Violência em Costa Barros não poupa nem a UPA. Além de sofrer com influência de uma das facções do tráfico, unidade tem diversas marcas de balas Foto: Guilherme Pinto / O Globo

Tráfico limita acesso a UPAs e põe atendimentos na linha de tiro

Em duas áreas do Rio, pacientes são impedidos pelo crime de acessar unidades

Violência em Costa Barros não poupa nem a UPA. Além de sofrer com influência de uma das facções do tráfico, unidade tem diversas marcas de balas - Guilherme Pinto / O Globo

por Carina Bacelar e Vera Araújo

Já com o motor e a sirene ligados, uma ambulância está prestes a sair para socorrer um baleado grave. O objetivo seria partir às pressas da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Costa Barros até um hospital de emergência. A vítima, atingida por três tiros, corre risco de morrer. Mas um clique da fechadura do veículo, do lado de fora, desperta a atenção dos ocupantes: a porta da ambulância é aberta. Dois jovens, de bermudas e sem camisas, ostentando cordões e pulseiras de ouro, metem armamentos pesados para dentro do carro. Um deles berra, se dirigindo ao paciente: “Tu é alemão, tu é alemão! Vou te picar todo!”. Entre o ferido e os traficantes, uma experiente enfermeira tem um fuzil apontado para o peito. De imediato, ela entende a mensagem: o baleado morava numa favela rival à dos traficantes que invadiram a ambulância, e a sentença dele é a morte.

As fronteiras criadas pelo tráfico em áreas de exclusão social do Rio fazem com que servidores da saúde, que trabalham em algumas UPAs 24 horas, se “adaptem” - expressão usada pelos próprios funcionários. Na UPA de Costa Barros, situada no meio de territórios dominados por facções rivais, médicos e enfermeiros só podem atender pacientes que vêm de um dos lados, o que controla a unidade. Os demais são obrigados a se deslocar até a UPA de Ricardo de Alburquerque. Na UPA da Maré, o acesso de moradores de parte das comunidades é vetado por traficantes da facção que domina a Vila do João, área em que está a unidade de saúde. Situadas em áreas de risco, as UPAs da Vila Kennedy e Manguinhos são alvo de tiroteios, enquanto as do Complexo do Alemão e da Cidade de Deus tiveram que mudar protocolos para, sem estrutura hospitalar, atender baleados em confrontos.

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UPAs só para alguns

Alguns funcionários não conseguem se adaptar ao controle do tráfico e à presença da violência nas unidades e pedem para sair. Na UPA de Costa Barros, por exemplo, não há estatística oficial, mas calcula-se que cerca de 50 profissionais já foram transferidos do local.

Encravada num campo de futebol, no meio de um brejo, a UPA de Costa Barros é a única presença do Estado no bairro. Ela fica no meio do fogo cruzado entre os Complexos da Pedreira e do Chapadão. Isso se reflete em suas paredes, onde há dezenas de marcas de tiros que as atravessam como se fossem de papel. Na região, os bandidos dividiram as unidades de acordo com a proximidade com seus territórios. Na unidade de Costa Barros, municipal, só é atendido quem vive no conjunto de favelas da Pedreira. O restante é considerado inimigo. Traficantes do Chapadão, da facção rival, dão o troco. A UPA estadual de Ricardo de Albuquerque é a deles. Munidos de rádios, “olheiros” do tráfico observam quem entra e sai. Não há como fugir à regra.

Quando alguém, por azar, cai na UPA “errada”, traficantes caçam o suposto invasor, como ocorreu no episódio da ambulância, ocorrido há cerca de dois meses. Era fim de uma tarde de sexta-feira, dia do baile do morro. Fazia frio, mas os traficantes estavam sem camisa para mostrar o poderio bélico no punho e na cintura. A enfermeira X., que ficou sob a mira de um fuzil, conta que evitou uma carnificina na ambulância usando como arma a frase certa:

— Se o tiro fosse disparado, pegava em mim, no paciente e no médico. E ainda tinha a namorada da vítima, uma adolescente, conosco na ambulância. Iam matar todo mundo — lembra a profissional, que atua há mais de 20 anos na área de saúde — Falei: “o paciente já está grave. Vocês não precisam matá-lo”. Só ouvi o cano de uma arma batendo na ambulância. Um deles gritou: “Se está grave mesmo, tia, então vocês podem levar. Saímos em disparada.

