Blog da Amélia Gonzalez


Maria Cecília Almeida e Silva, fundadora do Instituto Pró-Saber — Foto: Divulgação

Conheci Maria Cecília Almeida e Silva há mais de dez anos, quando ainda era editora do caderno Razão Social, suplemento de “O Globo” que atualizava temas sobre desenvolvimento sustentável.

Em entrevista publicada no caderno, a psicopedagoga e criadora do Instituto Pró-Saber se queixou de falta de ajuda, por parte do mundo corporativo, ao seu projeto. Hoje, esse cenário não está muito diferente – “É um toma lá, dá cá. Generosidade, como antigamente tinha, não existe mais”.

Assim mesmo, Maria Cecília conseguiu ampliar o Instituto, que já tem 32 anos, é reconhecido pelo Ministério da Educação e Cultura, foi premiado pela Unesco, tem programa de graduação, pós-graduação e um Laboratório de Pensamento, que prepara professores para a vida. Afinal, “Educação não é negócio”, como Maria Cecília gosta de repetir.

Fui reencontrá-la na semana passada, num evento de lançamento do livro sobre o Pró-Saber. O instituto fica numa simpática casinha branca no Largo dos Leões, Zona Sul do Rio de Janeiro, onde o visitante, logo na entrada, recebe o recado: “Queremos lembrar que 75% crianças brasileiras de 0 a 4 anos não têm acesso a creches e escolas de Educação Infantil.”

Era dia de festa, a casa estava enfeitada. Nossa conversa - para a qual Cecília chamou Paula Padilha, seu braço direito no Instituto, diretora de Projetos e Pesquisa e professora de Filosofia – foi de pensamentos estendidos, como gosto. Falou-se de Paulo Freire, de educação integral, terminamos lembrando E. F. Schumacher, economista alemão morto em 1977 que se batia contra a “economia do gigantismo”.

Quando terminamos a entrevista, os meninos da Orquestra de alunos da Escola de tempo integral Padre Quinha, em Petrópolis (uma extensão do Pró-Saber), começavam a chegar para se apresentarem aos convidados. No Padre Quinha as crianças aprendem, entre outras coisas, a pensar, coisa de que Maria Cecília não abre mão:

“As crianças de hoje estão acostumadas a ter tudo na mão e ficam banalizados, embotados”, acredita ela.

Abaixo, a entrevista na íntegra:

Qual a missão do Pró-Saber?

Maria Cecília - A missão é criar este espaço como um lugar de ensaio de uma utopia concreta. Você ensaia aqui um modo de viver que seria o ideal para acontecer. Quando a pessoa sai daqui ela sai, de alguma forma, com essa experiência do possível. É como diz o (educador) Paulo Freire: o inédito é viável. Ele tem essa certeza. Porque nós estamos vivendo um mundo que nos diz o seguinte: se você nunca fez, então não vai conseguir, não adianta.

Já me disseram que a faculdade do Pró-Saber é muito pequena, que tem que multiplicar. Quer dizer, é difícil ir contra a corrente. Se você faz aqui uma reserva de um ensaio de uma sociedade possível, isso tem que valer alguma coisa. Aí dizem que “a política é assim mesmo”. É esse “assim mesmo” que deve ser rompido. Quero ter a ousadia de considerar a educação como arte, e não como uma medida de troca.

Você defende que a educação precisa começar desde cedo. Por quê?

Maria Cecília – Porque é como se fosse uma pré-natalidade do conhecimento. É uma solução também para a alfabetização. As crianças de classes privilegiadas hoje não têm mais classe de alfabetização. Pode até ter este nome, claro, mas o fato é que elas já chegam sabendo ler e escrever. É o tal currículo oculto.

O que é o currículo oculto?

Maria Cecília – As crianças, em casa, lidam com o computador, com o telefone e outros dispositivos desde cedo e aprendem o código, vão aprendendo a ler. Só vão para a escola para sistematizar este aprendizado.

Mas sempre se falou que as crianças que têm exemplo em casa, de pais que leem, elas aprendem mais rápido...

Maria Cecília – Sempre foi assim. O que faz a diferença, hoje, é o computador. Os pobres não têm esse acesso tão facilitado e já chegam na escola marcados para não aprender.

Na porta do Pró-Saber há a informação de que 75% das crianças com idades entre 0 e 4 anos não têm direito a essa educação infantil...

