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Aluna comete suicídio após ser expulsa da sala por menstruação que vazou (Foto: Getty Images)

Pobreza menstrual no Brasil vai além da falta de absorventes (Foto: Getty Images)

No dia 14 de setembro, o Senado aprovou um projeto de lei que pode atenuar a aflição de pessoas que menstruam. O texto prevê a distribuição gratuita de absorventes para estudantes e pessoas em situação de vulnerabilidade, como aquelas que vivem nas ruas ou estão privadas de liberdade. Ele ainda contempla a criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. A proposta, que agora aguarda sanção presidencial, poderá promover a entrega de absorventes nas cestas básicas distribuídas pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

O então projeto de lei 4.968/2019 foi analisado com mais outros três textos que tratavam do tema. A senadora Zenaide Maia (PROS), relatora, diz que o texto foi apoiado sem modificações e tratado com regime de urgência. A sugestão legislativa chegou em suas mãos quando foi encaminhada à Comissão de Direitos Humanos do Senado por sugestão de uma jovem sem ligação com a política institucional. Foram mais de 35 mil assinaturas no meio digital, em apoio, até que a proposta fosse formalizada.

Para Marie Claire, a senadora lembra que em 2019 houve uma tentativa frustrada na Câmara dos deputados de encaminhar um outro projeto para erradicar a pobreza menstrual, pela deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP).

Médica de formação, uma das principais preocupações de Zenaide são os impactos que o uso de outros materiais inadequados podem causar na saúde dessas pessoas. “Me preocupei em mostrar as consequências do uso do papel higiênico e de outros produtos utilizados para substituir o absorvente. Isso tudo leva à infecção do trato urinário. Sem falar na vaginite [inflamação infecciosa na mucosa vaginal], não é só o psicológico que é afetado como muitos pensam.”

Um  estudo encomendado pela Sempre Livre, mostra também que 73% das mulheres que precisaram recorrer a outros métodos, não recomendados, tiveram problemas da saúde, como candidíase, infecção urinária, cistite, infecção vaginal por fungo ou bactéria. Os materiais utilizados vão desde papel higiênico, jornal, sacola plástica, filtro de café e peças de roupas.

A senadora diz que pessoas do campo da educação haviam manifestado preocupação com o tema e, em especial, como ele aumenta a desigualdade entre meninos e meninas em idade escolar. “É interessante que as escolas foram as primeiras a acordar para este problema pois perceberam que estava ocorrendo evasão escolar de jovens que não tinham acesso a absorventes."

“Muitos foram os casos de eu estar dando aula e a menina falar ‘professora, preciso ir ao banheiro’ e não voltar porque tinha manchado a calça.” O relato é de Fernanda*, professora de uma escola estadual na zona leste de São Paulo. Ela frisa que sangrar na escola era motivo de vergonha. “Houve uma situação em que dei uma prova e se o aluno tivesse um atestado ele poderia fazer outro dia. Marquei a avaliação e uma única menina faltou. Perguntei se alguém tinha notícias dela e uma colega falou 'conversa com a fulana porque ela menstruou e não pôde vir para a escola'.”

Após ouvir a estudante, a reação da professora foi de estranheza, pois menstruação não deve ser motivo para perder uma prova. Depois da insistência da aluna, decidiu ouvir a menina. Ao longo de sua carreira como educadora, esse tipo de situação foi se tornando frequente: garotas perdiam aulas pois estavam menstruadas.

Três dias depois daquela prova, Fernanda encontrou a estudante. “Ela me viu e veio com uma cartinha escrita pela mãe dizendo que não tinha absorvente para ir para escola e achou melhor ficar em casa.” A mãe estava desempregada e o pai tinha abandonado as duas. Absorvente era artigo de luxo. “Perguntei como ela fazia”, disse a professora, e a menina respondeu: “Encho com papel”.

Joana*, 18, estudante em São Paulo, diz que passou por essa situação diversas vezes. “Estudava de manhã e muitas vezes não tinha absorvente, minha mãe não tinha dinheiro para comprar, aí eu não ia para escola. Ou minha mãe precisava sair correndo para pedir dinheiro emprestado para comprar.”

Outras condições de sua escola também aumentavam o seu desconforto no período menstrual. “Não tinha papel e sabonete. Os banheiros eram separados, mas muitas vezes as portas estavam quebradas e a descarga não funcionava.”