A enfermeira estava certa. O paciente não chegou vivo nem ao centro cirúrgico do Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo, a 12 quilômetros da UPA de onde partiram.

— Na hora, a gente vira leoa. Mas, quando baixou a adrenalina, percebi que tinha feito xixi nas calças — relembra X.

PACIENTES NÃO PODEM ATRAVESSAR ÁREA DE RIVAIS

‘Eles não vêm porque se entrar pela Avenida Brasil, até chegam na UPA. Mas se entrarem pela comunidade, são embarreirados. Cada um sabe seu espaço’

- Z. Funcionário da UPA da Maré

Por causa da guerra entre facções na Maré, ocorre processo semelhante ao da UPA de Costa Barros. A unidade fica na Vila do João, dominada por uma das facções que disputam a região. Quem mora do outro lado da Linha Amarela, em comunidades como Nova Holanda e Parque União, dominadas pela maior facção criminosa do Rio, não podem atravessar o território dos rivais e chegar à unidade. Apesar de não haver nenhuma ordem expressa para que os médicos da UPA recusem pacientes das áreas de rivais, segundo funcionários, eles simplesmente não aparecem mais.

— É raro (aparecer alguém). Andando pela Avenida Brasil, até poderiam chegar na UPA. Mas se entrarem por dentro da comunidade, como geralmente fazem, são embarreirados. Cada um sabe seu espaço. Acabam indo para o Hospital Getúlio Vargas, para a UPA da Penha — explicou um médico da unidade.

O que outrora foi um símbolo da ação do Estado em um território conflagrado, a UPA da Maré, a primeira a ser inaugurada no Rio, em 2007, tem restringido atendimentos quando um tiroteio se aproxima da unidade. Apesar de ser raro, recentemente, ela parou as atividades por algumas horas depois de uma ameaça do tráfico.

— Outro dia teve atendimento restrito porque um traficante entrou aqui dizendo que ia fazer e acontecer. Pronto, fechamos — contou um profissional da UPA.

Como outras UPAs de áreas conflagradas, a unidade da Maré se acostumou a receber baleados. Lá, os médicos tentam estabilizar o paciente e transferi-lo o quanto antes para um hospital. Só neste ano, deram entrada no local oito baleados. Dois deles morreram durante o socorro.

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'Não dá para ficar tranquilo aqui dentro'

Contêineres da UPA não resistem aos tiroteios - Guilherme Pinto / O Globo

Em Costa Barros, não foram poucas as situações de risco vividas pelas equipes da UPA. Em outro episódio, mais uma vez, a experiência da enfermeira X. salvou a vida de outro incauto que foi parar por lá. Depois de sofrer uma queda de moto, um rapaz chegou à unidade e, apesar do bom atendimento, jurou o médico de morte, caso ficasse com sequelas. Alguém, não se sabe quem, ouviu a ameaça e contou para um dos chefes do tráfico da região. Alguns minutos depois de avisado, entra o tal gerente do crime na UPA, com cordão de ouro no pescoço e arma na mão.

— Ele perguntou para as pessoas da sala de espera se alguém tinha visto o paciente que ameaçou o médico. O pessoal disse que não sabia. Aí ele falou: “Quero que respeitem todos aqui: do faxineiro ao médico”. Do lado de fora, havia outros garotos armados — lembra funcionária.

Mas o paciente que ameaçou os médicos retornou à UPA para buscar sua moto — o que chamou a atenção dos traficantes que o queriam longe dali.

— Ele levou uma surra danada. Disseram que ele nunca mais deveria pôr os pés na nossa UPA. Quando acabou tudo, desmaiei. O médico se trancou no banheiro, e o auxiliar de portaria ficou petrificado na recepção — contou a franzina enfermeira, que defende o local com unhas e dentes — Se sairmos daqui, como fica esse povo? A briga é entre eles. A gente está aqui para ajudar.

Mas nem sempre alguém aparece para “proteger” o corpo de funcionários da unidade. Certa vez, um médico perguntou a um bandido que pediu “prioridade” no atendimento, se iria lembrar dele quando estivesse do lado de fora. A resposta foi imediata:

— É ruim, hein? A rua é a rua. Não tem essa não. Pode ser o senhor ou qualquer um. Se tiver que atropelar, atropelo.