Maria Cecília – Sim, e as crianças que não precisam de creche têm acesso à creche. Além disso, houve uma certa confusão com a leitura que fizeram sobre o construtivismo, inspirado na obra de Piaget. Para mim, o construtivismo foi a melhor coisa que aconteceu no Brasil, mas entenderam mal, achando que você constrói tudo e tem que recriar a história. Piaget nunca falou isso.

Como pode ser solucionado o problema da educação no Brasil?

Maria Cecília – Precisa resolver a questão da alfabetização. Aqui no Pró-Saber temos uma faculdade que há 15 anos forma professores de ensino infantil até 4,5 anos. Ensinamos de um jeito que o professor habilite a criança para ser alfabetizada. Para isso, ela tem que ter espaço para brincadeiras, para troca.

Qual a base que vocês dão aos professores?

Maria Cecília – A base é permitir, ajudar que elas cresçam como pessoas. Basta dizer que temos aula de Filosofia. Temos também aula de alimentação, que eu acho sensacional: é importante a criança provar todos os tipos de gosto e de textura. As creches, em geral, fazem uma sopinha passada no liquidificador. Uma das coisas importantes é dizer que é bom para a criança ter uma diversidade, aprender a mastigar.

Quando as professoras formadas pelo Pró-Saber chegam às escolas e creches com um pensamento diferenciado, elas enfrentam alguma resistência?

Maria Cecília – É muito interessante, porque para serem formadas aqui elas precisam estar em serviço, ou seja, a aplicação é imediata, elas estão em estágio constante. Quando elas ouvem o que dizemos e aplicam, se há alguma dificuldade, elas trazem para cá as dificuldades. E quando há um impacto entre o que aprendem aqui e o que a direção da escola onde trabalham adota, muitas vezes acontece de a diretora começar a perceber que as alunas dessas professoras são mais calmas, mais alegres, não gritam tanto. E vem aqui, torna-se uma observadora.

Mesmo com um trabalho tão diferenciado e de sucesso, é difícil ainda conseguir ajuda de empresários?

Maria Cecília – Educação se tornou um negócio, e é um toma lá-dá cá. Eles só investem se puderem descontar no Imposto de Renda. Generosidade, como antigamente, não existe mais. Antigamente não existia essa questão de gestão. Pergunte a um entendido em finanças onde você deve aplicar seu dinheiro e ele lhe dirá: em educação e saúde. Porque são as duas coisas que vão pior nesse país. Então uma escola compra a outra, só escapam as religiosas. A questão é que esses investidores pregam que você pode separar a gestão financeira da questão pedagógica, o que não dá. As prioridades, como formação de professores, acabam sendo consideradas como forma de se jogar dinheiro fora. Como eles visam ao lucro imediato, eliminam tudo o que, para eles, é inútil. Filosofia e arte, por exemplo. Quando, na real, as escolas precisariam ser, todas, bilíngues: Arte e Ciência caminhando juntas.

Algumas escolas têm Arte...

Maria Cecília – Sim. Mas não pode ser Arte como enfeite, aquela que sobra na grade. Tem que ser Arte como fundamento.

O que acha das escolas de tempo integral?

Maria Cecília – São a melhor opção, como Darcy Ribeiro já tinha proposto maravilhosamente bem. Numa escola de tempo parcial não se tem tempo para pensar, experimentar.

Como começou o projeto Pró-Saber?

Maria Cecília – Começamos atendendo a crianças com dificuldade de aprendizado. Daí percebemos que o que elas não tinham era um ensino bom e fomos trabalhar numa escola. A partir daí houve várias coincidências. Uma delas é que teve uma moça, do Morro dos Cabritos, aluna da PUC, que estava começando um trabalho no Morro dos Cabritos e perguntou se podíamos montar uma creche lá.

Ajudamos e perguntaram se fazíamos treinamento para professores. Foi indo assim. Nós aqui vivemos uma educação fora do lugar, que rompe com essa necessidade de ter que ter uma finalidade imediata. O trabalho da Paula é propiciar que elas aprendam a ler melhor, a escrever melhor, a terem uma relação diferente com a palavra. Na pedagogia, no mundo que se está vivendo hoje, eu só me lembro do que dizia Manoel de Barros: “As palavras se cansam."

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