Os relatos da professora e da estudante fazem parte de um fenômeno que meninas, mulheres, homens trans e pessoas não binárias, em situação economicamente vulnerável, precisam enfrentar: a pobreza menstrual. Mais de 13 milhões de brasileiros vivem em condições de miséria, ou seja, com menos de R$150 por mês. Mais de 7 milhões desse total – segundo o IBGE – são mulheres. O problema é cada vez mais conhecido – e já foi abordado pela Marie Claire anteriormente –, mas expõe uma realidade muito presente.

A pesquisa da Sempre Livre mostra que 4 em cada 10 mulheres no país são afetadas ou conhecem alguém que precisa lidar com a pobreza menstrual. Sendo que essa é uma questão que atinge até 28% das mulheres de baixa renda.

Medir o quanto uma pessoa é afetada por este problema não se resume em verificar se ela pode ou não comprar absorventes, mas se está imersa num contexto em que tem acesso a condições básicas de higiene. Falta absorvente, mas também faltam água, sabão e moradia digna para acabar com essa adversidade. Segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), 6,5 milhões de meninas vivem em locais em que não há ligação com a rede de esgoto. Assim, precisam utilizar fossas ou valas. Quanto ao abastecimento de água, 570 mil não têm acesso à água canalizada.

O acesso escasso ao saneamento básico, a disponibilidade de sabonete, ou mesmo a segurança de que poderá utilizar um banheiro com uma porta e tranca, como o caso de Joana, são fatores a serem considerados, explica Anna Cunha, Oficial do Programa de Saúde Sexual e Reprodutiva do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).

Um estudo publicado neste ano pelo UNFPA, que analisa como as escolas estão equipadas para garantir condições para manutenção da saúde menstrual das estudantes, revelou que ao menos 200 mil alunas se encontram  “totalmente privadas de condições mínimas para cuidar da sua menstruação”. Mais de 11 milhões de meninas não têm papel higiênico à disposição nas escolas.

“A pobreza menstrual é um fenômeno caracterizado pela falta de recursos, de infraestrutura mas também pela falta de conhecimento por parte de mulheres e meninas em relação aos cuidados que envolvem a própria menstruação”, afirma a especialista.

“Trata-se de algo que pode afetar sua mobilidade, seu transporte, e coloca a pessoa em situação de não querer se relacionar com outras, com o receio de que estar menstruada possa colocá-la em uma situação de vergonha e isso afeta sua dignidade.”

O que deveria ser tratado como uma reação natural do corpo logo se torna um assunto proibido, comprometendo inclusive o rendimento escolar das jovens. Para Anna, uma das ferramentas para enfrentar o problema é o investimento em educação sexual. “O desconhecimento do assunto leva a situações de medo, de sofrimento emocional, reforça mitos e tabus.”

Novamente, a professora Fernanda cita um exemplo que viveu na sala de aula que demonstra como não é possível presumir que todos saibam o que é a menstruação. No início do Magistério, dava aulas no supletivo, e a maioria de suas alunas eram mulheres mais velhas. Havia ali uma discussão pública sobre o câncer de mama e, em determinada aula, decidiu abrir o espaço para perguntas sobre o corpo e o tópico da menstrução não demorou para aparecer. “Tive que desenhar na lousa para explicar o que era. Muitas ali diziam que menstruação era sangue sujo.” E continua: “As alunas eram avós e não sabiam por que menstruavam e o que isso significava, aí eu decidi explicar. Lembro que uma senhorinha disse: ‘Nossa, você é uma menina e eu sou avó e eu nunca soube disso’”.

Além das estudantes, há outras populações tão ou mais vulneráveis. Carmen Lopes é coordenadora do coletivo Tem Sentimento, que oferece apoio a pessoas em situação de rua de diferentes maneiras. Uma delas é garantir que mulheres tenham acesso a absorventes. “Na nossa sede não distribuímos absorventes no nosso dia, é no dia delas. Temos um espaço hoje para buscar nesse dia que elas precisam. Não é um dia que eu marco. Se elas precisam de absorvente, elas vão até lá, pedem e recebem. O que importa para elas é o hoje, não o amanhã.”

Carmen comenta ainda que a situação de rua é especialmente cruel para as mulheres: “Elas se veem na situação em que precisam pegar qualquer roupa, miolo de pão ou qualquer coisa que encontram para colocar entre as pernas e se proteger, mesmo que se sintam desconfortáveis o dia todo, com aquilo vazando sangue ou que possa colocar a saúde em risco”.