ARMAS ENTRE PACIENTES E MÉDICOS

Em um total desrespeito à Convenção de Genebra, que prevê proteção especial contra ataques em hospitais e ambulâncias em situações de guerra, no Rio, há casos em que os traficantes entram armados nas UPAs, inclusive portando granadas. Também não são poucas as vezes em que criminosos querem entrar nos veículos de resgate para acompanhar seus comparsas. Uma maneira de intimidar a equipe médica pela força do fuzil. A unidade de Costa Barros criou até uma passagem exclusiva para baleados. Além de priorizar os atendimentos graves, evita o desfile de armamentos pesados em suas instalações. Tudo para evitar que equipes de atendimento e pacientes se desestabilizem emocionalmente.

— Até que, quando a gente pede, os meninos (traficantes) deixam as armas do lado de fora. Mas quando chega o baleado, entram com tudo — conta uma funcionária da UPA de Costa Barros, ressaltando que ninguém para de trabalhar por medo dos armamentos de guerra — Só paramos de atender se as balas entrarem aqui dentro.

‘Até que, quando a gente pede, os meninos (traficantes) deixam depois as armas do lado de fora. Mas quando chega o baleado, entram com tudo’

- X. Funcionária da UPA de Costa Barros

Costa Barros é um dos maiores bolsões de pobreza da Zona Norte. Lá, o Índice de Desenvolvimento Humano — grau de crescimento econômico e qualidade de vida oferecida aos moradores de uma região — é de 0,713, ocupando a 125ª posição do Rio. O índice varia de zero até 1. A avaliação do bairro é considerada de graduação média. No entanto, quem visita Costa Barros vê o retrato da degradação. Esgoto à céu aberto, carros roubados abandonados ao longo das ruas, lixo amontoado em vários cantos. Em alguns casos, o asfalto é arrebentado, formando valas laterais, permitindo a passagem para apenas um veículo de pequeno porte. Em outras, trilhos de trem e móveis impedem o trânsito.

Tiros atingiram até banheiro da UPA de Costa Barros - Guilherme Pinto / O Globo

Mas a UPA de Costa Barros resiste. Trata-se de uma unidade de atendimento secundário, em apoio às clínicas da família. O propósito seria dar um diagnóstico sobre as doenças mais comuns na região, ficando pouco tempo no local, como acontece com os hospitais de campanha utilizados em guerras ou durante epidemias. Por isso a instalação de contêineres. Com o calor do Rio, elas são revestidas com isolante térmico e acústico - o isopor é o material perfeito. Isso fez com que as emergências ganhassem o apelido de "UPAs de isopor".

— A estrutura física não é o problema. Elas não deveriam ter sido instaladas em locais de linha de tiro. Não eram para ficar lá por muito tempo. Ficam vulneráveis. Estamos regredindo à Idade Média. Descendo aos limites da barbárie, onde nem o pessoal da área de saúde é respeitado, apesar de ser a única presença do estado e estar ali para salvar vidas — diz um ex-gestor do alto escalão da administração municipal.

Por estarem na linha de tiro, qualquer momento é hora de se esconder de uma bala perdida. Na unidade de Costa Barros, uma paciente foi baleada quando usava o banheiro. Dependendo da trajetória e da potência da bala, ela chega a atravessar até seis cômodos. Foi o que aconteceu com as duas que entraram pelo refeitório da UPA, um dos locais mais vulneráveis. Não adiantou nem uma delas amortecer na luminária e num armário de ferro.

— Não dá para ficar tranquilo aqui dentro. Dá um pavor na hora dos tiroteios. É um corre-corre danado. Já teve colega que se escondeu dentro da lixeira. Uma enfermeira, grávida, tentou se abrigar debaixo da cama. Mas a barriga estava grande e ela não conseguir entrar. Os pacientes ainda são mais apavorados do que a gente — afirma uma funcionária.

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Atendimentos param quando tiros começam

Balas perfuraram 18 vezes a estrutura da UPA da Vila Kennedy - Carina Bacelar / O Globo

Enquanto na UPA de Costa Barros os furos provocados pelos tiros estão expostos, na unidade de Vila Kennedy, em Bangu, os buracos de balas são tapados até com esparadrapos. Avisos de papel colados na parede e quadros também servem para escondê-los. Um funcionário conta que é uma tentativa de privar a equipe e os pacientes de uma constatação que vem, inevitavelmente, com o som das rajadas: de que aquele é um local perigoso. Para esses profissionais de saúde, "o que os olhos não veem, o coração não sente".

