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Celina

'As coisas estão melhorando para as mulheres na ciência, mas ainda vemos bizarrices', diz primeira brasileira a ser professora titular em Harvard

Marcia Castro é também a primeira a conseguir uma cátedra dentro do Departamento de Saúde Global e População da universidade americana. Ela é pioneira no uso de ferramentas de demografia para entender as dinâmicas de transmissão das doenças como malária, zika e dengue
Marcia Castro é a primeira brasielira a ocupar o cargo de professora titular em Harvard Foto: Divulgação/Harvard
Marcia Castro é a primeira brasielira a ocupar o cargo de professora titular em Harvard Foto: Divulgação/Harvard

Com mais de 50 anos de História, foi só em março de 2018 que o Departamento de Saúde Global e População, da Universidade Harvard , elegeu a primeira mulher como professora titular. Com isso, Marcia Castro também se tornou a primeira mulher brasileira a ocupar uma cátedra em toda a instituição.

Com foco no estudo de doenças como malária, zika e dengue, ela é pioneira no uso de ferramentas de demografia para entender dinâmicas de transmissões de doenças infecciosas.

Carioca de 54 anos, Marcia é formada em Estatística pela Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ). Quando completou o mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), resolveu sair do país. Em 1998, chegou a Princeton, onde por seis anos se dedicou ao doutorado e pós-doutorado. Nesse meio tempo, começou a fazer um trabalho sobre malária na Tanzânia. Ficou pouco menos de dois anos na Carolina do Norte, onde trabalhou em um departamento de Geografia, e, em 2006, foi contratada como professora assistente em Harvard, onde trabalha até hoje.

Em entrevista ao projeto Celina , Marcia fala sobre o seu processo de aprovação na universidade, sobre os impactos do desmatamento e do aquecimento global na transmissão de doenças e o espaço da mulher na ciência , que, mesmo com avanços, continua limitado.

Como foi o processo para se tornar professora titular em Harvard?

O sistema é um pouco diferente do que ocorre no Brasil. Primeiro, você consegue uma vaga de professor assistente, é promovida para professor associado, para só depois virar titular. É um processo longo. Eles avaliam se o seu trabalho é conhecido internacionalmente, se causou impacto na sociedade e na academia, e o seu engajamento com os assuntos. A universidade pede cartas de recomendação para pessoas que nunca trabalharam com você. Não receber essa resposta pode ser ruim. Você é avaliada pelo conselho da direção da universidade. É uma honra enorme porque muitas pessoas não conseguem ser promovidas nem para professor associado.

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Como você vê o espaço da mulher dentro da ciência?

Eu acho que a tendência é para melhor. As coisas estão melhorando para as mulheres na ciência, mas ainda vemos bizarrices. O simples fato de eu ser a primeira mulher promovida no meu departamento é ridículo. A gente está em pleno século XXI! A maioria dos nossos alunos, quando eu olho quem está fazendo doutorado ou pós-doutorado, é mulher. Quando saiu a notícia da minha promoção, elas ficaram empolgadíssimas. Eu nunca tinha pensado que o departamento nunca tinha promovido uma mulher. Às vezes, você está em um meio com pessoas conservadoras em relação ao papel da mulher na ciência, chega a uma reunião e acham que você é a secretária ou aluna do pós doutorado. Eu já vi uma mulher fazer um comentário em uma reunião e ser ignorada. Minutos depois, um homem fez o mesmo comentário e foi considerado brilhante.

Mas é importante também olhar para as pequenas coisas que estão acontecendo, como a Nasa reconhecer que foram mulheres negras as responsáveis pelos grandes cálculos. Aos pouquinhos há um movimento para reconhecer mulheres que realmente foram e são extremamente importantes, mas que não têm a visibilidade que deveriam. Eu acho que está melhorando, mas ainda há muito para acontecer.

Você aprendeu a usar imagens de satélites e técnicas de análise espacial para entender a dinâmica de transmissão de doenças, o que se tornou marca registrada do seu estudo. Como isso funciona?

