirma sua originalidade nos temas das mesas e na abordagem de literatura (que inclui games e a nova língua das mensagens eletrônicas), sempre assumindo seu caráter de deslocamento, como nas cenas que abrem este texto.

- A escolha do Morro dos Prazeres é bem simbólica disso - explica o escritor e pesquisador Ecio Salles, um dos idealizadores da Flupp e integrante de sua diretoria executiva ao lado da pesquisadora Heloísa Buarque de Holanda, do antropólogo Luiz Eduardo Soares, do escritor Julio Ludemir e do empresário Alexandre Mathias. - Quando surgiu a ideia de fazermos o evento, pensamos: Onde? Na Zona Sul, reafirmando os clichês sobre o Rio? Na periferia, com todas as questões logísticas que isso traz? Veio o óbvio, um lugar no meio da cidade, com uma vista maravilhosa, de um lado para a Zona Norte e de outro para a Zona Sul. Um olhar definitivo sobre a cidade, o 360° que queríamos.

O conselho consultivo da Flupp tem Zuenir Ventura, Paulo Roberto Pires (editor da revista "serrote") e Jailson de Souza e Silva (criador do Observatório de Favelas). Gringo Cardia fará a programação visual do evento. Ainda não estão confirmados patrocinadores - eles garantem apenas que a Flupp já despertou interesse "de empresas de grande porte" - nem autores convidados. Os organizadores, porém, sabem o que querem: autores estrangeiros ou nacionais que atingiram o sucesso publicando de forma independente; best-sellers como Paulo Coelho ou J.K. Rowling; fenômenos de venda locais em regiões do Brasil, mas desconhecidos fora dali; artistas que experimentam novas relações com o livro (do artesanal ao digital) e com o narrar.

Marques lista ainda temas que interessam à Flupp:

- A questão central é: "Qual é a massa do biscoito fino ou qual é o biscoito fino para essa massa?" É uma via de mão dupla. Porque o conceito de cultura para a classe C não pode ser entendido como a formalização do que se imagina que ela já tem, como samba e funk. Um dos temas de mesa seria "O que é a cultura da classe C"? Outro tema são as narrativas colaborativas. Queremos dar espaço a livros feitos por policiais. Porque há literatura de resistência, mas também de ocupação, e será bom ver esse diálogo. Outra ideia é o "Português.BR", que tentará entender como a língua viva se torna mais viva eletronicamente.

A escolha de Lima Barreto - mulato, acusado em sua época de ser coloquial demais, um pesquisador outsider da língua - como autor homenageado se enquadra no conceito da Flupp, explica Marques:

- De uma maneira retrofuturista, ele é o homem desse mundo.

O uso das UPPs, mais que sustentar a brincadeira Flip/Flupp, tem força simbólica. Os organizadores veem na Unidade de Polícia Pacificadora uma forma de pensar a favela como parte da cidade:

- Mas a arma mais poderosa é o livro, que não tem que estar com 15 policiais, e sim com toda a comunidade. Quando isso acontecer, a UPP vai se concretizar - diz Ludemir.

Apesar da localização nada ortodoxa, a estrutura será tradicional, similar à da Flip. Haverá uma tenda para cerca de 400 pessoas. E as mesas serão transmitidas por TVs espalhadas pela favela e telões em outras UPPs. Um segundo espaço - eles negociam o Casarão das Artes - vai abrigar eventos paralelos. E o campo de futebol no alto do morro (usado pela MTV no programa "Rock Gol") pode servir a peladas de autores. Como na Flip, um show abrirá a festa, e crianças terão a Flupp Júnior. Marcio Swk, morador dos Prazeres e fundador do coletivo de grafite Santa Crew, organizará um grupo de grafiteiros para pintar três painéis no evento. E já está previsto um concurso literário nas favelas:

- A ideia é que ele seja tão impactante quanto o "Paraty para mim", da Flip, que revelou João Paulo Cuenca e Santiago Nazarian - diz Ludemir.

Foi na tão citada Flip, aliás, que ele teve a ideia que serviu de estopim para a criação da Flupp.

- Vou todos os anos e acho espetacular, mas lá tem aquilo de que você só é bacana quando é convidado para a festa da Companhia das Letras. Pensamos que poderíamos fazer diferente. Mas não somos uma antiFlip ou Flip do B. Nossa proposta dialoga com ela, completa. Queremos as grandes editoras conosco.

- Não somos uma elite ao contrário - acrescenta Marques.

Luiz Eduardo Soares defende que o papel central da Flupp é preencher uma lacuna.

- Faltava um encontro que fosse inovador, provocativo, que refletisse o Rio dos últimos anos, essa articulação de redes que ignora a topografia criando uma polifonia.

Ou, como diz Heloísa Buarque:

- É uma Flip mais aberta, contemporânea, atenta a esse momento de articulação de saberes, quando o conhecimento se dá de forma colaborativa.