— Todo mundo tem medo, mas o clima da equipe é tão bom que ninguém quer sair — diz um profissional da unidade, poucos minutos depois de mais um tiro ser ouvido do lado de fora.

Na borda da Avenida Brasil, a UPA fica ao lado de uma movimentada praça da Vila Kennedy, o que não significa que ali seja um local seguro. Havia uma feira de drogas no local antes de a UPA ser erguida.

Em março, uma bala atingiu as costas de uma funcionária da própria unidade, enquanto trabalhava na sala amarela, destinada a pacientes que precisam de atendimento com urgência. Quando os tiroteios se intensificam do lado de fora, a UPA para. Funcionários deixam de atender para abrigar pacientes — e a si mesmos — no local mais seguro possível, o que varia de acordo com a direção dos tiros. Há, ao todo, 18 marcas de bala nos contêineres da UPA.

‘Todo mundo tem medo, mas o clima da equipe é tão bom que ninguém quer sair’

- Y. Funcionário da UPA da Vila Kennedy

Minutos antes de a reportagem do GLOBO chegar ao local, na última quinta-feira, esse protocolo do medo, que costuma se repetir pelo menos uma vez por semana, foi acionado. A UPA, procurada até por quem mora em Campo Grande por causa da qualidade do atendimento, estava com a sala de espera vazia. Um carro de polícia fica posicionado a poucos metros da emergência, em uma praça da comunidade.

— Mas isso não nos deixa mais seguros — disse um dos funcionários, explicando que os confrontos acontecem quando policiais avistam traficantes.

A enfermeira baleada na sala amarela, por sua vez, se recuperou e quis continuar trabalhando na UPA.

INVASÃO E TIROS

A rotina de tiroteios também influencia o atendimento na Unidade de Manguinhos. Em uma madrugada de maio, que deveria ser um dos momentos de maior calmaria na sala de espera, de repente, são ouvidos muitos tiros. Aos gritos, funcionários orientavam pacientes a fugir dos disparos.

— Pra cá, pra cá! — gritou um homem.

Um grupo de pacientes começou a correr. Uma delas, carregada, estava desmaiada — se assustou com o tiroteio.

Policiais na entrada da UPA de Manguinhos - Pablo Jacob / O Globo (09/09/2011)

Naquele momento de pânico, registrado em vídeos que se espalharam pelas redes sociais, a UPA foi atacada a tiros. Traficantes dispararam quando se depararam com um grupo de PMs chegando à unidade, levando um suspeito baleado. Médicos, enfermeiros e pessoas doentes foram obrigadas a se refugiar, abaixadas, nos fundos.

Já a UPA do Alemão, que não fica na linha de tiro, foi alvo de vândalos em 2014. A unidade foi praticamente destruída após um confronto entre traficantes e policiais no morro. Dias depois, uma senhora que faz parte de um grupo engajado por melhorias na comunidade, deixou escapar que o local foi atacado por engano. O plano dos bandidos era atacar a UPP, e não a UPA. Uma confusão gerada pelas siglas.

Na Cidade de Deus, frequentemente os tiroteios impedem que médicos, sem conseguir deixar a comunidade, troquem o plantão. Por causa dos confrontos constantes na comunidade, a UPA já atendeu, de janeiro a julho, 49 baleados. No mesmo período do ano passado, foram 25.

— Como estamos em uma área de conflagração, é importante prepararmos nossos funcionários para essa nova situação. Eles são treinados em um programa de humanização, que explica como lidar com situações de extremo estresse dos pacientes e acompanhantes — afirma Ronald Munk, presidente da Empresa Pública de Saúde do Rio de Janeiro (RioSaúde), entidade municipal que administra a UPA da Cidade de Deus. Segundo ele, aumentou o número de pacientes baleados idosos e do sexo feminino — perfil que geralmente abarca alvos de balas perdidas.

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Meia 'cidade' de baleados

Homem chega baleado na barriga ao Hospital Getúlio Vargas - Marcelo Theobald / O Globo

As ambulâncias pararam de chegar há quase uma hora, o sereno cai do lado de fora e uma das noites mais frias do ano parece ser também o início de um plantão calmo no Hospital Getúlio Vargas — algo um tanto raro na unidade de saúde. De repente, um carro preto sobe a rampa das ambulâncias. O motorista se apressa em deixar seu posto e interrompe o silêncio que reinava por ali:

— Ajuda aqui gente, é baleado! Na barriga e na perna! — grita, abrindo a porta de trás.

