Política

O dia em que Caetano Veloso recebeu em casa o 'procurador do powerpoint'

Deltan Dallagnol, da Lava-Jato, participou de encontro fechado para debater corrupção
Caetano Veloso e Deltan Dallagnol Foto: Leo Aversa/Pablo Jacob / Divulgação/Agência O Globo
Caetano Veloso e Deltan Dallagnol Foto: Leo Aversa/Pablo Jacob / Divulgação/Agência O Globo

SÃO PAULO - Empratados de comida nordestina, canapés, vinho, água e coca-cola embalaram um improvável encontro há quatro semanas no apartamento de Caetano Veloso de frente para o mar na Avenida Vieira Souto, em Ipanema, no Rio. O compositor recebeu para uma conversa sobre política um dos mais comedidos integrantes da força-tarefa Lava-Jato em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol .

O encontro, que parece saído de uma canção tropicalista, foi "quase clandestino", na definição do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), responsável por levar o procurador à casa de Caetano e Paula Lavigne. Desde o primeiro semestre ela tem promovido bate-papos reunindo artistas e políticos para discutir a conjuntura brasileira. São convidados desde gente mais identificada com a esquerda a grupos mais à direita, com o intuito de vencer diferenças e fortalecer uma pauta comum.

O que Deltan não sabia ao aceitar o convite é que, em entrevistas dadas depois do impeachment de Dilma, Caetano fez críticas sutis, porém afiadas, à Lava-Jato. Aos repórteres Cláudio Leal e Rodrigo Sombra, na "Folha de S.Paulo", citou o aniversário de três anos da operação que "alimentava devaneios de puritanismo". Em outro texto, no mesmo jornal, tratou-a como"parte da histeria moralista" que justificava artigos críticos à operação, citando o jornalista Jânio de Freitas como autor de uma parte deles.

Na noite em Ipanema, o tom belicoso das entrevistas ficou do lado de fora.

— Não houve momento de discordância. Deltan ficou bem à vontade — conta Randolfe, que é carinhosamente chamado de "Sena" nos encontros organizados na casa da amiga Paula Lavigne (além do combate à corrupção, ambos se uniram neste momento por uma articulação em torno da defesa da Amazônia).

A primeira parte do encontro teve a participação de procuradores da Lava-Jato no Rio e de artistas como Marcelo Serrado ("foi muito positivo, vimos com clareza como as forças são unidas para autoproteção"), Christiane Torloni, Thiago Lacerda e Marisa Monte. Convidados mais combativos da esquerda não apareceram.

Observador, no centro da sala, Caetano ficou calado a maior parte do tempo. Deltan se atrasou e chegou depois da meia-noite. O compositor anfitrião pareceu mais à vontade mais tarde, quando a maioria dos convidados deixou o apartamento. Emendou um papo com Deltan, Randolfe e os outros procuradores do MPF que foi até 3 horas da madrugada.

Caetano e Randolfe Rodrigues no encontro com procuradores na casa do artista Foto: Arquivo pessoal
Caetano e Randolfe Rodrigues no encontro com procuradores na casa do artista Foto: Arquivo pessoal

MOTOS E FUSCAS AVANÇAM O SINAL VERMELHO

À frente da investigação que levou a Odebrecht a confessar crimes e fechar um dos maiores acordos de colaboração da história, o procurador ouviu de Caetano o relato do processo que ele moveu em 2011 contra a construtora, na ocasião em que a família Odebrecht decidiu batizar com o nome "Tropicália" um empreendimento de luxo com oito torres em Salvador (BA).

A primeira reação da empreiteira guarda alguma semelhança com a delicadeza dispensada aos procuradores da Lava-Jato e ao juiz Sérgio Moro quando viraram alvo da operação, quatro anos depois. Em 2011, após a grita do compositor, enviaram a ele uma carta informando que o nome "Tropicália" não deixaria de ser utilizado, e que o baiano seria responsável por danos "materiais e morais" que vissem a ser causados por "ação judicial indevidamente proposta".

Nos dois casos, a empreiteira reviu posicionamentos  — desistiu do nome de batismo do empreendimento imobiliário e do enfrentamento com a força-tarefa, comprometendo-se a pagar 2,6 bilhões de dólares pelos crimes cometidos na Petrobras. Embora tenha tirado dinheiro do bolso para o embate jurídico com a empreiteira, Caetano não pediu compensação financeira por danos, apenas que desistissem do uso comercial de sua obra.

No encontro com Deltan, o compositor disse que "a independência do Ministério Público é uma das maiores conquistas da Constituição de 1988", mesma frase que repetiria quatro dias depois em ato de desagravo ao juiz da Lava-Jato no Rio Marcelo Bretas e a favor do impedimento do ministro do STF Gilmar Mendes.

Lembrando suas ressalvas históricas com a esquerda e o fato de não se considerar petista, o anfitrião mencionou a apresentação de powerpoint de Deltan que colocou Lula como ponto central do esquema de corrupção montado pelo partido. Defendeu a a legitimidade e a importância das investigações sobre o ex-presidente, mas disse entender que não era correto, para ele, matar o que Lula representa em um país marcado pela desigualdade social.

Deltan recorreu à Teoria da Prova no Processo Penal para explicitar o significado de cada elemento que constituiu o "edifício probatório" de uma tese de acusação do MP. Reconheceu problemas de comunicação do ponto de vista força-tarefa para a sociedade na apresentação do caso Lula. Mas reclamou do uso da ideia de que o MP teria convicções, e não provas, contra o ex-presidente, inventada, segundo ele, pelos críticos à operação.

Amigo de Deltan, Randfolfe participa de lançamento de livro Foto: Arquivo pessoal
Amigo de Deltan, Randfolfe participa de lançamento de livro Foto: Arquivo pessoal

VIDA SEM UTOPIA, NÃO ENTENDO QUE EXISTA

Na conversa, falou-se sobre a percepção de que a Lava-Jato tinha como alvo apenas o PT. Deltan lembrou de que a mesma força-tarefa prendeu Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e inevitavelmente tem atuação limitada em relação a políticos com foro privilegiado.

— O MPF tá ocupando um papel que tem de cumprir, atacando à esquerda e à direita. Ser crítico hoje ao MPF é estar aliado ao que há de mais atrasado na política brasileira - diz Randolfe, que nos encontros tenta, segundo ele, "traduzir um pouco das loucuras que se passam em Brasília, o significado das coisas".

A anfitriã Paula Lavigne foi com a cara de Deltan, para ela um sujeito "simples, normal e sincero".

— Ele começou essa história bem mais ingênuo, agora está entendendo melhor as coisas - resumiu a empresária, que jura não ter feito fotos da noite.

O GLOBO perguntou a Caetano se suas percepções iniciais sobre a Lava-Jato se mantiveram depois do encontro, e o que o unia e o afastava, hoje, do "procurador do powerpoint". Caetano respondeu com um artigo , no qual menciona os acordos de leniência como "modificadores do capitalismo brasileiro" e alerta para a necessidade de evitar que "movimentações importantes não venham a servir à manutenção das nossas desigualdades". Deltan não quis dar entrevista.

No fim do seu texto , o compositor cita a desigualdade e a corrupção como ideias em campos diferentes. De fato, os malfeitos com dinheiro público parecem ter ocupado todos os espaços da agenda pública dos últimos anos. E a preocupação com a desigualdade perdido a vez. Mas que Deltan não lhe ouça. Para o procurador, a corrupção está para a desigualdade como dois e dois são quatro.

Caetano termina seu artigo declarando apoio à Lava-Jato.