Quando eu fiz o meu doutorado em Princeton, fui selecionada para fazer um estágio na Nasa . Fiquei quase três meses em um treinamento sobre o uso de imagens de satélite para aplicação em estudos de saúde. Na Amazônia, por exemplo, isso é mais específico. Tentamos entender a dinâmica da mudança ambiental - e o desmatamento é o principal fator da transmissão de malária na Amazônia - e combinar essas imagens com dados que eu consigo no campo. Tentamos fazer uma análise que incorpore essa mudança ambiental para medir o impacto disso tudo na transmissão.

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Já nas áreas urbanas é um trabalho mais voltado para a dengue. Usamos uma combinação de imagens de satélite, Google Earth etc. Eu tento entender a organização espacial das cidades, modelar a característica de sua organização, e uso isso como uma variável adicional para compreender a distribuição espacial da transmissão de arboviroses como a dengue. A vantagem é conseguir cobrir uma área enorme sem precisar ir a cada canto da cidade, o que é inviável temporalmente e financeiramente. Conseguimos informações de áreas inteiras que só precisam ser validadas com as informações que são recolhidas em campo para ver se refletem a realidade. Não seria possível ter informações completas e sistematizadas se não fossem as imagens.

Como o desmatamento e o aquecimento global influenciam na propagação dessas doenças?

A maneira como a mata é cortada pode criar ambientes favoráveis ao mosquito. Na Amazônia, por exemplo, eles gostam de sombras. Todos os projetos de assentamento na Amazônia foram seguidos por picos de malária. É uma relação direta: você aumenta o desmatamento, aumenta a malária. No ano passado, saiu um estudo mostrando que, a cada quilômetro quadrado desmatado, 27 novos casos de malária doença apareciam. É um impacto significativo. Quando ocorrem pequenos picos da doença, verifica-se que uma nova área foi desmatada. Uma mudança no código florestal vai ser um desastre absoluto.

Se você corta uma árvore na Amazônia, está impactando toda a dinâmica climática daquela área, que traz consequências diretas para toda a América do Sul. As chuvas, por exemplo, podem parar ou começamos a ter áreas molhadas e quentes. Tudo isso tem impacto na malária. O que as autoridades não entendem é que cortar uma árvore na Amazônia tem imensa repercussão no ambiente inteiro. Na seca de São Paulo, em 2014, houve a pior transmissão de dengue no estado. Claro! Se tem seca, as pessoas guardam água em casa. Uma coisa piora a outra, nada é independente.

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E a organização das nossas cidades? Elas são propícias para a propagação dessas doenças?

O que a gente vê acontece em todo o mundo, não só no Brasil. O crescimento urbano foi mais rápido do que o planejamento. Quando isso acontece, as condições precárias de infraestrutura podem ser um berço para doenças infecciosas. Um ambiente com muitas pessoas, por exemplo, pode ser um problema para a tuberculose ou doenças transmitidas por mosquitos porque surgem criadouros.

Uma coisa importante é que o Ministério da Saúde não vai resolver isso sozinho. Não é ele que coloca cano na rua! Soluções para melhores condições sanitárias e de saúde pública demandam colaborações entre setores do governo. Soluções que trazem melhorias na condição urbana têm impacto direto na saúde. Esse esforço multissetorial até pode ser encontrado em algumas cidades, mas não como um plano nacional.

Como você enxerga a questão de saúde pública no Brasil?

Atualmente, a coisa está sombria. Não sabemos muito bem aonde vai parar, não tivemos uma sinalização concreta sobre os objetivos dos ministérios. Mas algumas das medidas tomadas são preocupantes, como as reestruturações das coordenações. HIV/Aids era uma coordenação independente e perdeu esse status. A malária ficou junto com Chagas e outras doenças. Toda a estrutura ministerial de programas organizados com os municípios e com lideranças sociais parece estar sendo desestruturada.

A malária tem um programa de eliminação que poderia acabar com a doença e, se acontecer essa desestruturação dos programas, eu não sei se vamos conseguir eliminar a doença. Na verdade, podemos até piorar a situação, o que acontece com muita facilidade. Junte a isso o que acontece com a educação, em que não há mais a preocupação em gerar conhecimento científico. Eu não sei como melhorar condições de saúde e condições sanitárias se não for com base no conhecimento.

*Estagiária sob supervisão de Renata Izaal