É a senha para a emergência se transformar. Uma maca chega em segundos, assim como uma equipe médica que parece ter simplesmente surgido. Levam o homem correndo para a sala de trauma. Consciente, ele diz seu nome, conta para Taciana Medeiros, a cirurgiã que comanda aquele atendimento, que estava andando de moto quando foi atingido por dois tiros. Logo se descobre que é um tiro só, e o da perna não existia. Um enfermeiro afunda seu dedo no buraco da bala — é preciso saber o que foi atingido. Já sem roupas, o baleado diz que está sentindo frio. Uma, duas, três vezes. Na quarta, pergunta se isso quer dizer que ele está morrendo.

— Você não tá morrendo não, só tá com frio — responde, com uma doçura enfática, o enfermeiro Eduardo Paulino. Ele mesmo, afinal, também tem frio, e usa um jaleco emprestado de um médico chamado Alexandre. Enquanto isso, ao menos cinco enfermeiros se algomeraram em frente a um armário para buscar todos os remédios e materiais necessários para "a hora de ouro": no jargão médico, o momento de estabilizar e aliviar a dor do paciente. Um outro grupo preenche fichas. Ao final de tudo, quase a caminho da tomografia, o homem agradece a Eduardo:

— Muito obrigado, viu, doutor.

— Obrigado não, a gente está fazendo nosso trabalho — retruca o enfermeiro.

NÚMEROS DE GUERRA

Cenas dignas de filmes de guerra são presenciadas diariamente em emergências da rede pública do Rio. Só em 2017, 3.386 baleados foram atendidos por equipes de hospitais federais, estaduais e municipais do Rio, de Nilópolis e Duque de Caxias. Há cada vez menos tiros de revólver e cada vez mais de fuzil. Se todos esses feridos chegassem ao mesmo tempo em unidades da rede estadual, lotariam todos os 2.893 leitos disponíveis e ainda faltariam 493 camas para acomodá-los. O número é tão grande que é comparável à população de uma cidade. Todos os baleados, juntos, perfazem 62% da de Macuco, o menor município do estado.

— Às vezes chegam dois, três balados por dia. Como médica de emergência, tenho medo em todo lugar vou no Rio. Porque eu sei da realidade, vejo isso todos os dias. Esse é meu dia a dia. É medicina de guerra o que a gente faz — define Taciana, ou “Taci”, como a equipe do Getúlio Vargas gosta de chamá-la.

Ranking dos hospitais do Rio com mais casos

Número de atendimentos por perfuração de arma de fogo em 2017

Legenda:

Rede Municipal

Rede Estadual

Rede Federal

Local

Atendimentos

HospitaL

Salgado Filho

Méier

409 casos

Municipal

Hospital da Posse

Nova Iguaçu

398 casos

Municipal

Adão Pereira Nunes

Duque de Caxias

369 casos

Estadual

Moacyr do Carmo

Duque de Caxias

328 casos

Municipal

Getúlio Vargas

Penha

304 casos

Estadual

Albert Schweitzer

Realengo

303 casos

Municipal

Alberto Torres

São Gonçalo

272 casos

Estadual

Souza Aguiar

Praça da República

210 casos

Municipal

Carlos Chagas

Marechal Hermes

171 casos

Estadual

Azevedo Lima

Niterói

132 casos

Estadual

Lourenço Jorge

Jacarepaguá

122 casos

Municipal

Miguel Couto

Leblon

94 casos

Municipal

Rocha Faria

Campo Grande

92 casos

Municipal

Bonsucesso

91 casos

Hospital de Bonsucesso

Federal

Santa Cruz

85 casos

Pedro II

Municipal

Jacarepaguá

6 casos

Cardoso Fontes

Federal

Fonte: Secretarias Municipal de Saúde (Rio de Janeiro, Caxias e Nova Iguaçu) e Secretaria de Estado de Saúde