Nos presídios femininos e unidades socioeducativas, a falta de absorventes se repete. Um relatório feito pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, revelou que 75% das unidades não fornecem o produto às mulheres. O defensor público Leonardo Biagioni, um dos responsáveis pelas inspeções, explica que a Lei de Execução Penal garante assistência material, como itens de higiene, a essas pessoas. O Conselho Nacional de Política Penitenciária também tem uma norma específica sobre o assunto: “Pessoas que menstruam deveriam receber ao menos 15 absorventes, ou seja dois pacotes, por mês”.

Há outras questões ali dentro, explica. 70% das unidades não entregam sabonetes em quantidades suficientes e 85% das unidades estavam racionando água durante a pandemia. “Não há reposição do vestuário [uniforme e peças íntimas]. Nenhuma das unidades têm equipe mínima de saúde. A higienização também não é adequada, as medidas previstas não são suficientes. O que verificamos na pandemia foram mais violações de direitos.”

Rebeca*, 37, egressa do sistema carcerário em São Paulo confirma o que foi verificado pelo defensor: “Era um kit para cada uma das presas, mas chegava uma época em que a gente precisava cortar o sabonete no meio para dividir com as outras companheiras. O mesmo kit a gente dividia também. Um sabonete durava mais ou menos duas semanas. E o absorvente, que era entregue apenas uma vez, durava três ou quatro dias”. As mulheres que não recebiam visitas precisavam se virar com miolo de pão ou pedaço de espuma do colchão.

A falta de higiene e o uso de materiais inadequados para conter o vazamento podem acarretar questões graves de saúde, explica a ginecologista Ana Teresa Derraik, em parecer semelhante ao da senadora Zenaide Maia. “O sangue é um meio em que microorganismos se desenvolvem, então o sangue menstrual que vem da cavidade uterina, atravessa o colo do útero e a vagina e logo tem que ser eliminado porque se ele fica abafado, a bactéria cresce e se prolifera.”

O resultado disso pode vir na forma de uma grave infecção que pode levar à sala de cirurgia. “O grande problema é o risco dessa infecção ascender, ou seja da infecção subir além do canal vaginal para o útero, para a trompa e para o ovário, causando o que chamamos de doença inflamatória pélvica, que é um quadro que tem consequência abscessos intra-abdominais que precisam ser resolvidos com cirurgia.”

A ginecologista reforça que o debate possui, por outro lado, uma dimensão política, pois as necessidades individuais das mulheres não são levadas em conta pelo Poder Público. “Essa questão do absorvente tem um cunho político, social em relação ao corpo da mulher, muito maior do que a gente pode imaginar no primeiro momento. O absorvente até o momento não compõe as cestas básicas, mesmo aquelas que têm material de higiene pessoal. É como se essa parte da higiene não existisse e não fosse problema para as famílias.”

Em São Paulo, uma proposta suprapartidária é encabeçada pela deputada estadual Marina Helou (Rede), unindo desde Leci Brandão (PCdoB) até Janaína Paschoal (PSL), irá promover ações para conscientizar a população sobre a menstruação, ao criar a política pública “Menstruação Sem Tabu”. Se aprovado, também irá distribuir absorventes gratuitamente, assim como fornecer incentivos fiscais para reduzir o preço deste item higiênico. A iniciativa se encontra parada na Comissão de Defesa e dos Direitos das Mulheres da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).

Além dos projetos que tramitam no Congresso, uma forte mobilização que envolve mais de mil meninas tem pressionado parlamentares pela aprovação de propostas que garantam o direito a menstruar com dignidade através do clube Girl Up. E já conseguiram a aprovação em duas unidades federativas: no Distrito Federal e Rio de Janeiro. Por meio das leis aprovadas, conseguiram a inclusão de absorventes nas cestas básicas.

“Bem no início da quarentena, as meninas começaram a pesquisar alternativas para mudar esse quadro preocupante: fazendo uma arrecadação de itens de higiene menstrual e ‘bater na porta’ dos deputados para criarem projetos de leis que abordam esse assunto. Então, com essa decisão ‘super mega ultra’ difícil decidimos simplesmente fazer os dois”, explica Rebeca Sousa, líder do Girl Up Malfatti (clube em Sergipe).

Sobre a importância do projeto, agora aprovado, Zenaide Maia conclui de forma enfática e otimista: “Quando a gente defende as mulheres, a gente defende no mínimo 52% da população”.

*Os nomes são fictícios a pedido das entrevistadas.