Ranking dos hospitais

do Rio com mais casos

Número de atendimentos por

perfuração de arma de fogo em 2017

Municipal

Estadual

Federal

Hospital

Atendimentos

Salgado Filho

409 casos

Méier

Hospital da Posse

398 casos

Nova Iguaçu

Adão Pereira Nunes

369 casos

Duque de Caxias

Moacyr do Carmo

328 casos

Duque de Caxias

Getúlio Vargas

304 casos

Penha

Albert Schweitzer

303 casos

Realengo

Alberto Torres

272 casos

São Gonçalo

Souza Aguiar

210 casos

Praça da República

Carlos Chagas

171 casos

Marechal Hermes

Azevedo Lima

132 casos

Niterói

Lourenço Jorge

122 casos

Jacarepaguá

Miguel Couto

94 casos

Leblon

Rocha Faria

92 casos

Campo Grande

91 casos

Hosp. Bonsucesso

Bonsucesso

85 casos

Pedro II

Santa Cruz

6 casos

Cardoso Fontes

Jacarepaguá

Fonte: Secretarias Municipal de Saúde (Rio de Janeiro,

Caxias e Nova Iguaçu) e Secretaria de Estado de Saúde

Legenda:

Rede Municipal

Rede Estadual

Rede Federal

Municipal

Estadual

Federal

Há dois anos no hospital, já não se abala com o socorro a baleados, como o flagrado pelo GLOBO na última quarta-feira. Diz que o hospital "mora no seu coração", mesmo com os atendimentos, por vezes escabrosos, que realiza. Já viu pacientes chegarem com membros amputados por balas de fuzil. Outra imagem que ainda guarda na cabeça é a de um baleado que deu entrada no hospital em dezembro. O impacto do tiro lhe rompeu o tórax e jogou o pulmão para o lado de fora do corpo.

— Médico não dorme direito. Não desliga depois de um plantão que você recebe baleado, esfaqueado. Você não consegue deitar e falar: "Ah, agora eu vou dormir".

Bernardo Andrada, de 33 anos, neurocirurgião do Hospital Salgado Filho, já precisou recorrer a calmantes para conseguir uma noite de sono. As balas que atingem a cabeça, foco do seu trabalho, costumam ser as mais trágicas. Quando permitem que o baleado sobreviva, muitas vezes, deixam sequelas graves.

— Nunca chorei no plantão, mas já cheguei a ter um desespero interior. Uma angústia. A gente lida com muito sofrimento, mortes — relata. — Na minha opinião, o clima que a gente vive aqui no Rio é de guerra civil.

Bernardo tem essa impressão não só pelos ferimentos com que se depara. Certa vez, o médico, que também trabalha no Hospital Getúlio Vargas, teve de se refugiar em uma cantina da unidade da Penha, porque tiros atingiam a parede do hospital. Um enfermeiro de lá também lembra que PMs já usaram a guarita dos seguranças para disparar contra traficantes do Morro da Fé.

Atendimento a baleado no Hospital Getúlio Vargas

  • Homem chega baleado na barriga no Hospital Getúlio Vargas Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

  • Uma maca chega em segundos, assim como uma equipe médica que parece ter simplesmente surgido ali Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

  • Rapidamente ele é levado pela equipe para ser atendido na sala de trauma Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

  • Consciente, paciente conta que estava andando de moto quando foi atingido Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

  • Cirurgiã afunda o dedo no buraco da bala para saber quais orgãos foram atingidos Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

  • Equipe médica durante a 'hora de ouro', no jargão médico, o momento de estabilizar e aliviar a dor do paciente Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

  • Exames feitos em paciente baleado no Hospital Getúlio Vargas, verdadeiro hospital de guerra Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

Também é comum que hospitais acostumados a receber baleados socorram os dois lados do confronto ao mesmo tempo: policiais e traficantes. No Salgado Filho, certa vez, um PM e um criminoso feridos chegaram a brigar no corredor. A equipe médica teve que dar um jeito de acalmar os ânimos. No Hospital da Posse, em Nova Iguaçu, o CTI já abrigou, ao mesmo tempo, um caminhoneiro baleado com gravidade e o homem que o assaltou. A bala acabou matando a vítima. O assaltante se recuperou.

O Hospital Alberto Torres, em São Gonçalo, por outro lado, virou um pólo de policiais baleados, que chegam até de helicóptero para o socorro. Com aspecto de clínica de primeiro mundo, a unidade é centro de referência de traumas no estado. No sábado retrasado, entretanto, quem recebeu atendimento de ponta foi um jovem de São Gonçalo, baleado na mão.

EM BUSCA DE BALEADOS

De fala mansa, o também neurologista Bruno Pereira, de 34 anos, desistiu de dar aulas de violão e ser músico para encarar a sala de cirurgia. Quando ainda era estagiário do Hospital Carlos Chagas, em 2009, teve a companhia de uma médica polonesa em um dos plantões. Ela veio ao Rio para ver “ao vivo" como era uma lesão por armas de fogo, já que nunca havia se deparado com uma em seu país.

— Eu disse: "até o fim do plantão você vai ver bastante". E ela viu dois ou três naquela noite — diz o médico, que hoje é plantonista do Hospital da Posse.

Paula Araújo examina paciente na sala vermelha do Hospital da Posse - Marcelo Theobald / O Globo

A violência dos atendimentos, entretanto, exerce um estranho fascínio nos médicos. O Hospital da Posse, em Nova Iguaçu, tinha atendido, até quinta-feira, 398 baleados. Lá, a cirurgia de emergência fica a cargo, nas segundas-feiras, da médica Paula Araújo, de apenas 29 anos. Filha de um aviador e de uma funcionária pública, passou a infância vendo a série Plantão Médico . Mais tarde, já como estudante da Uerj, tomou gosto pelas aulas de anatomia e por "abrir cadáver". Quando chegou na porta da sala de trauma, no primeiro dia da residência no hospital, uma médica mais velha lhe apresentou ao novo local de trabalho:

— Ali é a emergência. Bem-vinda ao inferno — anunciou.

É difícil ver a sala de trauma vazia. Na última segunda-feira, havia dez pacientes. O som dos monitores apitando ao mesmo tempo dava a impressão de que uma trilha de vídeo game tocava ao fundo. A sala, apertada, já chegou a abrigar 20 médicos de uma vez quando, no começo do ano, seis jovens baleados deram entrada na unidade ao mesmo tempo. Naquele dia, faltou sala no centro cirúrgico. São seis no total.

— Quando você abre as seis salas, chega uma hora que você não tem mais o que fazer. Não tem centro cirúrgico. A gente fica exposto — conta o enfermeiro Edemilson Garcia, de 33 anos e 11 só no Hospital da Posse.

Há três meses, os plantonistas da segunda-feira, como Paula e Edemilson, se depararam com um plantão que nada deve a uma guerra civil. Dezenove pacientes, entre esfaqueados e baleados, chegaram ao hospital em 24 horas. Naquele dia, os kits cirúrgicos acabaram e cirurgias tiveram que ser feitas com materiais improvisados, destinados a procedimentos em órgãos diferentes dos operados.

— A gente se acostuma. Infelizmente a palavra é essa — conta Paula.

Depois de casar, em outubro, ela quer se voluntariar para a ONG Médicos Sem Fronteiras e atender feridos em algum país em guerra. Ao menos, em guerra declarada.

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'Rio desenvolveu excelência na medicina de guerra'

Andrucha Waddington dirige uma cena da série "Sob Pressão" - TV Globo / Divulgação

Diretor da série ‘Sob pressão’, Andrucha Waddington se inspirou em rotina de hospitais do Rio para levar às telas histórias do livro homônimo, de Márcio Maranhão. Na TV, haverá histórias de baleados e esfaqueados, assim como nas emergências da vida real.

O que um médico de emergência tem de especial?

Ele vive sob pressão o tempo todo. É solicitado a tomar decisões rápidas e eficazes que definem o destino de seus pacientes. São profissionais que vivem numa rotina frenética, lidando com pessoas entre a vida e a morte.

Como é o estado psicológico dessas pessoas?

Em conversas que tivemos com médicos para a série, muitos falaram sobre a dificuldade de manter o distanciamento de pacientes que chegam com um drama muito grande, além da doença. É difícil segurar a frieza diante de uma falta de estrutura, tanto da parte técnica do hospital quanto do lado emocional do paciente.

A série é ambientada em um hospital do Rio. É uma emergência mais tensa que a média, pelo componente da violência?

Sim. Acho que é tão tensa como em qualquer grande centro que tenha um alto índice de violência. E o Rio desenvolveu uma excelência em medicina de guerra, que é reconhecida no mundo inteiro.

Esse componente da violência também está presente na série?

Sim, a série vai mostrar isso por meio de personagens que chegam ao hospital com casos de bala perdida, violência doméstica, vítimas do tráfico. Todos os casos inspirados em fatos reais.

Como funcionou o laboratório com médicos da rede pública?

Fomos a hospitais, conversamos com as equipes médicas e, além disso, tivemos a consultoria do médico Marcio Maranhão, que durante anos atuou em emergências públicas. Ele é o autor do livro que inspirou o filme e a série.